Gestão da Própria Sorte: a regulação como instrumento de proteção do consumidor no mercado de previdência privada aberta
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Gestão da Própria Sorte - Marciel Antonio de Sales
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objeto de estudo a regulação estatal aplicada ao segmento de mercado constituído pela previdência privada aberta no Brasil, a partir das análises dos pressupostos legais, inclusive de cunho constitucional, avaliando-se a atual estruturação e a dinâmica regulatória existentes.
A proteção social deferida à perspectiva previdenciária consubstanciada nos planos abertos de previdência complementar não se dissocia da importância dada ao respectivo nicho econômico, exigindo do Estado a modelação da ação privada adstrita aos fins sociais prospectos contatados, efetivamente, promovida através de regulação específica, especializada, econômica e consumerista.
1.1 CONTEXTUALIZAÇÃO
A Previdência Social, definida como um segmento da Seguridade Social, nos termos da norma predisposta no artigo 194 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, é uma das vertentes da Ordem Social vinculadas a direitos fundamentais, alterada por reformas constitucionais decorrentes do poder constituinte reformador.
O direito social à previdência social, direito fundamental, materializa-se através da proteção social destinada para a cobertura dos eventos de incapacidade temporária, ou permanente para o trabalho, idade avançada, proteção à maternidade, especialmente à gestante, salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda e pensão por morte do segurado, conforme explicitam as normas declinadas nos artigos 6º e 201, da Constituição Federal.
O Estado é um dos agentes financiadores da Previdência Social, juntamente a toda sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da norma predisposta no artigo 195, da Constituição Federal, com recursos dos orçamentos dos entes públicos e por meio das contribuições sociais, destacadamente as contribuições previdenciárias arrecadadas dos próprios segurados.
Entretanto, a sustentabilidade financeira da Previdência Social, principalmente do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), tem sido objeto de discussões desde a estruturação da Ordem Social atual, constitucionalizada com a carta de 1988, fazendo emergir frequentemente as modificações denominadas Reformas da Previdência
com o desiderato de promover o equilíbrio financeiro e atuarial.
Nesse cenário, à medida que a Previdência Social pública recua na prestação securitária enquanto política estatal, cresce ideológica e normativamente a Previdência Privada, de caráter facultativo e complementar, baseada na constituição de reservas e regulada por lei complementar, consoante a redação dada ao artigo 202, da Constituição Federal, pela Emenda Constitucional n.º 20, de 15 de dezembro de 1998.
Nesse contexto, foi editada a Lei Complementar Federal n.º 109, de 29 de maio de 2001, dispondo sobre o Regime de Previdência Complementar, definindo as regras aplicáveis aos regimes de previdência fechado e aberto, acessíveis respectivamente a alguns grupos e a qualquer pessoa física, na forma disciplinada na própria norma referida.
A Previdência Privada Aberta, apesar de toda a sua regulamentação anterior, somente a partir da década de 90 e, como visto alhures, em decorrência da disciplina da Lei Complementar Federal n.º 109, de 29 de maio de 2001, alcançou significativo crescimento, em muito devido à estabilização da moeda nacional com a criação do plano real¹.
Ademais, é notório que a previdência pública, representada pelos RPPS e pelo RGPS, sofrera com reiteradas reformas advindas por meio de emendas constitucionais, que sob a justificativa de equacionar o déficit financeiro e atuarial descaracterizam sua feição inicial, principalmente no que se refere ao valor dos benefícios concedidos. Segundo Costa e Soares (2017, p. 39), a trajetória demográfica da população brasileira é um fator que ajuda a compreender o déficit previdenciário no país, uma vez que o sistema de repartição simples, adotado pela previdência pública brasileira, é profundamente afetado pelas questões demográficas.
Dados do último censo (IBGE, 2022), confirmando a tendência mundial (UNFPA, 2023), disponibilizados em junho de 2023, indicam que o crescimento da população brasileira a partir da década de 1970 começara a desacelerar, apresentando em 2022 um crescimento de 6,45% em relação ao ano de 2010, e taxa de crescimento anual de 0,52%. A manutenção do crescimento populacional está associada ao aumento da expectativa de sobrevida, fixada em 77 anos para ambos os sexos em 2021², uma vez que os índices de fecundidade apresentam significativa queda³.
A previdência social brasileira, com gastos elevados para uma população ainda jovem, significativa redução da natalidade e rápido envelhecimento (Ibrahim, 2011), fere o pacto previdenciário fixado entre gerações, evidenciando a deterioração dos sistemas de segurança social básicos, possibilitando o desenvolvimento de instituições privadas, fundadas na liberalidade financeira dos indivíduos (Póvoas, 2007, p. 88 e 89).
Os planos de previdência privada de natureza aberta, acessíveis a qualquer pessoa física, são regulados pela Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), criada pelo Decreto-Lei n.º 73, de 21 de novembro de 1966, que no exercício de suas funções executoras compete-lhe aplicar as disposições contidas no Código de Defesa do Consumidor (CDC) ao contrato jurídico existente entre as Entidades Abertas de Previdência Complementar (EAPC) e os contratantes dos Planos de Benefícios, haja vista a caraterização consumerista do negócio jurídico, consoante decidira o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao editar a Súmula n.º 563, de 24 de fevereiro de 2016.
Nessa perspectiva, a distinção entre os segmentos de previdência complementar fechada e aberta, destacando-se o caráter mercadológico atribuído pelo ordenamento jurídico, impõe necessariamente a aplicação das normas contidas no CDC à previdência aberta em decorrência da verificada hipossuficiência dos segurados relativamente às EAPC (Gnata, 2021, p. 143).
1.2 FORMULAÇÃO DO PROBLEMA
A atuação regulatória do Estado no âmbito da previdência privada aberta deve consorciar os paradigmas da ordem econômica aplicáveis às EAPC, entidades componentes do mercado financeiro, não permitindo a sobreposição desse viés lucrativo à expectativa previdenciária que norteia as relações contratuais celebradas entre os participantes, pessoas físicas, e as EAPC.
Dessa forma, aplicando-se necessariamente as normas consumeristas em decorrência da hipossuficiência verificada, objetivando, sobretudo, a efetivação do direito fundamental à previdência complementar, exsurge o seguinte problema de pesquisa: quais os limites materiais e formais impostos ao Estado Brasileiro, enquanto regulador, ao aplicar preventivamente as normas consumeristas aos contratos de Previdência Complementar Aberta?
1.3 HIPÓTESES E OBJETIVOS
A presente pesquisa tem como objetivo geral evidenciar que o segmento de previdência privada aberta é um dos nichos econômicos que mais crescem atualmente no Brasil e, em decorrência de seu contexto social, se impõe constitucionalmente a necessidade de regulação específica, especializada e centrada na defesa dos interesses dos participantes dos planos abertos de previdência complementar. Ademais, a regulação desse mercado deve assegurar a concretização futura, por meio da concessão de benefícios previdenciários por sobrevivência, conforme contratados, aplicando-se ao respectivo segmento, inclusive, preventivamente, as normas contidas no CDC.
Outrossim, especificamente, objetiva-se demonstrar a importância econômica e social do mercado de previdência aberta para o país, para seu crescimento e seu desenvolvimento em longo prazo, uma vez que os planos de benefícios previdenciários típicos convergem para a constituição de poupança e para pagamento de benefícios futuros, restando a possibilidade de aplicações em investimentos públicos relevantes, observada a natureza afetada dos recursos poupados e constitutivos das reservas matemáticas das EAPC, bem como sua sujeição à capitalização.
Quanto à importância social, delineada anteriormente, abrange o contexto financeiro dos participantes dos planos de previdência aberta, diretamente beneficiados pela concessão das prestações previdenciárias contratadas, quando implementados os requisitos legais para tanto, principalmente a conquista da idade avançada, usufruindo de melhores condições de vida e de dignidade social. No âmbito coletivo, plural e dinâmico, sua importância social está calcada numa política previdenciária intergeracional econômica, financeiramente sólida e estruturalmente planejada, contribuindo decisivamente para a superação de vulnerabilidades e de dependências.
Também objetiva-se evidenciar que a alta concentração econômica do mercado de previdência privada aberta representa um risco permanente e crescente de dominância, capitulada como a principal falha desse segmento, impondo-se necessariamente a permanente vigilância estatal, sob a forma de regulação repressiva, desencadeada após a constatação de violações normativas e contratuais praticadas pelas EAPC em desfavor dos consumidores, participantes dos planos previdenciários estruturados.
A regulação consumerista preventiva contínua é outro importante mecanismo de vigilância, devendo ser implementada por meio de técnicas administrativas prudenciais, inclusive com inserção do órgão regulador na rede protecionista constituída pelo Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC) e pelo Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC).
Desse modo, a pesquisa esboçada tenciona comprovar que a regulação econômica consumerista é um instrumento hábil e capaz de promover a minimização do risco sistêmico a que está submetido o mercado da previdência privada aberta nacional, promovendo a proteção dos interesses previdenciários contratados em longo prazo, operada através de mecanismos estruturados por redes de proteção, preventivos ou repressivos, executados de forma coordenada e cooperada por órgãos reguladores, tais como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), Comissão de Valores Mobiliários (CVM), Conselho Monetário Nacional (CMN), Banco Central do Brasil (BCB) e SUSEP, entre outros.
1.4 REFERENCIAL TEÓRICO
A transferência para a iniciativa privada de mecanismos de proteção social não significa obviamente a extinção dos regimes públicos de previdência social, previstos nos artigos 40 e 201, da Constituição Federal, mas, sim, a consolidação do rearranjo de suas matrizes constitucionais com a consequente abertura do mercado de previdência privada.
Nesse sentido, o desrespeito à tutela constitucional desse direito fundamental, decorrente da diminuta presença estatal nas relações jurídicas, a exemplo da fiscalização preventiva da SUSEP na celebração de contratos de previdência privada, com aplicação das normas consumeristas, possibilita a prevalência das regras de mercado, promovendo-se a entrega dos direitos sociais públicos, revelando a premente necessidade de custódia contínua da atuação privada por meio da regulação estatal no mercado de previdência aberta.
Nesse espeque, o presente trabalho filia-se à crítica acerca de como se operacionaliza a atuação regulatória estatal no segmento econômico de previdência aberta no Brasil, sua estrutura, sua gestão, suas diretrizes e seus limites, perfilando-se, nesse aspecto, aos estudos realizados por Carvalho e Murgel (2022), Castro (2017), Póvoas (2007) e Fábio Ibrahim (2011), que se dedicaram a estudar a regulação aplicada ao mercado de previdência complementar, sem olvidar das pesquisas realizadas na área da regulação econômica, das falhas de mercados, da análise econômica do direito e da análise de impacto regulatório por Seixas (2017, 2021 e 2022), Mattos (2006) e Pinheiro e Saddi (2005), tomados exemplificativamente como referencial teórico destinado a lastrear a referida pesquisa, além dos demais doutrinadores declinados no referencial bibliográfico, os quais evidenciam, respectivamente, que a previdência, que deveria atender aos interesses de longo prazo dos trabalhadores, está atendendo aos interesses transitórios do governo e aos interesses preponderantes do mercado financeiro (Gnata, 2021, p. 23).
O Estado Regulador deve garantir o equilíbrio financeiro dos planos de previdência privada aberta, uma vez que os sistemas de aposentadoria afetam a vida das pessoas, e, também, assegurando-se que as empresas privadas autorizadas a atuarem nesse segmento econômico cumpram com sua função social, se promovendo, desse modo, a regulação prudencial consumerista, equilibrando as relações e carreando segurança dos poupadores nas operações do sistema financeiro.
As premissas metodológicas que lastreiam o presente trabalho são adequadas à linha de pesquisa Constituição, desenvolvimento e as transformações na ordem econômica e social
, uma vez que a previdência social brasileira passa por grandes transformações, com desvalorização dos regimes públicos e expansão e valorização do regime de previdência complementar aberta, exigindo do Estado uma postura preventiva e proativa em favor dos beneficiários dos planos de previdência privada, regulando, assim, a relação jurídica decorrente.
1.5 METODOLOGIA E ESTRUTURA DO TRABALHO
O presente trabalho será desenvolvido por meio do método dedutivo, partindo-se da ideia geral que envolve o tema, premissa verossímil estabelecida, cunhada na técnica metodológica propícia para uma pesquisa teórica e lastreada nos princípios de metodologia não empírica, sem olvidar dos seus desdobramentos metodológicos, especialmente as pesquisas bibliográficas: legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais, revistas especializadas, estudos produzidos por órgãos governamentais, principalmente pertencentes aos próprios órgãos reguladores, entidades e organizações não governamentais especializadas.
A metodologia abordará as premissas gerais e específicas acerca do tema, explorando a sua construção geral, fixada na constituição e no ordenamento infraconstitucional, perquirindo-se os fundamentos sociológicos e a origem histórica, definindo os limites e os contornos sociais da atuação Estatal, sem prescindir do seu objetivo econômico, adequando-se ao problema a ser estudado e às hipóteses levantadas (Lakatos; Marconi, 2017, p. 103).
Para demonstração da satisfação dos objetivos específicos, se adotará, considerando as especificidades e conforme o desenvolvimento de cada capítulo, tipos metodológicos diferentes, com especial deferência pelo jurídico-prospectivo, posto que o presente estudo buscara delinear o escopo de uma melhor atuação regulatória estatal para o mercado de previdência aberta.
Dessa forma, considerando que o Direito é uma ciência essencialmente social, tornara-se imprescindível a construção desta obra através da metodologia da pesquisa jurídico-sociológica, objetivando concretizar como axioma conclusivo à necessidade de aplicação ao mercado de previdência privada aberta dos preceitos da regulação econômica consumerista, conferindo proteção aos interesses dos participantes dos planos de benefícios de caráter previdenciário, preservando-lhes a liquidez e a solvência, e assegurando o cumprimento futuro dos termos contratais pactuados.
Nesse sentido, o primeiro capítulo apresenta a estrutura organizacional do segmento econômico de previdência aberta no Brasil, enfatizando a sua conceituação técnica, a origem, o arcabouço constitucional e normativo. Inicialmente, em observância aos princípios fundamentais de regulação da previdência privada editados pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)⁴, debruça-se conceitualmente sobre a teoria dos três modelos de pilares previdenciários, perseguidos pelos Estados que idealizam e normatizam a sua implementação.
Essa arquitetura multipilares pulveriza a responsabilidade previdenciária nacional, atribuindo maiores responsabilidades para a previdência privada e menos domínio da previdência pública. Ademais, os ativos da previdência complementar, aberta e fechada, representam uma importante fonte de desenvolvimento econômico, principalmente no que se refere ao financiamento de investimentos de longo prazo (Holzner; Jestl; Pichler, 2021, p. 24).
O denominado primeiro pilar previdenciário, caracterizado pela necessidade de instituição de mecanismos de proteção social com gestão pública, organizados pelos governos nacionais, destina-se a suprir as necessidades mais elementares dos destinatários, trabalhadores que se vinculam a esse ramo protetivo em decorrência do trabalho remunerado.
Por sua vez, o segundo pilar é um regime de capitalização obrigatória, não solidário, essencialmente privado, compulsoriamente vinculante e destinado à formação de poupança futura para