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Terra Fria
Terra Fria
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E-book378 páginas5 horas

Terra Fria

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Sobre este e-book

Uma octogenária em fim de vida recebe a visita de um padre aposentado, para a última confissão, e ambos revisitam o passado na esperança de exorcizarem demónios de consciência. Cinquenta anos antes, a mulher fora denunciada à PIDE por um bufo que depois desapareceu sem deixar rasto juntamente com o agente enviado para investigar a denúncia. Mas o demónio de consciência mais antigo nascera anos antes, dos escombros da Segunda Guerra Mundial, nas ruínas de um coração.

IdiomaPortuguês
Data de lançamento11 de fev. de 2014
ISBN9781310043130
Terra Fria
Autor

Manuel Alves

https://www.patreon.com/manuelalves--O autor só fala de si mesmo na terceira pessoa quando tem de falar do autor ou, é claro, quando pratica a extraordinária arte da feitiçaria imaginativa — há quem lhe chame Escrita. Se houvesse na minha vida lugar para gatos, teria dois e um seria um Gremlin disfarçado. Tenho um furão e uma hiena — ambos imaginários.--The author only speaks of himself in the third person when he has to speak about the author or, of course, when he conjures the extraordinary art of imaginative sorcery—some call it Writing. If there was any place for cats in my life, I would have two and one of them would be a Gremlin in disguise. I have a ferret and a hyena—both imaginary.

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    Terra Fria - Manuel Alves

    Tu confessas-me e eu perdoo-te.

    Esmeralda viu nos olhos do bisneto a prova de todos os milagres possíveis. Sorriu para o miúdo com um pedido nos lábios.

    — Apetece-me ir agora, pode ser? — disse ela.

    Paulinho levantou a carita redonda e fitou a mãezinha com os olhitos a adivinhar tristezas. Não sabia responder. A mãezinha era muito velha e às vezes já dizia coisas que ele não entendia. Chamava-lhe mãezinha porque era assim que todos lhe chamavam. É claro que não eram todos filhos dela, mas isso não interessava. Era a mãezinha, e pronto. Paulinho não tinha a certeza, mas achava que lhe chamavam assim porque um dia, há muito tempo, em que ela já foi muito jovem, lhe saiu o mundo da barriga. Mas mesmo há muito tempo.

    — Deixas-me ir? — disse Esmeralda, uma curiosidade divertida no olhar.

    Paulinho encolheu os ombros. Não sabia o que dizer. Só tinha seis anos, e os miúdos de seis anos não mandam nada em casa. A mãezinha tinha de perguntar a alguém que mandasse. Ele apenas olhava para a mãe do mundo deitada na cama, que lhe pedia para a deixar ir.

    — Anda lá, Paulinho. Deixa-me ir, que não digo à tua mãe. Não tens de te preocupar com o chinelo.

    Esmeralda sorriu uma piscadela cúmplice que perdeu a malícia na fraqueza da velhice.

    Paulinho não entendeu a razão de se preocupar com um chinelo, ameaça antiga perdida no tempo antes de ele nascer. Se a mãezinha lhe dissesse que ele não precisava de se preocupar em ficar uma semana sem jogar Playstation, isso sim, é que já ia ser a doer. Saberia muito bem o que custaria o castigo se deixasse a mãezinha ir. Mas a verdade é que ele nem sequer sabia o que podia fazer para a deixar ir. Nem sequer para onde.

    A confusão no rosto do miúdo criou um problema difícil de resolver e Esmeralda sorriu, os dedos arrastados sobre o linho gasto da coberta na tentativa de descoser a mão do tecido. Quis fazer um carinho na face do bisneto mas faltou a força para levantar o braço. O corpo inteiro já lhe tinha morrido, ela é que era teimosa e não se deixava ir a si mesma. Ainda lhe restava a fala para deixar sair coisas que não queria levar para a cova. Já havia demasiados demónios por baixo do chão e não ia levar mais medos para esse inferno de terra fria. A chiadeira fininha da porta do quarto levou os demónios do pensamento. Era Minda. Oxalá a filha trouxesse uma resposta.

    — Ele já chegou, Minda? — disse Esmeralda, um receio urgente.

    Estava quase a morrer, e o único medo que a afligia era o de não ter tempo para exorcizar coisas negras.

    — Já — disse Minda, uma tristeza resignada. — A mãe tem a certeza de que quer mesmo que seja ele?

    — Os padres são todos iguais.

    — A mãe sabe o que eu quero dizer.

    — Pois sei. E tu também sabes o que eu quero dizer. É ele que vai ouvir a minha última confissão, e assunto arrumado.

    Minda esvaziou o peito em desistência conformada. Era escusado puxar por uma corda presa ao focinho de uma mula teimosa. Lutar contra a determinação da mãe era empurrar o mundo com as mãos.

    — Vou dizer-lhe para entrar. Vamos, Paulinho, a mãezinha precisa de falar com o senhor padre.

    Paulinho deu a mão à avó e deixou-se ir numa tristeza a espreitar por cima do ombro.

    Esmeralda sossegou o miúdo com um sorriso que assegurou coisas boas.

    — Não te preocupes, Paulinho — disse ela. — Não vou já.

    Paulinho seguiu de mão dada com a avó e levou um sorriso que o acompanhou até ao fundo do corredor. Ficou sério mal entrou na sala e olhou para o velho alto e magro, todo vestido de preto, que esperava em pé.

    — O senhor padre pode entrar — disse Minda.

    Paulinho arqueou as sobrancelhas para a avó, sem saber porque é que ela lhe apertava tanto a mão.

    — Obrigado — disse o padre, inclinado numa vénia ligeira de educação muito cristã.

    Falsidades que não interessavam a Minda. O que ela queria era que aquele homem nem sequer pusesse ali os pés. Em casa, só se devia receber as pessoas de quem se gostava. Ela também só voltou a pôr os pés na igreja há uns anos, quando a paróquia foi entregue a um padre mais novo e ele deixou de celebrar a missa. Filho da puta de homem.

    — É a última porta à direita — disse ela.

    Minda não fez qualquer questão de o acompanhar.

    Paulinho encostou-se à avó e coçou o nariz. O senhor padre cheirava àquelas bolinhas que se punha nos armários para a roupa não ganhar buracos.

    — Cheira à nafitalina — disse Paulinho, a última palavra uma desafinação de memória.

    Minda sorriu para o miúdo sem vontade de o corrigir. Ela preferia que o padre cheirasse a morto.

    O padre seguiu sozinho pelo corredor. O passar do tempo remodelara a casa. Estava muito diferente da última vez que ele ali entrou, há mais de sessenta anos. As paredes de madeira deitaram-se abaixo e ergueram-se de tijolo e cimento. O chão era carpete macia sobre tijoleira e já não se via para a adega, por entre as frinchas do soalho. Agora via-se tecto e não telhado. Fossem as pessoas tão fáceis de recuperar como as casas. Parou diante da última porta à direita. Santo Deus, que medo de entrar.

    — O que é que ele veio cá fazer?

    Minda e Paulinho voltaram-se para Isabel, parada à porta da rua com dois sacos de compras nas mãos e, no rosto, uma expressão reservada para discussões.

    — Filha… — disse Minda, um pedido de bandeira branca na voz.

    — É o carro dele que está lá fora, não é? — disse Isabel.

    — É. Mas…

    — Não me venha com mas nem meio mas, mãe! Esse… homem não tem o direito de entrar nesta casa.

    — Queres ir tu dizer isso à mãezinha?

    Minda sabia bem a filha que tinha. Isabel não entraria no quarto da mãezinha enquanto o padre estivesse lá.

    — A mãe devia ser a primeira a dar-me razão.

    — Filha…

    — A mãe sabe muito bem que aquele velho filho duma…

    Isabel.

    Minda fez um sinal de olhos que lembrou à filha da presença do sobrinho.

    Paulinho olhou, à vez, para a avó e para a tia sem fazer a mais pequena ideia do que se estava ali a passar.

    Isabel expulsou a irritação do peito numa afronta de discussão engolida com vinagre e urtigas. Havia algumas coisas que lhe faziam subir o fel à boca. Mas pessoas, só uma. O filho da puta daquele homem.

    — Vou arrumar as compras — disse ela.

    Minda agradeceu a contenção com um sorriso triste, atravessou a sala e aliviou a filha de um saco de compras.

    — Vá, eu ajudo-te. E tu, Paulinho? Também queres ajudar ou ficas aqui sentadinho no sofá, a ver televisão?

    Paulinho esticou um sorriso reservado à decisão de escolhas fáceis e sentou-se no sofá, o polegar já pressionado no comando da televisão.

    Minda e Isabel esqueceram as zangas, por instantes, e sorriram para o miúdo.

    — Então está bem — disse Minda. — Quando acabarmos de arrumar as compras a traz-te um lanche, está bem?

    Paulinho acenou que sim e esqueceu o mundo no ecrã da televisão. Mas o mundo não o esqueceu. As vozes chegaram da cozinha, a avó e a tia numa discussão que ele não compreendia. Só sabia que não gostava da maneira como elas falavam, como se fossem pessoas estranhas zangadas por causa de coisas parvas.

    Pressionou um botão no comando e aumentou o som. A televisão falou mais alto mas não conseguiu abafar completamente as vozes que vinham da cozinha. Paulinho levantou-se do sofá e espreitou pela porta que dava para o corredor. Olhou para trás, na direcção da cozinha, deixou a televisão ligada e seguiu pelo corredor, os pés a pisarem apenas a carpete em passos silenciosos. Parou diante do quarto da mãezinha. A porta estava um bocadinho aberta e ele ouviu a mãezinha a falar com o senhor padre, muito baixinho, a contar segredos que mais ninguém tinha nada que ouvir. Encostou a orelha à porta e as dobradiças chiaram.

    — Podes entrar, Paulinho — disse Esmeralda.

    Paulinho encolheu o pescoço no instinto de asneira descoberta. Não adiantava esconder-se. Tinha apoiado a mão no rebordo da fresta, e quatro dedos denunciaram-no facilmente. Espreitou só com um olhito descoberto.

    Esmeralda consumiu forças num sorriso carinhoso e incentivou o bisneto com um gesto de mão que custou horrores.

    — Vá, anda. Não faz mal, Paulinho. O senhor padre Hilário não morde.

    Paulinho entrou no quarto com uma certa desconfiança. Achava que o senhor padre mordia pessoas, sim senhora. E pela maneira como a avó e a tia começaram a discutir por causa dele, se calhar, até as comia. Chegou-se à cama sem se aproximar demasiado do senhor padre, que devia ser tão velho como a mãezinha mas não cheirava como ela. A mãezinha cheirava a lençóis lavados com detergente perfumado e amaciador. Ele não sabia as marcas do detergente nem do amaciador. Eram segredos da avó.

    — É o mais novo? — disse Hilário, uma condescendência de sermão domingueiro mas com interesse verdadeiro.

    Arriscou um sorriso forçado deslocado das circunstâncias.

    Esmeralda molhou os lábios secos com a língua e respirou uma dificuldade contrariada. Não ia gastar demasiada saliva em conversa que se desviasse do assunto que justificava a presença de Hilário.

    — É o filho do mais novo da Minda — disse ela.

    — Não sabia que o Rodrigo tinha um filho já tão crescido.

    Paulinho dividiu olhares curiosos pela mãezinha e o senhor padre. Era evidente que estavam a falar dele e do pai.

    — Não tarda nada, estás um homenzinho — disse Hilário.

    Arriscou a costumeira esfregadela na coroa da cabeça do miúdo, um gesto debilitado de mão com tremuras de idade avançada a esconder doença.

    Paulinho não gostou mesmo nada que o senhor padre lhe tocasse e chegou-se mais para a mãezinha.

    Hilário minimizou a reacção com um sorriso sem vontade.

    Esmeralda não desculpou o miúdo com a timidez típica das crianças perante estranhos. O sangue dela corria-lhe nas veias, e se ele já soubesse acerca do passado tudo o que alguém acabaria por lhe contar, quando crescesse, não se teria limitado a afastar-se de Hilário, havia de lhe ter estourado as canelas com um par de pontapés.

    — Esmeralda, o acto da confissão é apenas entre duas pessoas.

    Hilário virou as palmas das mãos para cima e entrelaçou os dedos diante do peito, a sua maneira civilizada de mostrar oposição.

    — E Deus — disse Esmeralda, um cinismo enraizado na idade.

    — Certamente. Claro.

    — Achas que Deus se chateia com a presença de uma criança?

    — Esmeralda…

    — O miúdo fica! — disse Esmeralda, a firmeza a enganar a doença.

    Hilário descaiu a cabeça em consentimento silencioso.

    — É como preferires — disse ele.

    — Pois é. Eu sei bem que é. Esta pode ser a minha confissão mas também é a tua absolvição. Se queres ouvir o que tenho para dizer, o miúdo fica. Para que a minha filha me desse netos, e os filhos dela bisnetos, deixaram-me a pele em roupa esfarrapada e fizeram-me chorar sangue quando já não saía mais nada. Não é agora que estou a morrer de velha que…

    — Esmeralda, a criança não devia ouvir…

    Esmeralda negou o argumento com um gesto de mão que conseguiu às custas de irritação antiga. O que Hilário pretendia dizer era que ele não queria ouvir aquelas coisas.

    — As crianças ouvem sempre tudo — disse ela. — E não interessa se as deixamos ouvir ou não. Elas escondem-se sempre atrás de alguma porta. Mais vale falar na frente delas, para saberem que as coisas que ouvem são mesmo para elas ouvirem.

    Paulinho olhou para a mãezinha com rapidez de picada de abelha. O senhor padre era capaz de não ser boa pessoa. Tinha feito a avó apertar-lhe a mão e agora fez a mãezinha apertar-lhe o braço com tanta força que estava a um bocadinho de o magoar. Se ficasse com nódoa negra a mãe ia ralhar e ele sem ter culpa.

    — Como fizeste isto, mãezinha? A tem uma igual.

    Esmeralda olhou para o braço dela. O gesto de segurar o bisneto deslizara a manga da camisa de dormir até ao cotovelo. O relevo liso e esbranquiçado da cicatriz riscava um palmo de pele no antebraço, uma coisa feia que sempre fez os possíveis por esconder, e o miúdo nunca a tinha visto porque ela nunca quis que ele a visse. Inventou um sorriso incapaz de esconder a tristeza e o rosto ficou quase gasto de vida no olhar que subiu para Hilário. Aquela cicatriz era coisa velha na memória de velhos, o resto de uma dor antiga que só o fim da vida seria capaz de sarar.

    O pensamento de Esmeralda fugiu para o passado e recuou mais de sessenta anos nas arrumações da memória. Ela tinha de se livrar daqueles monstros que ainda viviam no tempo em que a vida lhe deixou muitas mais cicatrizes no corpo e na alma.

    Se tens de ir, leva-me contigo.

    1945.

    A guerra com os alemães tinha acabado e não se falava em outra coisa do lavadouro da roupa ao gabinete político. O mundo inteiro sentia uma vitória que não era do mundo inteiro, mas fazia-se de conta. Os derrotados, esses, eram uns merdas sem importância que não faziam parte do mundo inteiro. Eram os derrotados. Nessa guerra, Esmeralda não disparou balas nem fugiu delas. Se lhe perguntassem, tanto quanto sabia, mas afinal, que guerra? Ali, à terra, não chegou de certeza. Primeiro, a guerra teria de encontrar Vieira do Minho no mapa para ir dar tiros e rebentar bombas. E mais ainda Cantelães, uma aldeia enfiada nos pés da Serra da Cabreira. Os soldados teriam de vir lá dos lados de Espanha e perderiam a vontade de lutar muito antes, tolhidos pela ideia de atravessarem os picos rochosos do Gerês. Nem sequer haveriam de chegar a subir a encosta da Cabreira. Esmeralda não viu nem ouviu falar em tal coisa. Portugal conseguira manter-se fora de guerra às custas de um negócio qualquer que Salazar fez com o Diabo. Falatório de átrio de igreja. Mas nada disso lhe interessava. Mesmo sem ter estado na guerra, sentia uma derrota interior de coração magoado e não tinha razões para festejar as vitórias dos outros.

    O rosto dela era uma dança triste à luz da candeia, emoldurado no vaivém sonhador da escova do cabelo. Sem espelho, não havia de carregar aquela expressão na memória mas recordaria a mão a alisar o cabelo em cada passagem da escova. Uma prenda de António, na Feira da Ladra do ano passado, mesmo antes de casarem. Usada, claro, porque não havia dinheiro para coisa nova feita de resina que brilhava como mel cristalizado acabado de tirar da colmeia. O vendedor tinha garantido três vezes, de pés juntos, que pertencera a uma senhora fina do Porto. Ou de Lisboa. Ou a duas senhoras finas, uma do Porto e outra de Lisboa. Feita de resina pura, um luxo que estava por uma pechincha e não esperava por ninguém. Esmeralda sabia que era apenas plástico.

    Uma pontada na barriga deixou-a indisposta. Pousou a escova, sentou-se na beira da cama e apalpou o ventre, um calor sentido através da camisa de dormir. A criança estava a dar pontapés, com pressa de nascer para um mundo que festejava mais as guerras do que as lamentava. A mãe de Esmeralda dizia que ia ser uma menina, que o sabia com a mesma certeza com que soube antes de ela nascer. Acreditava na sabedoria da mãe e queria dar-lhe uma neta antes que fosse demasiado tarde. Não foi mais cedo, porque uma rapariga séria não engravidava solteira. Até podia ter casado antes dos vinte, mas foi quase aos vinte e dois, quando se pôde pagar o casamento, que o António não queria ficar a dever nada a ninguém. Nem sequer aos pais. Mas o que Esmeralda não queria mesmo era ficar a dever um neto à mãe. O mal ruim no peito da mãe era demasiado ruim para a deixar ser avó por muito tempo depois de a criança nascer. O médico do Porto tinha dito que foi uma pena o diagnóstico tardio. Nada a fazer. Era a vida. Voltou-se para a porta do quarto e sorriu.

    — Está a dar pontapés — disse ela.

    António estava parado à porta, com satisfação sonhadora, a sorrir o orgulho de homem que fez a sua parte muito bem feita.

    — Vai jogar no Benfica — disse ele.

    Esmeralda fez pouco caso. Não ligava a futebol.

    — A minha mãe disse que vai ser menina.

    António encolheu os ombros. Tanto lhe fazia um filho jogador de futebol como uma filha bordadeira. Só lhe importava que ia ser pai e que a mãe da criança era Esmeralda. Aproximou-se da cama, ajoelhou-se no soalho e encostou a cabeça na barriga dela, orelha na flanela quente da camisa de dormir. Talvez já ouvisse a criança a chamar-lhe pai. Sabia que era uma tolice mas demorou um instante, orelha encostada à espera de ouvir a filha a chamar-lhe pai.

    — As mães sabem melhor dessas coisas — disse ele. — Só peço a Deus que seja perfeitinha.

    Esmeralda sorriu uma esperança triste a tremer nos lábios.

    — Eu só peço que o pai dela volte depressa.

    António afastou a cabeça e subiu um olhar arrependido de não ter nascido rico para comprar melhor sorte.

    — Ainda estou aqui — disse ele.

    Queria dizer a Esmeralda que não ia arredar pé do coração dela, mesmo à distância de países e fronteiras, e que sempre que uma família recebesse notícias do estrangeiro as notícias dele seriam as primeiras. Era uma promessa de fé, daquelas para acreditar mesmo sem saber. Ele não sabia falar de coisas do peito com o jeito que lhe faltava para palavras bonitas. Sabia apenas aquilo de que precisava para fazer o que tinha de ser feito em cada dia, coisas simples como dar a enxada à terra, a foice ao milho e o pão à boca.

    Esmeralda entristeceu de olhos postos na barriga, o cabelo penteado descaído entre o rosto e a promessa no olhar de António.

    — Amanhã não vais estar.

    — Esmeralda…

    António era capaz de acolher o mundo inteiro no coração, se não houvesse outro lugar para o mundo existir, e preenchia essa imensidão com a mulher e a filha que estava para nascer, mas sabia que não tinha instrução suficiente para explicar isso a Esmeralda, nem modos finos para a deixar de boca aberta com palavras caras de homem letrado. Bastava-lhe explicar os seus motivos simples, razões para suportar sacrifícios que livrassem a família de sacrifícios maiores. Levantou-se e olhou para o quarto empobrecido de tudo além dos móveis de madeira emagrecida pelas traças que acabariam por devorar também as tábuas das paredes. Pegou na escova de resina que era plástico e apertou-a numa certeza de fé fortalecida com sacrifício.

    — Aqui a nossa vida não vai ficar melhor do que isto, Esmeralda. Não queres pentear-te na frente de um espelho? E ter água a sair de uma torneira? A criança vai dar-te muito trabalho e fraldas para lavar todos os dias. Não te quero a derrear os braços com o cântaro na canseira da fonte. Eu quero carregar num botão e ter luz em casa sem me preocupar com torcidas de candeias e petróleo. Quero uma casa só para nós em vez de um quarto, aqui, na casa dos meus pais. Coisas melhores para a nossa filha.

    Ele olhou para a escova e descaiu os ombros.

    — Eu sei, António… Mas a nossa filha vai precisar do pai. E eu também. Não vais estar aqui quando ela nascer e…

    Esmeralda descaiu a cabeça no sufoco de palavras emudecidas dentro do peito. O medo dela era aquele e estava dito.

    António estava capaz de jurar que lhe tinham trocado o coração por uma pedra que cascava o peito por dentro de cada vez que respirava. Sentou-se ao lado de Esmeralda e passou-lhe o braço sobre os ombros.

    — Eu sei.

    Esmeralda ficou sem ar para gritar aquela tristeza para fora do peito. Deixou cair a cabeça no ombro dele e perdeu o olhar na chama da candeia. A maneira como António disse que sabia foi um golpe na barriga que magoou a criança no ventre. Ambos sabiam. Se ele ficasse na terra nunca iriam ter mais posses. Mesmo com a ajuda dos dois lados da família, conseguir uma vida melhor ia ser uma guerra muito pior do que a dos alemães.

    — Já sabes quando voltas?

    António encolheu os ombros. Sabia que tinha de ir e pouco mais.

    — Só sei que esta é a melhor altura para ir. A guerra deixou para lá tudo partido e agora estão a dar trabalho a muita gente. Ganha-se muito mais do que cá.

    Esmeralda desencostou a cabeça e encontrou os olhos dele já a morrerem de saudade.

    — Mas e tens mesmo de ir para França? Não há trabalho mais perto?

    — É onde estão a pagar melhor. A guerra acabou, Esmeralda. Já não há perigo.

    António sorriu uma segurança que era mais esperança do que certeza.

    Esmeralda aceitou a esperança. Não tinha fé suficiente para a certeza.

    — E já te disseram para que parte vais?

    — Deve ser Paris. É para onde está a ir a maior parte dos emigrantes portugueses. Vai muita gente aqui do Minho.

    — Mas eu fico.

    António encostou a cabeça à de Esmeralda e segurou-lhe a mão.

    — É só nos primeiros tempos — disse ele, uma coragem de emigrante que não podia ser outra coisa além de fé. — Depois vais para a minha beira. As duas. Vais ver, a vida lá é melhor.

    Chegou Esmeralda ao peito, um abraço que foi nó de coração.

    Esmeralda deixou-se ficar abraçada numa esperança que levou para longe um bocadinho da angústia. Dois corações batiam por ela. Ela tinha de ser forte por todos.

    — Amanhã sais cedo. É melhor irmos dormir.

    Para António, aquele sais cedo era já ali, naquele instante. Amanhã era já hoje. Ia ficar separado da família por um país e meio.

    — É melhor — disse ele.

    Desfez o abraço e encostou os lábios ao rosto de Esmeralda, um instante que depressa se fez memória. Estalou as mãos nas coxas e ergueu-se. Esperou que Esmeralda se deitasse, com vagares de mulher grávida que estava a menos de dois meses de ser mãe, e apagou a candeia. Despiu-se às escuras e deitou-se numa proximidade quente de mão sobre barriga de grávida. Parecia mesmo que conseguia ouvir a filha a dizer pai.

    Esmeralda e António trocaram olhares no escuro, o vaivém da respiração a sonhar o futuro da vida que crescia entre eles. O sono venceu a angústia de saberem que, tão cedo, não voltariam a adormecer abraçados.

    Partida.

    O galo cantou uma aflição de corneta engasgada e António abriu os olhos ainda no escuro da madrugada. Não importava para onde se ia dar o giro, a noite da véspera de partida era sempre um suspiro. Fechava-se os olhos e, antes de o dia abrir, já era hora de ir.

    — Está a desafiar a faca no pescoço — disse Esmeralda, o sorriso apagado no escuro.

    — Até vou sentir falta do raio do galo — disse António, a fingir que a tristeza não tinha lugar naquele quarto.

    — Está na hora?

    António confirmou com um aceno. A vontade de se pôr fora da cama era nenhuma. Um homem não podia ficar com a cabeça leve ao deixar para trás a mulher com uma criança na barriga. Era como dizia o sogro em serões frios de vinho à lareira. Viviam num país que já foi melhor para se viver mas que também já foi pior. Já o pai abanava sempre a cabeça e rematava que era a puta da vida.

    Esmeralda afastou os cobertores e sentou-se na beira da cama, a borda do colchão esmagada no peso de grávida. Se não fosse ela a levantar António, ninguém ia conseguir arrancá-lo daquela cama e muito menos para fora de Portugal.

    — Anda — disse ela. — Vou preparar alguma coisa para comeres.

    António encontrou o ombro dela num toque de mão, os olhos ainda na luta com o escuro.

    — Deixa estar, não é preciso. A minha mãe já deve andar a pé. Vá, deita-te e descansa.

    Esmeralda pousou a mão na dele e levou-a ao rosto. Voltou a deitar-se mas não se cobriu.

    António levantou-se e aconchegou Esmeralda com um beijo. Ia vestir-se sem acender a candeia. O cheiro do petróleo na torcida acesa logo pela manhã era coisa para provocar enjoos de gravidez.

    Esmeralda ficou mais encostada do que deitada, a vê-lo vestir-se na pouca claridade. Leu em cada gesto um verso de fazer sorrir, mesmo sem saber ler. Poesia de coração que amava. Cada peça de roupa vestida transformou-se em palavra bonita de se dizer sem letras. Coisa para gente simples entender sem estudar regras complicadas. As calças não eram as melhores nem as piores, apenas as de viagem para fora da aldeia, que António usava quando ia à vila. Agora ele ia para uma cidade grande e diziam que Paris era grande como tudo, que tinha mais gente do que Portugal inteiro. A camisa era de linho cru, pano para usar perto do rosto, e a raridade com que António a usava mantinha-a nova há anos. Por cima, ele vestiu o único casaco bom que tinha. Ele sentou-se no banco sem encosto, ao canto do quarto, e ela admirou a força do homem com quem casou na determinação posta em cada laçada dos cordões das botas. As botas eram para andar. Ele calçou as que tinham mais sola.

    António levantou-se e perguntou como é que estava com um gesto de braços abertos e um olhar pelo corpo abaixo. Recebeu um sorriso que bastou. A resposta de Esmeralda foi uma expressão triste que sufocou o peito no casaco apertado. Ele sentou-se na beira da cama, uma promessa em mente.

    — Eu mando buscar-te depressa. Vais ver. Quando chegares, já vou ter lá uma casa melhor para ti e para a nossa filha. Vimos cá todos os anos no Verão, ou no Natal. Até podemos vir as duas vezes. Sei que este Natal vou passá-lo lá, mas é preciso ir nesta altura, enquanto o trabalho ainda é certo. Para o ano vai ser melhor. Vais ver.

    Esmeralda sorriu a tudo o que ele disse, a tristeza escondida dos sacrifícios necessários. Para o ano ia ser melhor. Beijou António e ficou naquele momento, lábios colados nos dele, uma despedida sem deixar ir. Talvez aquele beijo dissesse tudo. Ele sempre foi capaz de saber o que a preocupava sem ser preciso dizer-lhe muita coisa.

    António afastou os lábios e quebrou o instante. Se aquele beijo durasse mais uma batida de coração ele já não ia a lugar nenhum. Passou a mão no rosto de Esmeralda e prendeu-lhe uma madeixa de cabelo atrás da orelha.

    — Tenho de ir — disse ele, o sorriso a custar fortunas de angústia.

    Esmeralda não teve força para retribuir o sorriso. Afundou o peso de grávida na beira da cama e levantou-se.

    — Vou contigo até à porta.

    António acenou um consentimento silencioso. Não valia a pena dizer que era melhor não. O melhor era que ele não tivesse de ir, mas era a falta dessa sorte que o obrigava a partir. Encostou a mão na barriga de Esmeralda e arrancou outro sorriso sem saber de onde. Ergueu-se pronto para ir.

    Esmeralda calçou as socas, deitou um xaile pelos ombros e cruzou as pontas

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