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O homem que foi para Marte porque queria estar sozinho
O homem que foi para Marte porque queria estar sozinho
O homem que foi para Marte porque queria estar sozinho
E-book451 páginas5 horas

O homem que foi para Marte porque queria estar sozinho

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Sobre este e-book

Todos conhecemos alguém como Thomas. É aquele vizinho resmungão que se queixa do nosso comportamento à mínima coisa nas reuniões de condomínio. Aquele senhor que se incomoda se nos vir a contar os trocos e tiver de esperar mais um minuto atrás de nós na fila do supermercado. Ou aquele colega que manda um e-mail com conhecimento de toda a empresa quando não reparamos que acabámos com o café...
Thomas sente-se absolutamente satisfeito por estar sozinho, longe dos demais e dos seus problemas. Só que debaixo daquela aparência rabugenta esconde-se uma história e uma tristeza dolorosamente familiares. E, por isso, está prestes a ir numa viagem sem retorno para Marte e a conhecer os Ormerod, uma família disfuncional encantadora que mudará a sua visão do mundo...
Tudo começa quando a fantástica avó Gladys, que sofre de princípio de demência, atende uma misteriosa chamada telefónica de um número desconhecido...
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de out. de 2018
ISBN9788491392873
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    Pré-visualização do livro

    O homem que foi para Marte porque queria estar sozinho - Davidm. Barnett

    Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.

    Núñez de Balboa, 56

    28001 Madrid

    O homem que foi para Marte porque quería estar sozinho

    Título original: Calling Major Tom

    © David M. Barnett, 2017

    © 2018, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.

    Tradutor: Mariana Mata

    Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.

    Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.

    Desenho da capa: Lookatcia

    1ª edição: Outubro 2018

    ISBN: 978-84-9139-287-3

    Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

    Sumário

    Créditos

    Dedicatoria

    Cita

    Parte um

    1. 11 de fevereiro, 1978

    2. Um abrigo a 36.000 quilómetros de altura

    3. 40 metros acima do nível do mar

    4. Como é que é no espaço

    5. O conselho de Gladys Ormerod à nação

    6. 11 de janeiro, 2016. David Bowie morreu

    7. A espingarda de franco-atirador da verdade

    8. A chamada telefónica

    9. #ChamandoMajorTom

    10. 11 de fevereiro, 1978, outra vez

    11. A revolta do saloio

    12. Gladys Ormerod esteve aqui

    13. 1800 graus Fahrenheit

    14. A carta

    15. É a Gladys!

    16. Vai correr tudo bem

    17. P-E-R-D-I-D-A

    18. Estagnação

    19. Seis biliões de sins e um não

    20. Aqui está o que podias ter ganhado

    21. Um ambiente singular e altamente stressante

    22. Vamos ficar ricos!

    Parte dois

    23. Verão 1988. O charco

    24. Cinco mil libras

    25. Atividade extraveicular

    26. O coração latejante da Wigan multicultural

    27. Não há mais ninguém aqui

    28. Não consigo dormir à noite

    29. Slough, temos um problema

    30. Objetivo principal

    31. Verão 1988

    32. Ousar ficar

    33. A campainha

    34. Para onde foi Julie Ormerod

    35. Em busca do anjo azul

    36. No fundo, um bom homem

    37. Queda livre

    38. Talvez venhas a ser o primeiro homem em Marte

    39. O dobro, no mínimo

    40. Pessoa desconhecida

    41. Abençoada chuva

    Parte três

    42. Thomas Major é feito de gatinhos

    43. Dia de Ano Novo 2000

    44. Loucas por serem salvas

    45. Brincar aos adultos

    46. Fui a Wigan

    47. Limitar os danos

    48. As cartas de Laura

    49. Vida longa e próspera

    50. Luz verde

    51. Não com um lamento

    52. Do género de casar

    53. Os anos de casado (2003–2011)

    54. Tudo com moderação

    54. Telefonar aos ocupantes do voo interplanetário

    56. Mantermo-nos unidos

    57. Vamos para sul

    58. À maneira dos ormerod

    59. Pôr-do-sol marciano

    60. O Major Tom tem um plano

    61. Só mais uma chamada

    62. Irmãos

    63. Medo de voar

    64. E então?

    65. Notícia de última hora

    66. Qual é a pior coisa que pode acontecer?

    67. Acabou?

    68. 11 de fevereiro, 2017

    Agradecimentos

    Para a Claire, o Charlie e a Alice.

    Quando ando com a cabeça no espaço, vocês mantêm os meus pés no chão e o meu coração cheio.

    Em memória de Malcolm Barnett,

    1945-2016

    «Quando começamos a compreender que a Terra é em si uma espécie de nave espacial tripulada a mover-se pela infinitude do espaço, parece cada vez mais absurdo que não tenhamos organizado melhor a vida da família humana.»

    Hubert H. Humphrey, Vice-Presidente dos Estados Unidos da América, 1966

    «Ficou tudo bem de novo.»

    George Formby

    PARTE UM

    ☆ 1 ☆

    11 DE FEVEREIRO, 1978

    Há muito tempo, num cinema muito, muito distante do sítio onde ele agora está, um rapazinho e o seu pai caminham na escuridão. O rapaz abraça um pacote de chocolates e um saco pequeno de pipocas junto ao peito. O pai orienta-o com uma mão firme no ombro pelo corredor cuja alcatifa se lhes cola aos pés. O filme ainda não começou, mas as caras dos que estão sentados já estão viradas para os anúncios de publicidade, iluminadas pela luz fraca. Nuvens de fumo de cigarro entrelaçam-se e unem-se no vazio negro entre o ecrã e a plateia. A elevar-se das filas repletas há um murmúrio abafado de conversas sussurradas.

    Thomas Major nunca esteve tão feliz. É a prenda do seu oitavo aniversário, vir ao cinema de Glendale ver este filme que tanto ansiava ver, como se já fizesse, sempre tivesse feito, parte da sua vida, impresso no seu ADN. Em casa, cuidadosamente colocados em cima da secretária do seu quarto estão os seus presentes do aniversário propriamente dito, há um mês: um conjunto da cena da Cantina d’ A Guerra das Estrelas que vem com os bonecos dos alienígenas Snaggletooth e Hammerhead que se podem fixar a pequenos suportes que se torcem e viram como se os personagens estivessem a lutar, e um disco da banda sonora do filme pela Orquestra Filarmónica de Londres, bem arrumado ao lado do velho gira-discos Dansette da mãe e da pilha de discos de 45 rotações que ela lhe deu para ouvir.

    E agora, Thomas e o pai estão no filme. No filme em concreto. No fim de semana de estreia. Estiveram na fila que dobrava a esquina à volta do quarteirão para entrarem no cinema mais antigo de Caversham — e um dos mais antigos de Reading. Enquanto esperavam, Thomas pergunta ao pai se gostaria de ir ao espaço.

    — Aposto que quando fores da minha idade vai haver cidades na Lua — diz o pai. — Mas isso não é para mim. Sem atmosfera. — Dá uma gargalhada e uma palmadinha no ombro de Thomas. — Podias ir morar para lá. Fazer como naquela canção. O Major Tom. A tua mamã estava a cerca de três meses do final da gravidez quando aquela música saiu. Acho que foi por causa disso que te quis chamar Thomas. Está mais ou menos do mesmo tempo, agora. — O pai cala-se e olha para Thomas. — Que caraças! Aquele Figaro ainda está no topo da tabela? Não ia nada gostar de ter de gritar esse nome ao portão de casa.

    Space Oddity — diz Thomas em tom ausente. — Não se chama Major Tom. Chama-se Space Oddity.

    Enquanto estão na fila para entrar, passa um carro bege pelo cinema. Frank Major assobia. — Olha para aquilo! Um Volkswagen Derby. Só saiu no ano passado. Bem que gostava de ter um daqueles. — Dá um pequeno encontrão a Thomas.

    — Íamos parecer um par de tipos muito fixes a andar naquilo, não achas?

    Thomas encolhe os ombros. Não tem grande interesse por carros. O pai continua:

    — Talvez arranjemos um este ano. Mas gostava de construir um jardim de inverno neste verão. Acrescenta valor à casa, pois acrescenta. Talvez pudéssemos também converter o sótão. Há uma casa na rua a seguir à nossa com um jardim desses e um sótão convertido que foi vendida por quase vinte e três mil no ano passado, acreditas?

    Ainda é de tarde, mas o céu já está azul-escuro com uma lua cheia baixa no horizonte sobre os telhados pretos.

    — Como uma moeda de dez cêntimos — diz o pai. Thomas fecha um olho e coloca o polegar e o indicador à volta do círculo da Lua.

    — Apanhei-a, pai! Apanhei a Lua!

    — Enfia-a no bolso, filho — diz ele. — Nunca se sabe quando é que vais precisar dela. Anda, vamos finalmente entrar.

    Thomas coloca a Lua invisível e sem peso em forma de moeda de dez cêntimos no bolso da sua camisa castanha de colarinhos largos. O estômago de Thomas está confortavelmente revestido com o hambúrguer que comeu ao almoço, mas ainda há espaço para doces. O pai abana a cabeça e faz um comentário sobre ele ser um «saco sem fundo» antes de pagar no quiosque.

    Agora está a encaminhá-lo para um único lugar vazio no final de uma fila, ao lado de um homem e de uma mulher com três meninas pequenas. Thomas sente um nó a dar-se dentro dele, algo a que não consegue atribuir um nome. Questiona o pai com o olhar. — Mas só há um lugar!

    — Espera aqui — diz o pai antes de ir ter com a senhora que vende gelados. Tem o cabelo como se tivesse sido esculpido em granito e uma cara a condizer que vira na direção de Thomas, com os seus olhos de alfinete a perscrutá-lo na escuridão.

    O pai dá-lhe uma libra e ela dois gelados de chocolate. Olha outra vez para Thomas, depois para o pai, que faz uma careta e lhe dá mais outra libra. Depois regressa para ao pé de Thomas com a senhora atrás. Thomas tem as pipocas equilibradas nos joelhos e o pacote de chocolates no bolso. O pai enfia-lhe o gelado nas mãos.

    — Thomas, filho — diz-lhe. — O pai tem de ir fazer uma coisa.

    Thomas olha para ele e pestaneja.

    — Que coisa? Então e o filme?

    — Está tudo bem. É muito importante. É… — Olha para o ecrã como se fosse encontrar aí inspiração. — É uma surpresa para a tua mãe. — Dá-lhe um toque num dos lados do nariz. — Com regra das saídas de homens, está bem? Fica só entre nós.

    Thomas também dá um toque de lado no nariz, mas sem grande convicção. Sente um fosso profundo aberto no estômago. O pai diz:

    — Esta é a Deirdre. Vai estar de olho em ti até eu regressar.

    A mulher vira o nariz para baixo para olhar para Thomas, com a boca esticada numa linha fina e pálida, como se o criador não se tivesse preocupado sequer a tentar fazê-la parecer humana.

    — Quando tempo é que vais demorar? — pergunta Thomas a sentir o peso de toda aquela escuridão no cinema contra as costas, a sentir-se muito sozinho.

    — Estou de volta num instante — diz o pai, a piscar o olho. Depois começa a música e Thomas vira-se para olhar para o ecrã no momento em que se enche de estrelas e palavras que começam a passar de fugida.

    É um período de guerra civil. Atacando de uma base secreta, naves rebeldes conseguem a sua primeira vitória contra o maligno Império Galáctico.

    Thomas olha para trás para ver o pai, mas ele já se foi embora.

    ☆ 2 ☆

    UM ABRIGO A 36.000 QUILÓMETROS DE ALTURA

    5 Horizontal: O astro-rei latino, um mastigado, apesar de tristemente mal escrito (8)

    Thomas Major fecha os olhos para pensar e decide que a melhor coisa de todas é o silêncio. Sem buzinas de carros a apitar, sem vozes aos gritos, sem motores a acelerar, sem telefones a tocar, sem o bip-bip-bip dos camiões do lixo em marcha-atrás.

    Nada.

    Sem campainhas, sem o estremecimento do baixo da música horrível de alguém, sem portas a bater, sem televisões aos gritos.

    Só silêncio.

    Sem conversa vazia do locutor de rádio, sem o apitar incessante de mensagens a chegar, sem a perfuração do asfalto, sem músicos de rua a assassinarem canções clássicas.

    Sem nenhuma das coisas catalogadas na sua cabeça como ameaças auditivas.

    Thomas Major sempre tinha desejado ter um abrigo. Blindado e isolado, longe de todos e do seu barulho horrível. Bate com a ponta do lápis na primeira página do seu Grande Livro de Palavras Cruzadas Enigmáticas Realmente Difíceis do Guardian e regressa aos seus pensamentos. O bater do lápis é um som bom, um acompanhamento para o trabalho mental honesto. E é o som dele, o seu barulho.

    Tal como o barulho que faz a sorver um grande gole de chá, quente e, decididamente, demasiado doce. Sem ninguém ali para chamá-lo à atenção sobre as suas maneiras. Fará barulho a sorver se ele quiser. Bochecha o chá dentro da boca até estar frio o suficiente para o gargarejar ruidosamente garganta abaixo.

    — Ora toma! — diz depois de engoli-lo para absolutamente ninguém.

    Durante toda a sua vida quis ter o seu próprio abrigo. Invejava aqueles homens que podiam desaparecer para o fundo dos próprios jardins e fecharem-se longe de tudo e de todos. E agora, aqui, no seu quadragésimo sétimo aniversário, está finalmente sozinho, livre para sorver chá, disponível para passar o tempo que lhe apetecer a fazer palavras cruzadas. Tem andado a poupar aquele livro e os seus 365 diabolicamente difíceis enigmas. Bate outra vez com o lápis na página. Mastigado? Mordido. Mas mal escrito? Tristemente mal escrito?

    Como Thomas Major pode fazer precisamente ali o que quiser, decide colocar um pouco de música a tocar para ajudá-lo a pensar. Música como deve ser, atenção! E não aquele tum-tum-tum que sai dos carros de luxo conduzidos por homens jovens a suarem arrogância por todos os poros. Gostava de ter a sua coleção inteira de discos de vinil com ele, mas havia o problema do espaço. Por isso, digitalizou-os a todos, cada faixa de cada álbum, cada single e lado B, cada raridade, cada flexidisc que foi colado à capa de um jornal ou revista sobre música. Tudo. Por ser o seu aniversário, acha que poderá gostar de ouvir algo alegre e animador, talvez os The Cure. Faz disparar o terminal do computador — com caretas pelos zumbidos que faz — e escolhe o Disintegration. Um regresso magnífico à forma melancólica, em 1989. As faixas começam a tocar de forma aleatória, o que não agrada a Thomas — um álbum deve ser ouvido pela ordem que a banda pretendia —, mas ele ainda não descobriu como conseguir parar de fazer aquilo. A primeira canção que toca é o Homesick.

    Thomas grunhe, expele ar pelo nariz e faz um sorriso forçado.

    Quase, mas ao lado.

    Astro-rei latino — só pode ser Sol, obviamente. Um mastigado — número? Thomas morde pensativamente o lápis até a faixa seguinte começar a tocar. Talvez uma olhadela pela janela possa ajudar. Só serve para ficar sem fôlego e pergunta-se se alguma vez se cansará daquela vista, se pensará nela como comum ou sem ser espantosa. Espera sinceramente que não. Pois ali está ele, completamente sozinho com o seu chá, as suas palavras cruzadas e a sua música e lá fora estão todos os outros.

    A Terra preenche o vidro de dez centímetros de grossura, em azul e verde envolvida em nuvens e mesmo, mesmo linda. Tão grande que ele quase poderia esticar-se e tocá-la. Está na órbita terrestre alta, a 36.000 quilómetros da superfície do planeta, e muito em breve vai ser catapultado para o vazio, deslocando-se através dele a 26,5 quilómetros por segundo. Em breve vai encolher até ser insignificante, apenas uma partícula no véu aveludado do espaço. Fecha os olhos, ouve a música e diz a si próprio que é claro que tomou a decisão certa, que aquilo é exatamente o que queria.

    O mundo de Thomas é um tubo hexagonal de dez metros de comprimento, dominado pela sua estação de trabalho de um lado e por uma grande escotilha que leva a uma câmara de ar e depois ao grande vazio infinito do outro.

    Thomas não vai àquela ponta da cápsula com frequência.

    Entre elas há bancos e bancos de instrumentos eletrónicos — Thomas nem sabe para que metade deles serve —, uma série de portas que se abrem para os compartimentos de armazenagem com todo o tipo de coisas — a maioria desidratadas — para mantê-lo vivo durante a sua viagem, e uma passadeira, à qual ele se prende para correr e evitar que os seus músculos definhem por completo.

    Aquilo é, para todos os efeitos, a sua casa. Até tem também as suas rotinas, tal como em casa, mas em vez de se deslocar para um emprego e chegar a casa para se sentar em frente à televisão ou ouvir música enquanto faz o jantar, Thomas começa cada dia fechado dentro de um saco-cama na parede. Tentou dormir solto na microgravidade, mas era sempre puxado em direção às condutas de ventilação. Depois faz o pequeno-almoço — uma comida desidratada insípida qualquer ou uma barra nutritiva de frutos — e a seguir lava-se e usa a casa de banho, o que é sempre divertido. A manhã é passada a fazer verificações em todos os sistemas, depois há o exercício físico, e depois é suposto ler sobre todas as tarefas que terá de fazer quando chegar a Marte… A mais importante de todas: manter-se vivo. Isso parece envolver muito cultivo de batatas.

    A música para e é substituída por um som dissonante e insistente de um sinal. Afasta-se da janela, do mundo, e empurra-se da parede, nadando pela gravidade zero até ao monitor aparafusado à parede, com o seu livro de palavras cruzadas e lápis a flutuarem por cima dele. O monitor está a mostrar as palavras A RECEBER COMUNICAÇÃO.

    — Olha que maravilha! — sussurra enquanto o ecrã se dissolve numa confusão de píxeis que se transformam numa imagem retardada de um grupo de pessoas de fato, em pé à frente de filas e filas de técnicos sentados diante de terminais de computador.

    — Daqui Controlo Terrestre para Major Tom! — diz o homem alto e magro, com cabelo preto penteado para trás, no meio do grupo. — Responda, Major Tom!

    Thomas prende-se a si próprio em frente do monitor e uma imagem da sua cabeça do tamanho de um selo de carta aparece no canto inferior do ecrã. Olha para ela e pergunta-se se se deveria ter barbeado; ali só pode usar uma coisa elétrica e detesta isso. Apercebe-se de repente que provavelmente nunca mais na vida vai poder barbear-se outra vez com água. O seu cabelo castanho, salpicado de branco, está comicamente espetado, como folhas de algas marinhas a ondular na maré.

    — Olá Controlo Terrestre. Daqui Shednik-1, a receber-vos em alto e bom som.

    Ouve-se um festejo dos técnicos, embora muito britânico, bastante abafado e educado. O homem de fato, o diretor Baumann, olha para ele através da câmara.

    — Vai continuar a chamar esse nome tolo à Ares-1, Thomas?

    — Vai continuar a dizer «daqui Controlo Terrestre para Major Tom» todos os dias nos próximos sete meses?

    O diretor Baumann tem o cabelo tão negro que só pode ser pintado. Também nunca aparece sem gravata, com o botão de cima da camisa sempre orgulhosamente apertado. Thomas desconfia de qualquer pessoa que use uma gravata para ir trabalhar nos dias que correm. É completamente desnecessário. As gravatas são para funerais — nos quais Thomas é muito experiente — e casamentos, dos quais tem um conhecimento superficial. A camisa do Baumann está tão bem engomada que, ou ele tem um distúrbio obsessivo-compulsivo, ou uma mulher acorrentada na cave a uma tábua de passar a ferro. Mas o que Thomas mais odeia nele, apercebe-se, é o seu caso amoroso com pranchetas. Nunca aparece sem uma. Está a consultar aquela que segura naquele momento. — De acordo aqui com os nossos diagnósticos, todos os sistemas estão a funcionar a cem por cento. Concluiu as suas verificações a bordo?

    Thomas afasta o livro de palavras cruzadas que anda a flutuar de forma incriminatória à frente da câmara e murmura qualquer coisa evasiva. Baumann diz:

    — A sua descolagem correu na perfeição, como imagino que saiba. Está adequadamente alinhado com a órbita de transferência de Hohmann e os motores estão a bombar. Está no bom caminho, Thomas. Faltam 500 milhões de quilómetros para o destino. A NASA diz-nos que há uma chuva de micrometeoritos na sua proximidade, mas não lhe deve causar quaisquer problemas.

    A falar do tempo, mesmo no espaço. Tão tipicamente britânico.

    — Eu sabia que devia ter trazido o meu chapéu de chuva.

    Ouvem-se mais risadas dos técnicos. Uma mulher a segurar um iPad como se fosse um bebé agita o cabelo com a mão livre.

    — Estamos a gravar esta sessão para enviar à comunicação social. E pensamos que hoje é o dia do seu aniversário…? — A voz dela aumenta de tom num horrível efeito cantarolado.

    É a Claudia que trata das relações públicas. Thomas sabe que ela o detesta pelo que ele fez há um ano. Está bronzeada e tonificada e Thomas imagina que passe todo o tempo livre empenhada nalguma forma de exercício altamente dispendioso, a dar murros em sacos de cabedal, a tentar focar e ver apenas a cara pálida e cabelo rebelde de Thomas. Em todos os dias que Thomas a viu, usava uma roupa diferente, discretamente a transmitir o nome da marca ou do estilista a alguém nas proximidades, como se fossem senhas secretas para o seu melhor e mais luxuoso mundo de vestidos.

    — 11 de janeiro. À mesma hora todos os anos. Não me digas que há um bolo enfiado algures num tubo? Tem de ser melhor do que aquele chá que eu espremi. Demasiado açúcar. E certamente que não é Earl Grey, como eu tinha pedido.

    Baumann mexe as sobrancelhas, assinalando um pelo amor de Deus, para de ser um rezingão idiota. Claudia bate no seu iPad.

    — Temos aqui alguém muito especial para falar consigo, Thomas…

    Ele abre a boca e fecha-a de novo. A sério? Alguém especial? Ela foi… É a Janet?

    ☆ 3 ☆

    40 METROS ACIMA DO NÍVEL DO MAR

    — É o telefone da avó — grita James.

    Depois: — Não tenho uma camisa lavada.

    E: — Hoje é dia de Educação Física. Onde está o meu equipamento?

    Seguido de: — E eu odeio sandes de fiambre. Não posso comer na escola?

    Gladys está sentada na sua poltrona ao pé da lareira na pequena sala de estar do número 19 da rua Santus, em Wigan, a admirar o seu comprido e acolchoado roupão cor-de-rosa. É como os edredões que costumavam chamar de Acolchoados Continental nos tempos dela. Não sabe porquê. Viriam do continente? E porque é que os teriam ali? Não estava sempre calor no continente? Ou pelo menos nos lugares onde as pessoas costumavam ir quando costumavam dizer que iam «para o continente»? Como Benidorm e sítios parecidos?

    James está em pé à entrada da cozinha, de tronco nu, com os cotovelos brancos e ossudos a tocar em ambos os lados da ombreira enquanto abre os braços, como quem implora que alguém faça alguma coisa. Pode apanhar uma pneumonia de morte, ali assim sem praticamente nada vestido em pleno janeiro. Gladys pensa por um momento que poderia tentar ajudar. Afinal, é mesmo o telefone dela que está a tocar. James tem toda a razão. Apesar de soar muito distante, como se estivesse num balde no fundo de um poço. É incrível o que conseguem fazer neste dias, James colocou uma velha canção no telefone em vez do som de toque. É o Diamonds and Rust, da Joan Baez, uma das favoritas de Gladys, apesar de a fazer ficar triste, e muitas vezes sem conseguir saber porquê. Talvez seja por ser sobre recordações de há muito tempo e isso ser basicamente tudo o que Gladys tem atualmente. Lembra-se de qualquer coisa então, sem estar relacionado com nada, mas digno de ser lembrado, acha ela. «Wigan está 40 metros acima do mar.»

    James geme e olha para os próprios cotovelos, de braços torcidos em si mesmo.

    — Ellie! — chama Gladys da poltrona. — O James precisa de… Coisas. Vou engomar-lhe a camisa.

    Vem um grito abafado do andar de cima. James — Gladys faz um estalido com a língua por causa do cabelo dele, demasiado comprido e encaracolado para um rapaz de dez anos — e levanta a sua figura magra. A sala é pequena, só com uma poltrona, um sofá e a televisão, e uma porta para a cozinha onde ficam as escadas. Atrás do sofá está um cesto de plástico apinhado com uma torre periclitante de roupa lavada. A tábua de engomar já está preparada ao lado dela, tem estado assim há meses. Desde sempre. Gladys remexe na pilha, encontra uma camisa branca e liga o ferro.

    — Vou dar-te uma moeda para o teu almoço.

    James revira os olhos e vasculha ele próprio o cesto de roupa lavada, puxando um par de calções e uma camisola de râguebi.

    — Queres que também te engome isso? — pergunta ela.

    James enfia-os no seu saco.

    — Não te incomodes. Vai estar cheio de lama, e provavelmente de sangue, à hora do lanche. Não sei porque é que temos de jogar râguebi em janeiro. Devíamos fazer isso no verão.

    — O teu avô sempre foi bom no râguebi. Podia ter jogado no Wigan quando era mais novo. — Gladys observa os botões da camisa que esticou na tábua de engomar. Tem uma costura horrível. Não se safavam com aquilo no tempo dela. Espreita a etiqueta. Made in Taiwan, como não é de admirar.

    — ‘Vó! — Ellie apareceu à porta da cozinha. Com demasiada maquilhagem nos olhos, como de costume. Com o cabelo como se tivesse sido arrastada de costas por uma sebe. E aquela saia. Praticamente um cinto. Não que Gladys devesse falar muito. De minissaias é que Gladys tinha gostado. Grandes pernas. Todos os rapazes o diziam. Tinha sido a primeira coisa que Bill lhe tinha dito, quando estavam à porta do sítio de fish and chips perto do pub Ferris Wheel.

    — Tens umas belas pernas, miúda. — Ela costumava gostar do Ferris Wheel. De ir tomar um belo copo de cerveja preta ao sábado à noite. Pergunta-se se ainda estará aberto. Depois lembra-se que deitaram o sítio abaixo para construir o grande supermercado.

    — ‘Vó! — Ellie vem a correr, espreme-se entre o sofá e a parede e agarra no ferro, que tinha estado virado para baixo em cima da camisa de James.

    — Ah, boa! — Tem uma grande marca castanha com a forma do ferro mesmo em cima do bolso do peito.

    Ellie leva a mão à cara.

    — Ele só tem três camisas.

    — Vá, eu engomo outra — diz Gladys. Levanta a camisa e inspeciona-a com olhar crítico. — Os pontos das costuras estavam muito mal feitos nesta, de qualquer modo. Vou cortá-la para fazer panos do pó.

    — Eu engomo — diz Ellie, afastando Gladys gentilmente da tábua de engomar pelos cotovelos. — Tu senta-te. Já tomaste o pequeno-almoço?

    — Uma torrada e uma chávena de chá iam saber-me bem. Viste o meu telefone? Ouvi-o tocar.

    James já está a enfiar-se numa camisa branca amarrotada.

    — Está boa — diz ele, embora o tom de voz sugira que está tudo menos isso. — Vou perder o autocarro.

    — Não te esqueças do teu lanche — diz Ellie, a esfregar o lóbulo da orelha. — Alguém viu o meu brinco?

    — Alguém viu o meu telefone? — pergunta Gladys. — Pu-lo a carregar quando trouxeste as compras para casa ontem à noite. Estava a arrumar a comida. Já me lembro.

    James está à porta do frigorífico a olhar lá para dentro como se contivesse toda a espécie de maravilhas. Estica-se e tira as sandes embrulhadas em película aderente. — Está aqui, ‘vó. O teu telefone. Deixaste-o dentro do frigorífico, no prato da manteiga.

    James começa a rir-se e vai até à sala com o telefone na mão. Ellie abana a cabeça.

    — ‘Vó…

    Gladys esfrega o queixo.

    — Podia jurar solenemente que o coloquei a carregar na noite passada. Ali, em cima do aparador.

    O aparador está debaixo da janela e é apenas um móvel pequeno e barato. Em cima dele há uma fruteira com duas tangerinas engelhadas lá dentro, ladeada por fotografias da mãe e do pai de Ellie e James. James aponta e ri-se outra vez.

    — Ó caraças! Que nojo!

    Por detrás da fruteira está o cabo serpenteante do carregador de telefone de Gladys, com a ponta enfiada num pedaço de manteiga que começou a derreter e se espalhou por toda a madeira envernizada.

    — Eu limpo — diz Ellie a suspirar ruidosamente. Olha para o telefone dela. — James, precisas de ir.

    — Adeus — diz ele, e Gladys observa-o a enfiar o biscoito todo na boca antes de sair. Pisca-lhe o olho. É o nosso segredo.

    Ellie olha de novo para o telefone.

    — Gaita. Vou chegar atrasada à escola. — Apressa-se até à cozinha, anda sempre a correr, aquela rapariga. e Gladys ouve a chaleira a apitar e a torradeira a funcionar. Cinco minutos depois, Ellie está a trazer-lhe uma chávena de chá e um bocado de torrada com manteiga num prato, com uma fatia dobrada de uma torrada a sair-lhe da boca.

    — És uma boa menina — diz Gladys.

    Ellie agacha-se aos pés de Gladys e tira a torrada da boca.

    — ‘Vó — chama. Sempre séria. Sempre a correr e séria. — ‘Vó, promete-me que hoje não vais sair. E não ligues nada às tomadas. Pus uma caixa plástica com o teu almoço no frigorífico. Precisa de ir ao micro-ondas durante dois minutos. Escrevi tudo e colei com fita-cola à tampa. Segue exatamente as instruções, está bem? Safas-te bem a fazer o chá?

    — Claro que sim — funga Gladys. — Não sou um bebé, sabias? Vou fazer setenta e um este ano.

    Ellie acena com a cabeça.

    — Não abras a porta a ninguém e ignora quaisquer chamadas telefónicas a não ser que apareça no visor que sou eu ou o James, percebes?

    Gladys faz uma pequena continência a Ellie e ri-se. Ellie não se ri. Olha em redor à procura da mochila, encontra-a ao lado do aparador e põe-na ao ombro.

    — Estou de volta às quatro. O James chega a casa às três e meia. Está bem? Fica só a ver televisão. Não te esqueças do almoço. Pensei que podíamos comer douradinhos à hora do chá. Depois tenho de ir trabalhar.

    — Ótimo — responde Gladys. — Embora talvez me apeteça uma tarte, acho eu. De carne e batata. Sabes que já não lhe é permitido chamar-lhes assim? Têm de lhe chamar de batata e carne porque tem mais batatas do que carne. Mas fica bom com um bocadinho de molho. Tem um bom dia de escola.

    Quando Ellie finalmente sai de casa, Gladys suspira. Às vezes não se consegue ouvir a pensar naquela casa. Olha em redor à procura do comando e encontra-o em cima da lareira, apontando-o pertinho da televisão e carregando nos botões até se ligar. Notícias, notícias, notícias. Aqueles idiotas naquele sofá. Uma parvoíce americana. Pessoas a irem para o espaço. Tanta escolha e nada para ver. Gladys talvez vá ler um livro se o conseguir encontrar. Ou lembrar-se de qual é. Ou até mesmo sobre o que é.

    Pega no telefone e pergunta-se quem é que lhe estava antes a ligar do frigorífico. Não, não do frigorífico. De dentro do frigorífico. Enquanto o telefone estava dentro do frigorífico. Pode ter sido o namorado dela, embora ele normalmente não telefone. Bem, nunca telefona. O e-mail é mais o tipo dele. Gladys observa o visor que diz UMA CHAMADA NÃO ATENDIDA seguida de um número que ela não reconhece: bom, um que não tem um nome associado, pelo menos. Depois dá um salto, quase deixando cair o telefone quando ele volta a tocar.

    — Está? — Gladys ouve por um momento aquilo que a jovem mulher de voz simpática tem para dizer do outro lado. Pensa sobre aquilo e diz: — Porquê? Sim, acho que tenho seguro de proteção de pagamentos. Quantos empréstimos? Oh, seis ou sete, penso eu. Oito. Reclamá-lo? Isso parece interessante…

    ☆ 4 ☆

    COMO É QUE É NO ESPAÇO

    Thomas olha para a sua imagem no canto do monitor e tenta baixar o cabelo, que fica logo outra vez espetado. Pergunta-se se pode fazer um intervalo para se barbear. O que não se pergunta é porque é que a sua ex-mulher haveria de estar ali, vários meses depois de lhe ter dito que nunca mais falaria com ele.

    Depois, um homem de camisa de xadrez e uma criança pequena aparecem à vista. E não, não se vê Janet em lado nenhum. Claudia chama a menina. — Fizemos um concurso na tua antiga escola primária em Caversham para que um aluno tivesse a oportunidade de te fazer uma pergunta. — Coloca o braço à volta da criança que

    Está gostando da amostra?
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