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Eu vivi tudo aquilo que sonhei: caminhos de uma vida com a música na alma
Eu vivi tudo aquilo que sonhei: caminhos de uma vida com a música na alma
Eu vivi tudo aquilo que sonhei: caminhos de uma vida com a música na alma
E-book408 páginas4 horas

Eu vivi tudo aquilo que sonhei: caminhos de uma vida com a música na alma

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Sobre este e-book

Aqui você vai conhecer a trajetória de um baiano apaixonado pelo carnaval e pela arte em geral, relatada em pequenos contos, a sua história na música, os obstáculos e conquistas e a certeza de nunca desistir.
Com a frase que guia a sua vida: "não há vento bom para marinheiro que não sabe onde quer chegar", dita pela ministra Carmen Lúcia, do STF, ele apresenta sua caminhada, com determinação, e se reinventando a cada dia. Livro simples, escrito com o coração.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento18 de abr. de 2024
ISBN9786553557802
Eu vivi tudo aquilo que sonhei: caminhos de uma vida com a música na alma

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    Eu vivi tudo aquilo que sonhei - Alexandre Maia

    Capítulo 1

    O começo da música

    Era um final de tarde da quinta-feira do dia dezoito de fevereiro de 1980, na primeira capital do Brasil. O sol já se preparava para dormir, pintando um avermelhado diferente, por trás do Colégio Salesiano e na poética Ladeira do Limoeiro, que, até hoje, não sei o porquê, também é chamada de Bela Vista do Cabral e Gonçalves Dias (coisas que só se veem na Bahia).

    Todos estavam se preparando para a chegada do Rei Momo, na Praça Municipal. Eu, com meus recém-conquistados treze anos, nem sonhava em conseguir a permissão de meu pai para acompanhar o cortejo da turma da ladeira. Voltei para casa e comentei que a todos iriam para o Carnaval.

    O cenário não era nada promissor para tal conquista, pois faziam parte dele: meus pais e minha avó paterna, dona Zaide, que era, além de conservadora, minha protetora. Nessa época de carnaval, tia Regi sempre estava lá em casa, com seu drama conquistador, amada por toda a família, solteirona convicta, era tão participativa, que a solidão nunca ousava chegar perto de seu coração. Mas a história de tia Regi será contada depois.

    Minha mãe sempre foi legal demais, acho que ela não seria problema, mas meu pai? Ali estava a grande incógnita. Poderia sair de tudo, tipo: Você está ficando doido? Ou: Vá procurar outra coisa para fazer, etc.

    Mas mesmo assim, eu resolvi investir. Afinal, todo pré-adolescente precisa de conquistas, e eu, mais do que ninguém, era alimentado de sonhos e fantasias.

    Esperei o momento em que todos estavam prestes a tomar o cafezinho na sala e perguntei:

    — Pai, posso ir com a turma para a Praça Municipal, ver a chegada do Rei Momo? O não, eu já esperava e já tinha, mas como uma canção, ele respondeu, para a surpresa de todos:

    — Pode, sim, filho.

    O mais impressionante foi que ele não deu nenhuma recomendação de hora de chegada ou de outra coisa qualquer, simplesmente me disse que tomasse cuidado e ficasse perto da turma.

    Os olhares de minha avó Zaide e tia Regi eram espantados. Minha mãe não ousava destruir minha felicidade. E lá fui eu, avisar à galera. O menorzinho da turma, finalmente, ia poder sair. Tomei um rápido banho, peguei um dinheirinho com meu pai e desci correndo, pois todos só estavam me esperando.

    Andamos até a Feira das Sete Portas e pegamos carona na carroceria de um caminhão, que passaria pelo pé da Ladeira da Praça. Desembarcamos da primeira aventura do dia e subimos aquela interminável ladeira. Chegar à Praça Municipal, já seria suficiente e fantástico. Os nove amigos daquela noite me olhavam com orgulho.

    O tempo foi passando, a multidão aglomerando... E eu, daquele momento, recordo apenas ter visto a cabeleira de Moras Moreira e a participação, tocando guitarra, do seu filho Davi. Minha altura não permitia mais que isso. Porém, o que mais importava, senão estar ali?

    Moraes parou de tocar e meu olhar observador esperava o desenrolar do novo ato daquela noite teatral. Será que a turma já vai? – pensei.

    Deu-se início a uma tensão em meus pensamentos. Então, o que fazer? Lembro-me bem que os amigos Leo, Gelson e Junior se preparavam para ir embora e me perguntaram:

    — Lequinho, vem com a gente?

    Eu, de forma esnobe, respondi que estava muito cedo e que iríamos ficar mais um pouco. Era só marra mesmo. Na verdade, eu queria voltar logo e acordar cedo para apresentar meu troféu de herói, pois nenhum dos meus irmãos havia ido a um carnaval sozinho.

    Naquela noite, permaneci. Os outros começaram a voltar. Eri (Risadinha), Ivo e Bimba me chamaram também, mas pensei comigo: Só saio na última leva. E permaneci, até que a última leva chegou.

    Ficamos Ari, Charles e eu. Mas quando nos aprontávamos para retornar para casa, apareceu um trio elétrico. E foi ali que surgiu a verdadeira paixão.

    Tecnicamente falando, era o primeiro trio transistorizado da Bahia. Os trios, no início, apresentavam-se com guitarra baiana, guitarra grande e alguns usavam contrabaixo. A parte percussiva tocava espalhada pela lateral do trio, geralmente tocava frevo instrumental, espetáculo maravilhoso, criado por Dodô e Osmar.

    Aquele trio que chegou era diferente. Na sua estrutura não havia percussão ao lado, nessa parte estavam as caixas de som. Os músicos ficavam distribuídos, como em um palco mesmo: bateria, percussão, guitarra etc.

    A primeira música que ouvi, naquela madrugada, tinha um refrão que dizia: Ela tem olhar de cobra, que toda hora paralisa o meu, a banda se chamava Scorpions. Futuramente, tornou-se Chiclete com Banana. Bell, Missinho e Cia vinham espalhando alegria pelas ruas da cidade, e lá ia eu, pequenino, atrás do grande trio.

    Descemos pela Praça Castro Alves, subimos toda a Rua Carlos Gomes e terminamos o percurso em pleno Campo Grande. Voltamos, andando, pelo Campo da Pólvora, paramos na frente do Fórum Rui Barbosa, para comer melancia, e descemos a ladeira mágica do Limoeiro.

    O cenário era parecido com aquele do final da tarde, mas o avermelhar era diferente. O sol que ensaiava despontar pelo Morro do Castro Neves era de bom dia e felicidade. Lembro-me que a primeira cena que vi, foram as janelinhas da casa do Charles e de lá de casa semiabertas, com as nossas mães a nos esperar.

    Mesmo sem comunicação entre as duas, o fato de estarem ambas a nos esperar, servia de conforto, pois não estavam sofrendo sozinhas e, certamente, estávamos juntos.

    Entrei em casa, esperando tudo. O esporro era inevitável, mas nada tiraria a magia da música que entrara na minha vida. Minha mãe me perguntou por que havia chegado tão tarde. Apenas respondi que a música não queria parar.

    Durante aquela manhã dormi sonhando com aquela música na alma. Acordei e pedi ao meu pai para voltar à rua. Queria ver os trios e ele aprovou. Durante todos os outros dias de carnaval, eu compareci à Praça C`astro Alves do Povo, como um pacto mágico entre a música e eu.

    A metamorfose do axé da Bahia me carregou e jamais esqueci aquela largada. Como dizia meu irmão Dado, meu GPS se perdeu e me casei com a música. Foi assim.

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    Capítulo 2

    A quarta-feira de cinzas

    C:\Users\Leco Maia\Desktop\Quarta-feira-de-cinzas.jpg

    Encantado com aqueles dias de carnaval, a noite não parecia ser o berço do descanso. A alegria parecia ser muito mais forte do que os fadigados músculos daquela maratona momesca. Eu nascia para a música. A casa antiga e acolhedora onde morávamos, na íngreme Ladeira do Limoeiro, transformava-se na verdadeira Praça Castro Alves, e qualquer espaço vazio era um palco de trio elétrico para mim.

    Lá estava eu, insistindo para que minha mãe me ensinasse a tocar violão. Ela, sempre muito solícita, achava lindo aquele desejo repentino, mas no seu íntimo, sentia que seria efêmero.

    — Me ensine brasileirinho.

    E lá estava ela, solando aquele comecinho da música, com notas sempre suaves e barulhinhos de unhas tocando nos trastes. Sempre achei linda a forma singela e melódica com que minha mãe executa os instrumentos.

    Lá em casa tinha uma sanfona, que ela tocava muito bem, e um violão di giorgio, modelo tipo autor 36, que meu pai trouxera da Europa. Por esse último, já tinham tentado a magia de aprender um instrumento, os meus irmãos queridos, Dado e Kiti, mas sem o start necessário de prosseguirem.

    Enfim, ali começava a minha história. Sabe aquele menino chato, que fica atrás de uma coisa e só sossega quando consegue? Pois bem, era eu. A primeira música que aprendi completa foi Serra do Luar, de Leila Pinheiro. Charles me ensinou. Lembram de Charles? Aquele que voltou quase de manhã, quando fomos até a Praça Municipal. A gente o chamava de Abroba, baiano sempre tem apelido.

    Ele era moreno, tinha a minha idade, mas já tocava algumas músicas de Djavan. O apelido de Abroba vinha de cabeça de abóbora, devido ao seu formato eclíptico. E por aí, eu ia seguindo a vida. Aprendia uma música e dizia: Não quero mais nada, e aprendia outra e mais outra, até que a agradável sensação de agradar às pessoas chegou, aquela sensação de alegrar um coração, de fazer uma lágrima descer da maquiagem, de fazer o povo tirar o pé do chão, no meio da multidão, etc., tudo isso eu queria ver se multiplicando durante a minha vida.

    Há pouco tempo, meu mestre Charles se foi. Mas acredito que ele não era muito para esse mundo. Ele tinha a coragem de um sonhador aventureiro que eu sempre quis ter. Foi o primeiro a ser pai, o primeiro a se separar e seguir para morar na Espanha, na companhia do seu violão preciso, da sua voz Djavaniada e da sua timidez de cantar olhando para o chão. Entretanto, um câncer foi mais forte e levou o poeta.

    C:\Users\Leco Maia\Desktop\charles.jpg

    Mas voltando aos cantos da minha casa, lá estava eu, incomodando a todos (é impressionante como as pessoas, inclusive eu, não suportam estar perto de quem está começando a tocar um instrumento). É chato pra caramba, mas dali foram saindo os frutos.

    Preciso confessar que chega um momento em que a coisa acontece, não me pergunte quando, mas todo artista passa pela porta mágica e começa a viagem de volta ao seu objetivo. As pessoas passam a querê-lo por perto. Então, é só alegria. Um violão abre as portas para tudo. É o maior diploma que uma pessoa pode ter. A maioria das namoradas e paqueras surgiu das notas do violão e da suavidade da minha voz. Meu primeiro emprego no Banorte veio de uma seresta na casa de uns diretores da Agência do Comércio, onde eu fui tocar, levado por Sr. Ayres, pai da minha namorada Suely. Sem contar que ele, o violão, será companhia para a vida inteira. Solidão aqui não tem vez.

    Suca, como eu adorava lhe chamar, era especial, tinha uma obsessão por leitura, era uma inspiração cultural e inteligente para aquela fase de formação artística. Mesmo com pouca idade ela fazia diferença no mundo.

    Os dias se passavam e os encontros com a música se tornavam mais intensos. Ela me trazia felicidade. Eu juntava os amigos, sentávamos em bares da nossa histórica Salvador e começávamos a tocar. Rapidamente, iam surgindo as primeiras cervejas que as pessoas, espontaneamente, mandavam para nossa mesa. Aquilo dava a sensação de que o povo estava gostando. E como era bom!

    A semana inteira se passava e eu ficava esperando, como dizia Tim Maia, para ver o povo sorrindo, para ver essa gente cantando, pois o amor pela arte não escolhia local, não escolhia nada, podia ser em um palácio sofisticado ou na Feira das Sete Portas, às cinco da manhã, comendo feijoada. Milton Nascimento nos ensinava que todo artista tem que ir aonde o povo está, e lá estávamos nós. Por todo lado, espalhando a alegria de ser feliz.

    A legião de seguidores da rua ia aumentando. A banda que seguia pelos bares passou a se chamar de bando, pois nem todos tocavam, mas bebiam pra caramba. Constantemente, atravessávamos o Ferri-boat e passávamos o fim de semana na ilha, mais precisamente na Ilha da Coroa. Era muita música, vinho e namoros, até o sol raiar, nas areias brancas e praias calmas de Itaparica. Não imaginaria uma vida melhor: estudava no Colégio Antônio Vieira, na maravilhosa e inesquecível turma A, e na sexta-feira começavam os encontros violados pelos bares. Quando me transferi para o Colégio, iniciaram as serenatas quinzenais na casa de Tuti, uma colega do turno matutino.

    Aquelas serenatas eram especiais. Lembro-me muito bem que ficávamos todos sentados ao chão, cerca de vinte a trinta pessoas, luzes apagadas, deixando o pratear do luar entrar pelo quintal bucólico e florido da casa. Mesmo nas noites sem Lua, ela parecia estar lá. Impressionante como as lembranças me remetem àquela luz mágica, encontros e sorrisos inesquecíveis. A saudade disso tudo é inevitável.

    Foi sendo formada uma turma fixa com aquela galera que, todo fim de semana, sentava nos bares e tocava até o sol raiar. De repente, surgiu a ideia de fazermos ensaios, com o objetivo de dar um aprimoramento à musicalidade. Lembro-me muito bem que a paixão pelo carnaval era algo tão marcante, que tocávamos clássicos da MPB, como Sampa, Sonífera Ilha e Desculpe o Auê, em ritmo de axé.

    Um dia, fomos tocar num bar chamado Lua de Cetim, que ficava no bairro da Amaralina. Era final de abril de 1984. O dono do bar, cujo nome não recordo, perguntou se não gostaríamos de tocar profissionalmente no pequenino palco da casa, no dia 30, véspera do feriado do Dia do Trabalhador. Prontamente, marcamos para conversar no dia seguinte, pois nada poderia atrapalhar a nossa cachaça, esse era um dos lemas da turma.

    Voltamos no dia seguinte, para acertar os detalhes da estreia e, a partir daquele momento, começou a história profissional da minha vida, a qual não troco por nada.

    Capítulo 3

    A estreia

    Data: 30 de abril de 1984. O grande dia havia chegado. Mas antes de falar do magic day, é interessante contar o episódio da negociação do cachê da estreia.

    Era uma tarde chuvosa. O barzinho Lua de Cetim estava fechado. A escuridão daquele dia mostrava o verdadeiro bastidor dos locais de shows. Havia dois rapazes que iriam também tentar fechar um dia da semana para se apresentarem, Tênisom Del Rei e Paulo Vascon. Dois artistas de primeira linha. Lembro-me muito bem que o violão que eles traziam era um Ovation, meu sonho de consumo.

    Trocamos algumas palavras de incentivos e fiquei os assistindo tocar Gente Humilde, foi a melhor interpretação que já vi para essa pérola da MPB. As duas vozes melodiaram pelo silêncio sombrio da escuridão da casa.

    Que momento lindo da minha vida. A arte tomava conta de mim. E eu passei a admirá-los pelos bares de Salvador. Hoje, somos amigos e me encho de orgulho quando ouço belíssimas composições de sucesso de ambos.

    Chegou a nossa hora. A parte musical já estava resolvida, pois o dono do bar já havia nos visto tocar e nem instrumentos levamos.

    Gastamos nada mais que três minutos para batermos o martelo no valor. Digamos que fossem uns R$ 150,00, não lembro exatamente os valores da época, isso para dividir com os quatro componentes.

    Não era importante para o grupo o montante do valor, a gente queria mesmo era tocar, mas algo empacou igual a uma mula teimosa. A quantidade de bebidas que poderíamos consumir.

    Como minha avó dizia, o padre, onde canta, janta, no nosso caso, bebe, e muito. Geralmente, como cortesia, cada componente da banda recebia três cervejas e um tira-gosto. O que eu mais gostava era de carne do sol com aipim, ainda posso sentir a nostalgia do sabor na boca.

    Sentados estávamos: eu, Vadoka, Inho e Álcool (Jr) (só apelido, baiano é terrível, ninguém tem nome). A discussão seria como transformar aquelas doze cervejas em quantidades de caipiroscas. Na Bahia, caipirosca é o drink feito com limão e vodka.

    Sei que essa transformação resultou em cinquenta e duas doses. Eu era o único não bebia e o meu refrigerante era pago por fora, pela galera, para não diminuir na cachaça.

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    Interessante era que, mesmo depois das apresentações, a noite só acabava após serem destruídas aquelas cinquenta e duas caipiroscas.

    O proprietário do Lua, como mais tarde passamos a chamar o bar, gastou umas duas horas tentando convencer a gente que não aguentaríamos tocar daquele jeito, mas ele foi vencido.

    Naquele dia, preparei-me como um noivo, no dia do casamento. Passei a tarde descansando, tomei banho mais cedo, tentei disfarçar a ansiedade. Peguei a minha moto, passei na casa de Inho e rumamos para o bairro de Amaralina.

    Não me pergunte como, mas conseguíamos levar na moto: violão, cavaquinho, timbau, sacola com cabos e microfones e ainda tinham uns pedestais.

    Chegamos cedo, o barzinho, durante a noite, era muito aconchegante. Havia umas luzes que desciam do teto para iluminar, singelamente, cada mesa. Eram mesas pequenas e arredondadas, de madeira antiga. Os bancos das mesas tinham formatos de barril de bebidas, com um acolchoado vermelho no assento.

    O palco era bem pequenininho, não media mais de trinta centímetros de altura, quatro metros de largura por dois de profundidade. O suficiente para caber nós quatro, sentados.

    Testamos os equipamentos e a cada minuto chegavam os amigos. Aqueles amigos que foram construídos ao longo daqueles quatro anos estavam ali. E eles trouxeram outros e outros. Era como se cada um estivesse estreando naquela noite com a gente. Simplesmente não cabia mais ninguém. As mesas ocuparam-se rapidamente e as pessoas ficavam em pé mesmo. Uma verdadeira loucura.

    Cantamos tudo do nosso imenso repertório. O coral daquela gente entoava a felicidade. Quanto mais a noite passava, mais gente chegava e ninguém arredava o pé. O povo começou a ficar pelas calçadas, mesmo que não visse nem ouvisse nada, mas estava ali.

    Se posso chamar alguma coisa de perfeita foi aquela noite. Saímos com o dia amanhecendo e todas as cinquenta e duas caipiroscas consumidas, e os tira-gostos também.

    A cerveja do bar acabou. Foram buscar mais nos bares vizinhos e elas se acabaram também. Passamos a ser a sensação de quem queria um som animado para sua Casa. Tudo que tocávamos tinha que se transformar em axé.

    A noite, como de costume, tinha que terminar na velha e deliciosa feijoada da Feira das Sete Portas. A galera tomou a penúltima cerveja, nunca existirá a última, subi a ladeira famosa do Limoeiro e, finalmente, fui dormir.

    Acordei radiante. Desci e fui à banquinha de Zé, comprar um pote de sorvete da Kibon, com a minha parte do cachê. Foi o que deu. Mas o maior prêmio foi a noite da estreia.

    O after day teve um sabor interessante. Ninguém podia me olhar na rua. Eu estava vaidosamente me sentindo Luiz Caldas. Para mim, Salvador inteira estava lá. E por que não? Estava, sim, meu coração viu.

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    Capítulo 4

    A banda

    Os dias foram passando durante a efusiva década de oitenta. O conflito profissional inevitavelmente veio a aparecer. Aquele adolescente, cheio de sonhos, precisava decidir o caminho acadêmico de sua vida. Quantas dúvidas. O formulário do vestibular estava em minha frente. O que fazer?

    Música não era possível, por vários fatores: não era encarado como profissão, o teste de aptidão exigia um determinado conhecimento – que eu não tinha – e, ainda por cima, o prazo para essa prova já havia expirado.

    Medicina era o sonho lá de casa. Eu até gostava, mas não o suficiente para me dedicar a tamanha responsabilidade.

    Fui na onda da galera. Os amigos mais próximos iam prestar exame para Geologia. Pronto, serei um geólogo espetacular. Viverei com meu violão pela natureza, vou trabalhar na Petrobrás e minha prioridade, com toda certeza, será a música. Quem era que eu estava enganando?

    No mês de setembro do ano de 1984, fui acometido por uma doença chamada nefrite. Fiquei inchado, em uma semana, pelo menos uns 15 kg. Não sabia o que eu tinha e procurei a endocrinologista da Sasderba – clínica que atendia aos familiares do Derba, onde meu pai trabalhava.

    A doutora Reine me atendeu e aferiu a minha pressão. Lá estava a inesquecível medida: 24 x 12. A médica apertou minha perna, que formava verdadeiras piscinas de formigas, e pediu que eu fosse ao consultório ao lado, onde atendia o urologista Dr. Juncal, que, por coincidência, estava dando alta médica à minha mãe, pois ela tinha saído de uma cirurgia renal.

    A experiência daquele médico, e hoje amigo, foi precisa. Meu corpo estremeceu, quando ele disse que nem a moto eu levaria para casa, naquele momento. A coisa era séria.

    O desfalecer dos semblantes dos meus pais foi uma cena que jamais esquecerei. Juncal se dirigiu ao meu pai e disse:

    — Dudu, preste atenção. Vamos vencer essa guerra, mas esse menino precisa colaborar, pois essa doença, se não for corretamente tratada, poderá fazê-lo perder o rim.

    Saí de lá e fui internado no Hospital Espanhol, local onde nasci. Era localizado em frente à Praia do Porto. Local mágico, de brisa farta e águas calmas, na Bahia de Todos os Santos.

    Em 3 horas, estavam cerca de vinte amigos no quarto do hospital. A confusão que eles faziam, mais parecia um verdadeiro carnaval. Risadas e conversas em alto volume, por todo lado.

    Ao cair da tarde, a festa ainda continuava, quando o trio desmancha prazer (brincadeirinha) entrou na sala: Dr. Yulo, diretor da Sasderba e melhor amigo de meu pai, meu velho e uma doutora chamada Antônia Pimenta.

    Foi o maior esporro que levei na vida. A voz firme e grossa de meu Tio Yulo era assustadora: Ponham-se todos para fora desse quarto, vocês estão pensando o quê? Leco precisa descansar. O que ele tem exige repouso, senão, ele pode morrer.

    Aquele aviso era para mim. Foram sete dias internado. As visitas continuaram, mas tudo na devida calmaria. Em

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