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Metropolis
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E-book252 páginas3 horas

Metropolis

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Sobre este e-book

Por trás das fachadas dos prédios e dos seus habitantes, nos cruzamentos entre os descaminhos e os destinos, a metrópole abriga multidões de sonhadores e sofredores, e suas estórias. Os contos do oitavo livro de Eduardo Capistrano são visões dos tempos modernos, janelas para curiosos e bizarros casos ocultos pela agitação das cidades.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento16 de mai. de 2024
Metropolis

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    Metropolis - Eduardo Capistrano

    Palavras Cruzadas

    Todos os dias, Júlio atravessava aquela praça para chegar ao trabalho. Costumava alternar o caminho, ora circundando a praça por um ou por outro lado, ora trespassando-a pelos caminhos sinuosos que levavam à fonte que tinha no centro, e ao redor dela. Vários bancos ladeavam as passagens. Desde o primeiro dia que fez aquele caminho, ele notou a curiosa figura que habitava a praça.

    Os pedestres mais apressados e desatentos — ele próprio, por um certo tempo — veriam nada além de um mendigo. Certo dia, entretanto, Júlio abaixou-se para amarrar seus cadarços bem próximo dele. Naquele instante fortuito, enquanto seus dedos mecanicamente davam o nó, seus olhos procuraram algo com que se ocupar.

    Examinou então, pela primeira vez, o velho aparentemente desleixado sentado no banco próximo. Tinha os cabelos brancos, curtos e lisos, penteados de lado, e a barba branca indo de costeleta a costeleta, bem aparada. As roupas escuras estavam amarrotadas e vestidas de qualquer jeito. Isto compunha sua aparência de aparente mendigo, reforçado pela verdadeira profusão de papéis rasgados que tinha nas mãos, sobre o colo, sob os pés, e saindo tanto de uma bolsa próxima, como de dentro das pilhas de cadernos que sempre tinha ao seu lado no banco. Sobre os cadernos, um rádio portátil ancestral, sintonizado em uma estação AM.

    O velho nunca parava de examinar os papéis com uns óculos de leitura de aro quadrado, escrevinhando neles usando um lápis. Júlio já havia notado aquele hábito peculiar dele, mas então percebeu que todos aqueles papéis estavam cobertos de linhas formando grades, e o velho preenchia os quadrados com letras. Palavras cruzadas.

    Depois daquele dia, Júlio procurava o velho na praça e escolhia um caminho que passasse perto dele, para satisfazer sua curiosidade. O cruzadista, como começou a chamá-lo, não tinha um banco preferido. Estava na praça mesmo nos dias de chuva, ficando então no banco de um ponto de ônibus coberto. O velho sempre estava lá, preenchendo os quadros, consultando seus cadernos, em um ritmo comedido, ocasionalmente parando para limpar seus óculos, perdendo o olhar na distância.

    No final de um mês de férias, Júlio passava pela praça e resolveu ver se seu habitante estava por ali. Sentou-se em um banco na frente dele, podendo estudá-lo sem a pressa costumeira. O cruzadista rascunhava, rabiscava, contava usando os dedos, limpava os óculos, manipulava o rádio. Parou em certo momento para sacar um sanduíche da bolsa e o comeu vagarosamente. Bateu os farelos das mãos, apontou o lápis e voltou a escrevinhar.

    Em certo momento, os olhos do cruzadista fixaram-se sobre ele, por cima dos óculos. Júlio tentou disfarçar. Quando olhou novamente, o velho ainda o encarava. Com um sorriso inesperado, ele fez espaço no banco ao seu lado e fez um gesto para que o rapaz se sentasse.

    Júlio demorou para fazê-lo. Considerava-o familiar, de tanto que o espionara, e imaginou que o velho poderia ter percebido sua curiosidade. Um tanto constrangido, sentou-se ao lado dele. Pôde enfim escutar o que tocava o rádio, sempre em volume baixo demais. Era uma estação de notícias. Depois de alguns instantes de silêncio, o velho tirou os óculos, estendeu-lhe a mão e disse: Vítor. O rapaz apresentou-se. O cruzadista deixou escapar um sorriso.

    — Pelo visto, alguém finalmente percebeu minha bagunça — disse o velho, sorrindo, recolocando os óculos e voltando a escrevinhar. Sem graça, Júlio explicou tudo, que passava ali quando ia ao trabalho, que via ele sempre fazendo palavras cruzadas.

    Disposto a satisfazer a curiosidade do rapaz, Vítor mostrou a pilha de papéis que tinha nas mãos no momento.

    — Este é a lateral, este é o fundo, estas aqui são as camadas, aqui tenho as dicas.

    À expressão de incompreensão do rapaz, o velho riu e abriu o caderno no topo da pilha ao seu lado, na página marcada. Nela estava desenhado um cubo fatiado em camadas. Traços davam códigos alfanuméricos a cada uma das camadas. Vítor exibiu os papéis que chamou de camadas, os códigos anotados no canto de cada uma das folhas.

    — Palavras cruzadas tridimensionais?

    Vítor assentiu com a cabeça, sem parar de escrever. Levando a mão à boca aberta, os olhos arregalados finalmente percebendo o que eram todos aqueles papéis, Júlio sentiu todo o ócio de sua vida como um peso terrível que o fez encolher os ombros.

    — Você deve gostar muito disso — foi o que conseguiu falar.

    Vítor deteve o lápis e o balançou. Leu alguma coisa nas cruzadas, virou para Júlio, colocando o braço sobre o encosto do banco e perguntou: — Quer que lhe conte por que faço isso?

    É claro que Júlio queria.

    — Sempre gostei de fazer cruzadas. Comprava brochuras de enigmas, recortava de jornais, guardava em um caderno pra ir fazendo. Eu era professor em uma faculdade, e pra matar tempo entre as aulas, fui fazer cruzadas. A horizontal era: atividade profissional. Anotei, emprego. A vertical que emendava com o r era privação. Anotei, perda. Naquele dia, eu fui demitido. Dias depois, amaldiçoando minha sorte, após malfadadas tentativas de conseguir algum trabalho, retomei a cruzada para esfriar a cabeça e me dei conta da coincidência. Era a primeira vez que esse tipo de coisa acontecia, e me propus a registrar se acontecesse de novo. A anotação da primeira ocorrência tinha tudo para jazer sem sequência no caderno. Até acontecer de novo.

    A vertical era pequena ave. Pássaro. A horizontal, abertura na parede para luz e ventilação. Janela". Mal terminei de canetear na folha, algo se chocou contra a janela diante da escrivaninha em que estava, trincando-a. Procurei pelo que era ainda sem me dar conta, mas quando vi o pequeno cadáver aos meus pés, estremeci e lembrei da anotação no caderno.

    "Julguei tratar-se de outra coincidência. Mas a coisa sobre coincidências, é que as seguintes multiplicam a impressão causada pelas anteriores. Dessa forma, pensei, é que os homens acreditaram em deuses, em magia, em destino. Pelo acúmulo de coincidências.

    "Resolvi tratar do assunto cientificamente. Orgulho-me até hoje de ser um indivíduo racional, a despeito do que possa acreditar ao fim de meu relato. Meu raciocínio foi o de se tratar de uma ocorrência fruto da probabilidade, ou seja, que por menor que fosse a chance, duas palavras que se cruzam em uma palavra cruzada coincidir com um acontecimento no mundo era apenas uma questão de tempo. Para aumentar as chances de ocorrer, eu deveria fazer mais palavras cruzadas, e por mais tempo. Não esperava que desse certo. Quero dizer, o plano era pra que desse. Mas não tanto.

    Sempre gostei de silêncio pra fazer minhas cruzadas, mas certo dia, em um restaurante, procurando emprego em um jornal de classificados, esbarrei em inesperadas palavras cruzadas. A comida chegou e alternei a atenção entre fisgar comida do prato e lançar as respostas nos quadros. Terminei de comer e de resolver as cruzadas, quando entreouvi as pessoas comentando o que passava na televisão. Atentando para a notícia, um arrepio persistente correu pelo meu corpo, enquanto eu olhava para a televisão e para as palavras cruzadas. A horizontal era composição sobre trilhos, plural. Trens. A vertical, reunião. Encontro".

    "O choque me causou uma terrível noção de que eu havia descoberto uma forma de ver as engrenagens do universo em funcionamento. Minha razão refutava essa mistificação. Não estava prevendo coisa alguma, pois as coisas aconteciam à medida em que as palavras se encontravam. O máximo que me permiti, o que certamente já escapava da razão pura, foi concluir que experimentava os fatos do mundo de maneira diferente, através daquelas palavras que se cruzavam.

    "Logo percebi que não conseguiria manter minha razão pura. Meu argumento inicial a preservou por algum tempo. Ora, eu era apenas um observador, pois faltava causalidade. As palavras estavam escritas, o criador do enigma, sim, talvez pudesse considerar-se o originador, um profeta. Eu, como outras tantas incontáveis pessoas, resolvia aquelas palavras cruzadas. Não podíamos ser os causadores.

    Mas comecei a anotar as ocorrências assim que ocorriam depois de resolvê-las. Para outra pessoa que resolvesse as mesmas cruzadas em outro momento, não haveria coincidência. Elas estavam ocorrendo comigo. O fato de ocorrerem independente da fonte dos enigmas, seja jornal, brochura ou almanaque, lançava por terra a existência de um profeta de palavras cruzadas" em algum lugar.

    "Minha experiência requeria maximizar ainda mais as resoluções e minha atenção aos possíveis resultados. Se pudesse descartar o uso de palavras cruzadas comerciais, provaria de uma vez que o efeito estava em mim. Era necessário que eu mesmo as elaborasse, mas para maximizar as probabilidades de ocorrências, comecei primeiro com cruzadas múltiplas, ou seja, com horizontal, vertical e profundidade, cujas palavras como que brotassem, ou atravessassem o plano original.

    "Tive receio por minha sanidade, ao constatar não apenas que os fatos coincidentes continuaram ocorrendo, como que sua frequência aumentou. Tentei apegar-me à ideia de que havia descoberto apenas uma curiosa forma de associação de palavras com fatos, baseado em probabilidade. Repetia para mim que os termos separados são genéricos, que mesmo cruzadas as palavras formavam um quadro amplo demais, e que o que lhes dava valor era a minha percepção das circunstâncias e, sobretudo, minha interpretação, que vinculava e via relação entre as palavras e a ocorrência.

    "Tentei apegar-me ao fato de eu propositalmente ter aumentado os cruzamentos potenciais entre palavras, e minha atenção sobre notícias. E nesse campo da interpretação das possibilidades, quanto maior o escopo, maiores as chances de encontrar resultados. Se eu era livre para cruzar duas palavras e encontrar, naquele momento, no mundo inteiro, uma ocorrência à qual eu pudesse vincular o cruzamento, não estava realmente fazendo nada de mágico, estava?

    Como eu disse, eu tentei apegar-me a essas noções. Não sei, hoje, se consegui. Ampliei minhas cruzadas de três planos para o cúbico. Hoje eu faço, como lhe mostrei no começo, uma palavra cruzada tridimensional, em que uma determinada letra ocorre em três palavras, em três planos diferentes, X, Y e Z. Você pode tomar quaisquer dois planos como iniciais e considerar o terceiro em camadas. Eu crio primeiro a base do cubo — o plano X mais de baixo — depois a lateral da esquerda — o primeiro plano Y — então começo pela primeira fatia, a face mais da frente, o primeiro plano Z, e vou avançando até o fundo. É o que lhe mostrei no começo.

    Vítor arrumou os óculos e retomou as escrevinhadas, deixando um perplexo Júlio examinando o desenho no caderno, contendo as diversas folhas com as soluções de todas as camadas, de cubos com faces de 4 quadros por 4, 5 por 5, 6 por 6, os cubos crescendo conforme as datas escritas nas capas aumentavam. Os mais recentes eram enormes, de faces de 20 por 20 quadros. Um caderno da pilha tinha os esboços de uma palavra cruzada monumental, formada por grades de células hexagonais.

    — Ou pra passar o tempo — riu Vítor, na perplexidade de Júlio. — Que tal essa explicação?

    Aliviado depois do que considerava uma complexa fantasia de Vítor — para não chamar de loucura — Júlio entendeu que o velho lhe pregara uma peça. Ainda rindo, Vítor ofereceu algumas palavras cruzadas a resolver para Júlio, convidou que não se acanhasse em cumprimentá-lo e conversar com ele, garantiu que não era nem mendigo nem louco. Júlio aceitou a oferta, conversou sobre amenidades com Vítor que, apesar de parecer mais preocupado com seus papéis, parecia considerar a conversa muito bem-vinda.

    Despediu-se de Júlio, que ainda soltou um suspiro de alívio, antes de sair pelos caminhos da praça. Vítor completou mais um cruzamento, retornou o volume do rádio para o audível, prestou atenção em uma notícia e chacoalhou a cabeça. Voltou algumas folhas, para aquelas que fazia quando o rapaz sentou-se diante dele. Horizontal: colega, companheiro. Vertical: _____ César, imperador romano.

    O Drinque

    Os coquetéis que o cliente havia pedido eram a única pista que o barman tinha para seu estranho comportamento. Há algumas horas, com o bar felizmente ainda com pouco movimento, sentou-se e pediu, sem cerimônia, um Mai Tai. Como era seu costume, aguardou alguns instantes diante do cliente, cotovelos no balcão, dedos das duas mãos se tocando e flexionando. O homem não fez sequer contato visual.

    — Tradicional — disse, enfim.

    — By the book, então.

    As mãos ágeis despejaram jatos das garrafas de rum branco e preto e curaçao de laranja, além de uma garrafa sem rótulo, antes de espremer suco de lima fresca no shaker de duas peças, chacoalhar com gelo, peneirar a mistura com uma Hawthorne em um copo highball, enfeitá-lo com abacaxi, menta e casca de lima, e colocar um canudo antes de empurrá-lo para o cliente.

    A despeito da rapidez, o cliente estudou cada gesto e movimento, tomando rápidas notas em um pequeno bloco. Ao fim, com as sobrancelhas franzidas, apontou com o mindinho a garrafa sem rótulo.

    — Que orgeat você usou?

    — Faço o meu próprio — disse o barman já se afastando, crendo-se dispensado, e seguindo para o próximo cliente. Mas não demorou até sua atenção ser de novo capturada pelo comportamento do crítico, como o apelidou mentalmente. Com o copo ainda cheio sobre o balcão, o crítico tomava notas e analisava a bebida com estranhos instrumentos. Eventualmente começou a bebericá-lo, exibindo as contorções faciais de um degustador. O barman deu-se por contente assim que o viu dar um sorriso de canto de boca, fechar e guardar o bloco de notas e passar a desfrutar o drinque de maneira mais normal.

    Aquela estória, contudo, não havia terminado.

    — Sim, senhor? — disse o barman, atendendo o chamado do crítico, feito com um simples dedo erguido.

    — Sazerac.

    Foi o barman quem ergueu as sobrancelhas daquela vez, mantendo-as erguidas enquanto entornava absinto dentro do copo baixo tirado da geladeira. Adicionou gelo, e em outro copo idêntico misturou Cognac, açúcar e Peychaud´s com mais gelo. O cliente, todavia, não tirava os olhos do copo. O barman executou malabarismos espetaculares, fazendo garrafas voarem girando pela frente, pelas costas, por baixo das pernas, ou rodando copos e porta-copos sobre o balcão, arrancando interjeições e aplausos do público ao redor, mas o cliente não lhes dava atenção. Em vez disso, estudava a precisão de cada dose despejada no copo. Retirada a longa colher, em dois gestos rápidos o barman descartou o gelo esverdeado do primeiro copo, e despejou nele, através do coador Hawthorne, o conteúdo do segundo. Com uma casca de limão, o copo estacionou gentilmente diante do cliente.

    Cognac. Gelo e o absinto descartados — observou o cliente, quase fazendo contato visual.

    — By the book — sorriu o barman.

    Enquanto deslizou sobre os calcanhares três clientes para o lado, pelo canto do olho o barman observou enquanto o homem misterioso observava o drinque, intocado, sobre o balcão. Já estava preparando os próximos pedidos, esticando-se e abaixando-se atrás dos ingredientes, e com as garrafas lançadas ao ar, não conseguia deixar de olhar ocasionalmente para o crítico. Fazia os mesmos testes e experimentos que fez no primeiro drinque. Ao menos, a conclusão foi a mesma: aparentemente satisfeito, desfrutou também da segunda bebida.

    Com o bar já caminhando para a calmaria do fim do expediente, não tendo mais tantos obstáculos para ver aquele estranho habitante do balcão, no mesmo ponto em que ficou durante a noite inteira, veio uma vez mais o dedo erguido, sendo atendido prontamente.

    — Senhor?

    — Um Old Fashioned.

    Encharcando o torrão de açúcar com pulsos de Angostura, o barman passou a moê-lo com água gentilmente, inclinando o copo ao final para garantir que tudo estivesse completamente dissolvido e assentado no fundo do copo. Encheu o copo de gelo.

    A garrafa de bourbon Old Forester terminou uma pirueta no ar de gargalo para baixo, exatamente em suas mãos. Uma profusão de pequenas bolhas surgiu no líquido em seu interior, enquanto um fio dourado fluía pelo bico dosador para dentro do copo, mesclando-se ao seu conteúdo. O fio foi cortado apenas alguns segundos depois. O barman sequer olhava para o copo. Determinava a medida pelo peso da garrafa, por sua inclinação e a posição de seu pulso, pelo tempo que manteve a garrafa entornada, pela memória muscular praticada por décadas de repetições de movimentos fluidos pondo fluidos em movimento.

    O copo baixo recebeu uma fatia de laranja e uma cereja antes de deslizar para o cliente. Este sacou seus estranhos instrumentos, colocou-os na bebida e fez anotações em seu bloco, antes de bebericar do copo lentamente, fazendo bocas e expressões bizarras. O barman teria receio do homem ser um ladrão de receitas, se ele tivesse pedido alguma de suas criações originais. Mas não era o caso; havia pedido receitas clássicas, notórias, talvez difíceis de acertar, mas que qualquer coqueteleiro competente conseguiria fazer.

    Concluiu que devia ser algum crítico ou degustador, e continuou seu trabalho pela longa noite. Depois de tanto estudar o crítico, foi a vez dele ser estudado. O homem misterioso havia acabado o último drinque e, depois de uma breve pausa pensativa sobre os três copos vazios diante de si e as notas em seu bloco, voltou-se para a figura do barman.

    Quem o observasse casualmente ali, em seu ambiente de trabalho, veria um senhor entrando nos cinquenta — ou sessenta? — anos, com a frente da cabeça calva, os cabelos grisalhos que restavam formando um arco sobre a nuca. Parecia-se com James Caan. A expressão em seu rosto parecia ter se congelado na leve irritação, com o cenho franzido, os olhos um tanto espremidos, e um sorrisinho cínico que a qualquer momento podia soltar, com uma voz serena e amável, os mais chulos impropérios. Teimava em usar o mesmo colete vermelho-vinho que usava desde os vinte anos, que agora o deixava parecendo sempre um pouco espremido. Era mais alto que a média, e suas mãos eram grandes e de dedos finos, com movimentos precisos e fluidos, que podiam pertencer a um pianista ou a um cirurgião.

    Um exame rápido das paredes atrás do balcão exibia os incontáveis prêmios de coquetelaria e mixologia, as molduras de tamanhos diferentes encaixadas em um quebra-cabeças que ocultava a parede por completo. E misturados às garrafas — mais para trás, para não atrapalhar a manipulação delas — troféus com medalhas penduradas remontando a décadas de sucessos reconhecidos.

    Ao fim da noite, o barman ajudava a pôr as cadeiras de pernas para o ar sobre as mesas, ao fim do que passou à tarefa ingrata de enxotar os clientes que mesmo depois disso permaneciam no estabelecimento. Dois beberrões frequentes, um infeliz que estava afogando alguma mágoa recente, e... o cliente misterioso. Sabia que ele ainda estava lá, e já sabia que não era por causa da ebriedade.

    Como era seu costume, cruzou os braços sobre o balcão e

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