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A Noite do Fim do Mundo
A Noite do Fim do Mundo
A Noite do Fim do Mundo
E-book121 páginas1 hora

A Noite do Fim do Mundo

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Sobre este e-book

Um homem atormentado pelo passado luta para livrar-se de seus vícios, ao mesmo tempo em que busca o amor da filha.
Em meio a situações cotidianas, por vezes um tanto bizarras, onde tudo está interligado, ele ultrapassa os limites da culpa e da própria redenção.
Personagens sem nome encontram-se o tempo todo, procurando por algo que traga sentido à existência, enquanto o fim do mundo se aproxima.
IdiomaPortuguês
EditoraViseu
Data de lançamento3 de mai. de 2024
ISBN9786525475745
A Noite do Fim do Mundo

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    A Noite do Fim do Mundo - Alexandre Cruz

    Capítulo 1

    Era Uma Família Tão Desestruturada

    Agora eu conheço esse grande susto de estar viva, tendo como único amparo exatamente o desamparo de estar viva.

    (Clarice Lispector)

    Alma cresceu em meio a uma confusão de sons, filha de músicos frustrados pelos andamentos da existência, atualmente empregados em empregos de merda, sendo a razão e fruto de um casamento em que nem a festa se salvou.

    Nascida durante uma tempestade de granizo, no dia mais quente do ano, Alma Soraya Machado de Abreu, Machado pela parte materna e Abreu pela parte paterna - ao ser expelida após 3 horas de sofrimento, abriu um tremendo berreiro sem precisar das batidinhas delicadas no bumbum. A sala de parto e todos dentro dela suavam em bicas, o médico e a mãe competindo para ver quem suava mais. Em matéria de dor, a mãe reinava absoluta. Alma foi direto para a UTI, pesava pouco mais de um quilo. A mãe também precisou de cuidados, tendo enfrentado muito sangramento e complicações pós-parto. Duas semanas depois, mãe e filha relativamente recuperadas, foram para casa. Quanto ao pai, andava então às tontas, sem discernimento necessário para ser de alguma serventia. Em casa, era um tanto inútil, a vantagem era maior quando estava fora.

    De início, os recém-casados até que se esforçaram. Criaram alguma coisa parecida com um lar, que acabou por criar-se mesmo emaranhado por incapacidades e rejeições. O pai concluiu a faculdade, mas teve de contentar-se em ganhar algum dinheiro tocando baixo elétrico em bailes de debutantes, casamentos e festas de formatura. A mãe pôde continuar seus estudos, mas a barriga crescia e os dedos inchavam como salsichas. E os enjoos eram horrorosos. Pouco antes de Alma nascer, ela desistiu. O pai percebeu que esse negócio de tocar em festinhas não iria sustentar a família. Além disso, detestava de verdade as músicas a que era obrigado a se submeter. Prestou o primeiro concurso que abriu na prefeitura e, aprovado, tornou-se funcionário público. Depois de dar à luz a Alma, a mãe voltou a tocar, tentou dar umas aulas, mas alguma coisa havia se perdido. Fez um curso de corretor de imóveis e igualmente foi tratar da vida.

    Moravam num velho sobrado, herança de algum parente obscuro do pai. Um carro de sessenta anos na garagem, atulhada de lixo. A casa era precedida por um medonho jardinzinho coberto por ervas, com o mato alto e malcuidado. Não havia sequer uma flor ali, nem umazinha crescida por engano. A casa era escura e feia, com poucos móveis pesados e tristes. O cheiro de decrepitude subia as escadas rangentes e entrava nos quartos. O banheiro tinha ladrilhos brancos, pastilhas coladas displicentemente, algumas já caídas e outras em vias de cair. Uma banheira antiga de pés de dragão, cuja origem ninguém sabia, estava cheia de crostas indeléveis. A pia nua, acima um espelho manchado. Os canos chiavam. À medida que Alma crescia, seus pais se afundavam cada vez mais, cada um mergulhado em seus próprios dissabores. Iam para seus empregos conformados, deixando-a primeiro na creche e, com o passar dos anos, na escola. buscavam-na ao sair, após mais um dia fastidioso e carente de qualquer realização. Não havia conversa. Passaram a viver em quartos separados logo após amainados os furores iniciais pós-núpcias, isolados por seus instrumentos e ao mesmo tempo conectados pelo barulho que preenchia o restante da casa, a rua, o bairro e os ouvidos que por ali eventualmente passavam.

    Alma saiu magra, apática, cabelos claros ensebados e que cheiravam a falta de higiene. O nariz sempre escorrendo um ranho enferrujado, olhos abatidos e conformados. Cresceu mal, dando a impressão de crescer por obrigação. Todo o processo de desenvolvimento era retardado. Demorou para nascer os dentes, atrasaram as primeiras palavras, tardou para andar e demorou para sair das fraldas. Urinou algumas vezes nas próprias pernas, o que lhe valeu alguns epítetos proferidos pelo pai, como cadela, mijona, torneira frouxa. Vestia sempre as mesmas roupas, um vestido e sandálias de plástico, estivesse o tempo como estivesse. Nos dias muito frios, havia um casaquinho. Roupas que não eram suficientes para cobrir o inverno e que a fizeram sofrer com sucessivas doenças respiratórias. Não era abandonada, mas quase. Davam-lhe comida, um banho de vez em quando, e escovavam-lhe os dentes mais de vez em quando ainda. Arrumavam-lhe roupas, sempre as mesmas, porém maiores. O termo judiada assentava-se excepcionalmente a ela, e os vizinhos podiam proferir todo o ranço que se presta a ser expelido pelas bocas desocupadas. Alma possuía seu próprio quartinho de menina, seu refúgio de paredes cor-de-rosa, uma penteadeira capenga, mas bem arrumada, e um armário com figurinhas fofinhas. Seu berço ainda está ali e serve de palco para suas brincadeiras com seus brinquedos e com seu cachorro imaginados, ouvindo a música triste e passiva da mãe, agressiva e ansiosa do pai.

    Era um cenário aparentemente imutável, até mudar. A completa fragmentação do que era flagrantemente frágil vinha sendo desenhada desde o início. A mudança, quando veio, veio arrastando-se como um gato a preparar o bote. E, assim como o ataque do gato, muito rápido, as coisas ficaram muito feias.

    A Mãe, no violino, loira, magra, olhos claros e nervosos, com a boca chupada para dentro, tinha um corpo repulsivo quando considerado como objeto sexual. Suas tetas estavam murchas, com bicos vencidos pelo cansaço e, de modo desagradável tinham pelos. Ultimamente, ela vinha tremendo constantemente e fazendo movimentos nervosos, até que um psiquiatra sádico a tornou viciada em barbitúricos, deixando-a como um vegetal com um mínimo de autonomia para lembrar-se de tirar a calcinha para urinar. Ela era corretora de imóveis, empregada de uma grande empresa, uma das melhores do ramo. Seus Sonhos Moram Aqui era o bordão e também o que estava escrito no uniforme que a obrigavam a usar.

    Cada vez mais amargurada, entrou num mundo próprio em que era famosa; tocava seu violino para multidões em êxtase, sendo solista de grandes concertos. Nestes devaneios, recebia toda a atenção que almejava. No entanto, o impacto da realidade foi se tornando avassalador. Para se proteger desse impacto, ela se enfiava cada vez mais nos delírios. Até que um dia teve um ataque digno de uma diva contrariada enquanto mostrava aquela casa à venda há 207 semanas. Repetia a mesma ladainha sobre o ótimo estado do encanamento e da fiação quando, ao ser questionada sobre uma rachadura no piso da cozinha, atirou-se no chão e começou a cuspir e a urrar. Os clientes, que já não estavam gostando da casa, saíram às carreiras. Não tentaram ajudar, apenas se mandaram. Quando alguém fez a gentileza de entrar para ver o que eram aqueles gritos, a mãe tinha rasgado a roupa e aberto na carne algumas feridas bem feias. A polícia foi chamada e, logo depois de tomar conhecimento da ocorrência, chamou o SAMU. Os paramédicos tiveram certo trabalho para colocá-la na ambulância e aplicar-lhe um sedativo. O patrão, preocupado, arrumou-lhe um médico, um psiquiatra, que receitou medicamentos controlados. Esses medicamentos aceleraram o processo de esfacelamento mental, que terminou por conduzi-la ao suicídio.

    O pai, no contrabaixo, alienado de tudo, usava óculos grossos com armação de plástico imitando madeira, barriga represada pela camisa de botões. Tinha boca pequena e fraca, lábios brancos e medrosos, encimados por um bigode amarelado pelos cigarros. Suas pernas lembravam as das seriemas, com pés enfiados para dentro e vãos dos dedos amarelos e doentes. Era dependente de cocaína e álcool, além dos cigarros; seu retrato de cliente assíduo e sem noção do mês estava pendurado em todas as biqueiras e bibocas decadentes da cidade.

    Era auxiliar administrativo, trabalhava numa repartição, seja lá o que isso signifique. Detestava tudo ali; o café era frio, e as pessoas eram ainda mais frias, hostis até. Só faltavam rosnar. O serviço era abominável, um desperdício sem sentido. Passava horas lamentando seu futuro não realizado e perguntando-se se algum dia haveria algum propósito em sua vida. Já era amigo do álcool, sempre fora; gostava de ouvir Chopin enquanto degustava um vinho vagabundo. Cada vez mais exasperado, um dia achou que tomar um drinque durante o almoço viria a calhar. E realmente calhou, meio bêbado pôde suportar a tarde. Depois de um tempo, quando a quantidade de álcool aumentou e as tardes começaram a tornar-se novamente insuportáveis, achou que podia muito bem fazer duas horas de almoço. Ninguém parecia se importar mesmo. Só foi espinafrado uma vez, pego dormindo no banheiro depois de exagerar um pouquinho no gim. E mesmo essa reprimenda foi anêmica: Quer dormir, dorme; só não fica fazendo esses barulhos, parece um Chevette com motor engasgado. O próximo passo foi começar a dar uma pausa à tarde para esticar as pernas, fazer o sangue circular com uma caminhada até o bar que ficava ali ao lado. Tomando uma cachaça, conheceu o traficante que riu do seu estado engrolado.

    — Isso passa — ele disse — só cheirar um pouco disso aqui. Passou mesmo; ele era invencível, a sensação de infortúnio desapareceu. E o pó o levou a mais pó e a

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