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Tamarindos
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E-book72 páginas59 minutos

Tamarindos

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Sobre este e-book

Os seis contos contidos em "Tamarindos" estruturam uma única narrativa ficcional expandida, um périplo elaborado a partir de fragmentos interconectados.
Originária do reino vegetal, uma teia sutil revela e dá sentido a relações humanas e não humanas. Conduz leitoras e leitores à apreciação de abismos abertos pelo silêncio.
O livro de estreia de Pablo Mathias, que é vencedor da Bolsa Hugo de Carvalho Ramos (2021), contempla ainda a trama mais explícita, que se move na superfície. Histórias atravessadas pela morte têm como base as estruturas do patriarcado espelhadas nas relações afetivas e na constituição da família brasileira.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento20 de fev. de 2024
ISBN9788568589175
Tamarindos

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    Tamarindos - Pablo Mathias

    O evolar-se da carne e do sangue

    Eu nasci no alto de um jatobá. Era um ninho grande, construído por outro rapinante. Meus pais aproveitaram que estava abandonado e apenas o ajeitaram. Colocaram uns gravetos a mais, uns galhos mais verdes e flexíveis. Éramos dois ovos, eu e minha irmã. Ela era maior que eu, mais saudável. Era para a vida dela ter se sobreposto à minha, não fosse uma coruja branca tê-la capturado no ninho em um fim de tarde em que nossos pais estavam fora. Eu não conseguiria vingar com ela lá, disso tenho certeza. O acaso me ajudou nessa e em diversas outras vezes. Sou um sobrevivente. Um carcará que deu muita sorte, assim como todos os que estão vivos. A sobrevivência, mais do que qualquer outra coisa, é sorte.

    Depois que a minha irmã foi predada, meu desenvolvimento foi significativo. Eu tinha proteção constante dos meus pais, pois um conseguia ficar mais no ninho enquanto o outro caçava – havia um bico a menos para alimentar. Eu cresci rápido depois que os recursos foram canalizados para o meu desenvolvimento. Mais uma vez, a sorte, pois o jatobá estava em uma área de inundação de uma grande usina hidrelétrica e a água subia rápido. Passei a ser monitorado por um monte de biólogos que avaliavam o enchimento do reservatório e quando o meu ninho seria atingido. O excesso de alimentos e o cuidado duplo dos meus pais foram fundamentais para que eu saísse do ninho antes dele ser inundado. Quando chegou a hora de voar, não tive grandes dificuldades. Eu havia treinado bastante, movimentava minhas asas com frequência no ninho e nos galhos fortes do jatobá. Meu primeiro voo foi rápido. Foi seguido pelos técnicos da usina e pela minha mãe. Eu pousei em um ipê próximo e, depois de alguns minutos para me recuperar daquela experiência, retornei ao jatobá. Em pouco tempo, eu já estava girando nas térmicas com os urubus. Animais com que mantenho relações próximas até hoje. Apesar de não faltar comida onde eu moro atualmente – pois o ser humano nos fornece muito com suas produções e seus restos, que também atraem insetos, ratos e diversos outros bichos; sem contar a rodovia que passa perto da fazenda em que estou, sempre tem carcaças à vontade –, rodar com urubus vai além da necessidade de comer. É o prazer de voar, sentir o calor ascendente lhe puxando para o alto, a força do vento deslizando sobre suas penas, com aquele horizonte infinito à frente.

    Logo que abandonei meus pais, segui meu rumo direto para onde estou hoje. Era uma fazenda grande e, logo que cheguei, pousei no chão próximo a um pasto seco, onde havia o resto de uma carcaça de uma vaca velha. Ali, conheci outros urubus e me fartei com aquela carne escura e doce, derretendo ao sol. Depois da refeição, busquei abrigo num cerradão próximo à casa do caseiro: um senhor muito velho, atarracado, de pele rugosa, cabelos brancos e olhos opacos. Ele me aceitou em seu quintal, e ficamos conhecidos. Eu o acompanhava com o trator pelas roças de grãos e ele gostava de me observar pegar os insetos e pequenos lagartos. Ele não tinha família, estava sempre seguindo as ordens do patrão da fazenda, mas não era dos empregados que trabalhava na lavoura. Ele era muito antigo na região, e o proprietário o mantinha pela consideração e amizade que eles pareciam ter, além de ele fazer de tudo um pouco ali – criava as galinhas, cuidava da horta e dos poucos porcos, para extrair banha de vez em quando.

    Nos entendemos por tanto tempo, que a rotina dele virou a minha. Eu o deixava, quando queria caçar, quando queria girar as térmicas com os urubus, mas sempre voltava. Eu ficava em um jacarandá na mata atrás da casa dele. Era uma árvore alta, frondosa, a mais bonita daquele cerrado. Aprendi a gostar dos cachorros dele também, que, depois de algumas broncas, deixaram de me incomodar quando saíamos para ver o gado. Eu voava atrás do cavalo dele e, geralmente, pousava em algum cupinzeiro, algum arbusto ou no chão mesmo.

    Nossos dias eram calmos e corriam suaves entre uma estação e outra. Juntos passamos por dias quentes, dias secos, por chuvas torrenciais, por noites frias e até algumas geadas. Era o norte do cerrado, um lugar com uma força inexplicável, que aos poucos aceitava a brutalidade do homem sobre si. Mas ele não. No pouco pedaço de chão que lhe pertencia, o respeito era visto no cerradão, na vereda ao sul e na nascente que lhe cabia. Quando a chuva demorava, ele rezava. Pedia para mim: Voa, carcará! Voa, carcará!. Eu voava alto, mas, por várias vezes, a umidade não vinha e eu via a seca abater-lhe o semblante. A seca era boa, muita carcaça, e ele entendia isso também.

    Meus primeiros filhos foram chocados no jacarandá. A minha inexperiência e a da mãe não permitiram que eles sobrevivessem. Nos perdemos

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