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Pai bom, pai ruim: Ceará, o dono da Bahia
Pai bom, pai ruim: Ceará, o dono da Bahia
Pai bom, pai ruim: Ceará, o dono da Bahia
E-book636 páginas4 horas

Pai bom, pai ruim: Ceará, o dono da Bahia

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Sobre este e-book

Quando seus deuses desmoronam, o garoto Henry encontra um amparo em seu amigo mais velho Queiroz, um homem com idade próxima de seu pai adotivo, e que em suas brincadeiras e ensinamentos, conduz seu jovem amigo para mais próximo de seu destino. Em um país de muitos contrastes e variadas crenças, um garoto nascido no nordeste brasileiro precisa mergulhar no interior deste “gigante” e dentro de si mesmo, em busca de suas respostas e verdades. Em sua jornada ele irá conhecer o real sentido de uma verdadeira amizade e que o amor não é uma quimera, mas a saída para todos os conflitos da humanidade.
IdiomaPortuguês
EditoraM-Y Books
Data de lançamento4 de ago. de 2017
ISBN9781526002341
Pai bom, pai ruim: Ceará, o dono da Bahia

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    Pré-visualização do livro

    Pai bom, pai ruim - Moisés De Assis Ferreira

    Pai bom Pai ruim

    ( Ceará O Dono da Bahia )

    Tudo lhe parecia novo, um novo cenário mostrava aquele espaço que tantas vezes ele

    vira com outros olhos. Era outra maneira de sentir e amar a vida. Ele não via mais como

    se de fora, mas como se estivesse à porta de entrada para cena. Não mais como um

    intruso e sim como uma vitalina que se delicia em ver, sem nada dizer, sem ter que

    responder nada, apenas repousar na imagem que hora se desenha.

    Ali no terminal da Barroquinha, ele presenciou pelejas, desafios, rinhas e birras das mais

    diversas escolas e clãs de capoeiristas da Bahia; eram magotes que vinham desde o

    Canta Galo, Ribeira, Central do São Caetano, Engenho Velho, Vasco da Gama, até a Vinte

    Oito de Setembro e Maciel. Nesses episódios o pau comia muitas vezes com bênçãos,

    aús e martelos, sem uso de pau de fogo ou qualquer outra arma, pois era uma desonra

    para qualquer mestre de capoeira saber que um dos seus usara arma de policia para

    se defender. Bem da verdade, que um golpe desses, era uma arma branca para os

    homens da lei dessa época.

    Antigamente na Bahia defesa para capoeira era o principal ataque; todo discípulo tinha

    que guardar bem a onça ou qualquer outro animal que tinha dentro de si. Tinham que

    ser como gato, um passo de cada vez e ouvindo os sinais. Só em casos extremos é que se

    podia fazer uso da força, pois a raiva junto com um golpe era quase sempre fatal para o

    oponente ou ele mesmo; por isso que agora, Edvaldo lembrava porque na maioria das

    vezes em décadas anteriores a molecada voltava para seu gueto sem levar ao extremo

    o início de uma briga; tudo em respeito e honra aos seus mestres que muitas vezes eram

    sexagenário.

    Agora era diferente, pensava ele, que mestre de capoeira na Bahia era também "boxé

    misturado, que, capoeira só da angola, que, a maioria eram mais dançarinos", que

    logo conhecia uma alemã ou holandesa e se jogava rumo à Europa pra ensinar

    percussão a gringo e anos depois voltava, vezes com suas crias e esposas brancas ou na

    pior das hipóteses viciado em qualquer porcaria do velho mundo e com o resto de

    dinheiro pra gastar com uísque barato no Santo Antônio e adjacências, na dor de corno

    da lembrança da paixão de além-mar. Mas tudo reminiscências sua, sandice, pois não

    era bem assim desta forma levando em conta que até o Tio Sam conheceu essa Arte

    Made in Brasil levada por grandes mestres baianos de capoeira. Na infância de Edvaldo

    o mestre de capoeira era diferente do tempo de agora, era como, quase a figura de

    Oxalá. Na verdade era um tipo de Oxalá Velho, na sabedoria e na reverência devida.

    Edvaldo nesse instante olhava seu relógio que marcava onze da noite, e via de dentro

    daquele ônibus que muita gente ainda tentava entrar até mesmo pela janela, pois era o

    último, mas ele já tinha garantido seu acento no fundo, num banco do lado direito, e ali

    estava admirando o que via e por não conhecer esse movimento na noite da Bahia;

    embora ele tivesse passado maior parte de sua vida ali próximo na Rua da Poeira e

    bregas da Ajuda e Maciel.

    Continuava a conferir as horas, meio que perdido nas lembranças, tocando o círculo do

    seu relógio de pulso como se o mesmo tivesse conectado aos seus anos de andança;

    como se deslizando o dedo suavemente na parte lateral da mica ele pudesse visualizar

    melhor e viajar no tempo por décadas passadas. Fatos ocorridos há cinco anos atrás

    pareciam mais longe que vinte. E parecia que, aquele relógio tinha algo mágico, pois

    tudo lhe veio de maneira muito clara naquele instante ali. Antes mesmo do ônibus chegar

    ele já se sentia em cima do palco que criara agora e com o passar dos anos na sua feia e

    bela Salvador.

    Os combates de capoeiristas que ele lembrava agora, eram quando Salustiano o levava

    na Baixa dos Sapateiros para comprar cigarros, bombons, jujubas, canetas, elásticos,

    botões de camisa e outros aviamentos mais, para surtir uma bodega, mais conhecida

    como venda na Bahia de tempos passados, que ele montara para Natividade, aia de

    Jerusa sua esposa, na intenção de ajuda-la, pois tinha sete filhos sob seus cuidados e

    outros mais espalhados. Salustiano dizia não entender, como Natividade conseguia dar

    de comer pra tanto filho e ainda era mãe de leite para quem mais quisesse; inclusive ele,

    Edvaldo Escalabau. Moravam no Engenho Velho de Brotas e tinham automóvel, um F350

    na garagem mas justificava Salustiano, que só ia a Baixa dos Sapateiros de Lotação,

    porque lá não tem onde guardar o carro, mas que para Edvaldo, ou Escalabau, - ou

    como queiram, que tinha dois nomes registrado em cartório e outras mais alcunhas - era

    uma desculpa para flertar com as camelôs, baianas de acarajé e ciganas que pediam sua

    mão. Essa cena Edvaldo não tragava: seu Pai todo de branco, sapato e tudo, com seu

    revólver calibre 38 no coldre solto, pressionado pelo cinto; algo nojento de ver, pois via

    em casa o pai chamando o baiano simplesmente de nativo, e que não gostava das

    presepadas dos nativos, que as baianas eram impetuosas, mas nesses passeios adorava

    beijar as mãos das baianas de acarajé.

    Lembrava de tudo isso agora com mesmo asco de criança e ainda preso ao relógio de

    pulso e as lembranças. Pensamentos ao léo não faziam caso do passado ou presente,

    pois como uma vitalina, calado via afrodescendentes, vestidos de branco, com seus tênis

    de marca entrando pela porta ou janela sem o cobrador nada dizer. "E ele não era

    doido", pensava rindo, como homens de tamanha envergadura conseguiam atravessar

    aquela janela tão pequena e ainda espalmavam a mão com o cobrador, com toda manha

    e malandragem dizendo e ai cobra, que respondia e ai negão. Edvaldo ria agora,

    pois se tornara um gentleman após passar anos em Santa Catarina; se esquecendo que

    era típico dele mesmo essas desorderagens.

    O terminal estava mal iluminado e isso nunca mudou desde criança quando Salustiano o

    levava ali. Pensou que o pai levava o revolver só para.. nem sei pra quê . Sentia abuso

    de pensar. A Bahia naquela época ainda respirava o romantismo, a pureza e nem se

    comparava com os tempos de agora; havia trombadinhas mas todo mundo sabia "quem

    era quem". Novidade era um atropelo ou quando um carro dos bombeiros saia do pé da

    Ladeira da Praça aos berros. "Não tinha necessidade de sair armado em Salvador

    naquela época", pensava .

    Mas agora ele olhava para as divindades negras que entravam ali. Algumas protegidas

    por seu homem e outras por seu Santo. Negras; na maioria vestidas de branco, e não

    podia ser diferente pois era Terça da Bênção. Algumas com tez marrom, outras mais

    para cor do ébano; cílios postiços, outras naturais, mas sempre retocados de dourados

    ou prateados. Cabelo curto ou mega hair; tererê azul ou branco. De uma maneira bem

    discreta se podia perceber o relevo das calcinhas, que ele podia jurar que era feita de

    prata. Calcinhas de prata das fantasias dele. Narizes achatados ou poucos afilados, e

    lábios sempre grossos.

    No meio do coletivo uma loura, provavelmente europeia protegida por um musculoso

    afrodescendente que muito lembrava a figura mitológica de Ogum.

    Em Salvador, os ensaios para carnaval já tinha começado. O motorista já se sentava para

    sair e uma chuva fina caia. Edvaldo sentia cheiro de preto ali; era o mais gostoso cheiro

    que Salustiano mentia, dizendo que não gostava, mas que volta e meia estava num

    baticum exatamente para se sentir gente com tal cheiro. Edvaldo adorava, pois era seu

    próprio cheiro misturado ao baton, perfume, hálito e suor de todos ali exalados.

    Outra gringa, uma figura fantasmagórica ali presente, o devorava com os olhos e

    também parecia estar fascinada com aquele lugar e instante. Era a vadiagem de Edvaldo,

    que também era filho dessa terra, mas que voltava de uma longa jornada por outros

    paraísos do Brasil.

    Há muito tempo não ia ao Engenho Velho, portanto os passageiros ali presentes não

    eram conhecidos.

    Ele percebeu que além do zunzunzun fora e dentro do coletivo, existia um som de

    atabaque distante, mas não conseguia identificar de onde vinha este som. Devia ser

    alguém exibindo um novo toque e era dessa maneira que novos ritmos surgiam na Bahia.

    Ele ficou surpreso com a aparição do café, chegando num carro de mão que mais parecia

    um trio elétrico que ele pensava " deve ter descido feito helicóptero do Relógio de São

    Pedro".

    A partir daí um sentimento poderoso e belo lhe tomou o ser lembrando de Ceará dizendo,

    que o mundo começou na África e o Brasil na Bahia e que tudo que Deus criou era belo;

    que não havia raça superior ou inferior e até o esquimó também tinha sua imponência.

    Lembrou do interior de Santa Catarina; crianças com lindas bochechas rosas e olhos

    azuis, caminhando a beira da estrada acompanhando seus pais, pequenos camponeses,

    e nas capitais do Sul, um verdadeiro desfile de milhares de beldades ainda desconhecidas

    no Brasil e no mundo.

    Passando no Bairro da Liberdade em Sampa Capital, também viu outras sedutoras

    gueixas, e agora, de volta a Roma Negra, também achou que valeu a pena sua andança.

    O Brasil era colosso e belo em tudo.

    Entretanto, o que ele queria agora, era sair definitivamente de seu exílio de frio e nuvens

    cinzas, que no inicio foi maravilhoso, mas agora a ideia era passear descalço na beira do

    mar de Itapoã a Jardim de Alá. Passar uma semana em Arembepe; pegar o Ferry Boat, e

    acampar de barraca em Barra do Gil. Redescobrir Salvador, subir e descer ladeira era o

    que ele queria. Quem sabe com um amigo... amigo é coisa de criança , lembrou dessas

    palavras de Barbosa, colega de copo do Santo Antônio.

    Edvaldo sabia que tinha um irmão mais velho, um mestre, um pai, um amigo em

    Queiroz, mas nesse momento não podia contar com ele.

    E Salustiano? o que era Salustiano para ele mesmo? Todos em Brotas diziam que ele era

    filho, quase como filho legítimo de Jerusa e Salustiano, mas Edvaldo nunca viu assim e

    agora nem queria pensar sobre isso.

    Somente aquele relógio continuava a conecta-lo aos seus passeios pela Baixa do

    Sapateiros e Comércio. Subindo e descendo Taboão com um pacote de moedas a frente

    de Salustiano, que parecia ter a mão apoiada no coldre da arma com a brilhante ideia,

    que nenhum meliante suspeitaria, que uma criança negra estaria levando dinheiro num

    pacote pardo no Centro Histórico da cidade. Era pesado o pacote, pois continha mais

    moedas que cédulas. Essa arrumação do pai só não era mais fascinante para Edvaldo,

    que ver os pernas-de-pau propagando com um megafone as chitas na Baixa dos

    Sapateiros; pois ele queria um dia, quando fosse adulto estar ali em cima, como um

    perna-de-pau. Não como ele fora em um campo escondido, cercado de mato e cobras

    em Campinas de Brotas e onde ele recebeu a alcunha de Escalabau, mas o perna-de-pau

    misterioso e poderoso que Salustiano tanto lhe fazia medo.

    Em tudo isso, ele via uma Q de nobreza no pai, que prestava essa caridade à Natividade,

    em arrumar aquele corredor da casa, que até geladinho e abafa-banca se vendia para

    meninada da rua. O pai fazia isso até contrariando sua mãe, vinte anos mais nova, mas

    doente e com energia de uma mulher velha.

    Lembrando de Jerusa agora, recordou existir um pouco da natureza da mãe em si, mesmo

    sabendo não existir os laços consangüíneos entre os dois. Edvaldo era paciente como ela,

    de tom baixo de voz e as vezes, assumia inexplicavelmente uma condição de acomodado.

    Edvaldo gostava da paz de Jerusa e depois dos vinte anos, passou a pensar ser ela uma

    alma gêmea.

    Agora, com um pouco de esforço ele teria que ir ao Engenho Velho e dormir na casa

    da mãe. Ele não queria ver amigos antigos, que até os nomes não tinha importância,

    e amigo é coisa de criança como dizia Barbosa, e muitos mudaram para Cajazeiras

    e outros morreram da cachaça. Edvaldo despertava.

    Salustiano e Jerusa

    Era o casal Boamorte, que veio de Irecê para Salvador, ou para Bahia, como dizia

    Salustiano, ignorando que Irecê também é a Bahia.

    Salustiano Boamorte saiu da terra do feijão alegando insucesso e queda de safra. Algo

    que não acontecia tão frequentemente assim para o pequeno e médio agricultor da

    região. Ainda mais porquê, o mesmo Salustiano sempre recebeu incentivos,

    principalmente de Fernando seu sogro, que adquiriu fama e fortuna com o cultivo do

    grão, mas a exposição ao sol também lhe dera outra herança de pústulas, fissuras na

    pele e erupções cutâneas que muito temor lhe causava e suspeitas da doença maldita.

    Ele, investiu em outros irmãos de Jerusa, mas acreditou também nos apelos de

    Salustiano, com seu jeito esporreteada, que muito confundia com a sinceridade, mas que

    não lograra êxito igual em Cachoeira, sua terra natal onde todos sabiam da sua real

    fama.

    Em Irecê, recebeu um dote de vinte hectares de terra, que ele já cuidava antes mesmo

    de casar com Jerusa, nas folgas de suas viagens para Salvador com carradas de feijão e

    milho, que vendia em Água de Menino. Dizia para Fernando seu sogro, que seu produto

    ia para os navios das Docas, e negociava com o governo da Bahia diretamente; mentira

    que Fernando fazia vistas grossas, pois Salustiano sempre saldava o acordo com ele e

    entendia que sua carga pequena, era melhor demorar um pouco mais e ser vendida na

    feira e armazéns da Cidade Baixa. Esse caô, Fernando na verdade verdadeira, aceitava,

    pois queria ver em seus filhos esta sugesta de baiano, que lhe traria bons dividendos nas

    negociações com os homens em Salvador da Bahia.

    Fernando precisava de um agregado como Salustiano na família, apesar de suspeitar que

    as histórias de suas origens em Cachoeira não eram cem por cento confiáveis. Agenor,

    seu filho mais velho, em pesquisas de campo na mesma cidade nunca se interessou em

    saber do passado do cunhado, mesmo porque cunhado para ele não significava nada;

    nem parente era. De Jerusa sua irmã, ele pouco lembrava. Era como um mosca morta.

    Achava que Salustiano não era mal partido para irmã, que se ela não casasse, ficaria

    uma moça velha, e que o passado dele não devia ser tão horrendo, pois conhecia amigos

    de infância garganteiros como o cunhado, mas não tinham coragem de matar um

    sariguê. Um dia, após o feijão lhe dar toda sua autonomia, ele ia morar no Rio, e ver as

    garotas de Ipanema. Iria ao Maracanã torcer para o Flamengo, time do seu coração.

    Quem sabe ver o Flamengo vencer o Santos de Pelé em pleno Mário Filho lotado. Ele

    sonhava com isso ouvindo jogos do Flamengo pelo rádio. Jerusa quase não existia para

    ele. A Bahia não existia; era como se fosse o rabo do cachorro, e "nisso Salustiano tá

    certo, pensava; pois para ele, Irecê nem no mapa estava, era onde o cachorro lascou

    a boca. Onde o vento faz a curva". Terra quente e sem praias.

    Fernando, posteriormente tendo confirmado as suspeitas da doença que ele mais

    temia, passou a incentivar todas escolhas dos filhos, e Jerusa já casada com

    Salustiano, tornou-se também sua companhia em algumas viagens à Salvador. Não

    tardou ele tornar-se um mascate na venda de tecidos trazidos de Salvador para Irecê.

    Também ia até os curtumes da região e levava todos artigos de couro possíveis de

    vender em Salvador. Salustiano inventou várias desculpas e mostrar que seu interesse

    em Salvador era só negócios, mas nunca tentou Recife ou até mesmo o sudeste.

    Quando começou a implantação do Porto de Aratu e Jerusa volta e meia na bolera

    com ele, não foi difícil convencer Fernando que seria melhor para todos, inclusive para

    Jerusa, que sempre fora anêmica e frágil, irem definitivamente para Salvador. Salustiano

    adorava a Boa Terra.

    Jerusa se animou com a ideia de tratar sua condição estéril sem mesmo considerar que

    podia ser ele o inapto a ter filho. Para ela, se o marido conquistou seu pai, ele podia

    muito bem assumi-la sem nenhuma preocupação.

    Salustiano tinha um imaginário projeto de vida, de transportar o cimento na construção

    do porto e depois crescer junto com a riqueza que seria gerada ao redor do dele. Não

    existia nada consistente em toda sua ideia, mas ele tinha uma economia, um caminhão

    e Cruzeiros suficiente para comprar sua chácara em Brotas. A alva palidez de Jerusa,

    contrastada com as negras de ancas fartas, na mais africana cidade brasileira, causava

    em Salustiano uma inexplicável sensação de prazer. Ele chegava a desenhar em sua

    mente vários quadros que nem Freud saberia explicar. Em suas taras alucinadas,

    colocava em projeções noturnas, Jerusa sendo abraçada e recebendo um banho de

    pipocas por feitas e outras esquisitices mais.

    Enfim, ele conseguiu realmente uma única vez transportar cimento para o porto, porém

    ele tomou gosto pela condição de vendedor de tecidos. Era quase como de porta a porta

    se não fosse seu grande conhecimento com comerciantes, taxista, feirantes, professores

    e tantos mais outros profissionais liberais que circulava o centro histórico. Dessa maneira

    ele achava tempo e público para contar suas culhudas. O sonho de riqueza foi trocado

    por bravatas em pleno Pelourinho e botecos em Brotas. Adotou a brilhantina o quanto

    pôde e por vezes era visto fazendo nada na entrada das Sete Portas.

    Salustiano não gostava de criança e não conseguia imaginar um bebezinho recém

    nascido, de pernas para cima com sua genitália expostas sendo trocadas suas fraudas

    de cocô. Em casa de seus fregueses enquanto mostrava uma peça de tecido, pensava em

    dar catiripapos em uma mãe por deixar seu filho chorar no berço ou até mesmo quando

    os maiores corriam pela casa enquanto ele fazia sua demonstração. Para ele "Deus era

    bom", pois fechou a madre de Jerusa. E ela sentia não ter energia de parir ou cuidar de

    uma criança. Até rezava e fazia promessas para ter um filho, mas qualquer Santo

    entendia que não havia verdade em seus apelos. Igual a ela estava para nascer, pois seu

    santo de verdade era Salustiano; o marido para ela, era a reencarnação de Santo

    Antônio. Salustiano por sua vez, falava de outras mulheres, mas queria se referir a ela

    que tinha uma missão nessa vida, a missão de ser exatamente nada. Para ele, que era

    do tipo capaz de colocar a mulher de castigo, ao sentir essa forma de Jerusa de ser feliz

    assim com a vida, achava de bom gosto tal comportamento .

    O menino Henry

    Com três anos de casados e já fixos em Salvador, o próprio Salustiano passou a se

    incomodar, por Jerusa nem um muxoxo fazer por não ter filho. A mulher nem thun,

    pensava. Mas nunca em lugar algum ou circunstância alguma falava de sua esposa;

    muito menos contrário. Porém, passou a matutar a possibilidade de uma adoção.

    Pensava ser uma boa, pois não queria muito laço afetivo nessa relação de pai e filho.

    Queria algo parecido com o que ele sentia em contato com as crias de Natividade, que

    era algo até de certa forma agradável. Vez ou outra, ela precisava levar um ou outro

    filho a Brotas e deixava meia dúzia na Mata Escura, sabe lá com quem, Salustiano

    curtia. Quando ela falava com seu vozeirão que deixou com a menina, ele dizia "mas

    que peste de menina será essa, é alguma empregada", pois entendia que era muito

    pouco o que pagava à ela, mesmo com o que era vendido na porta do corredor ao lado

    da casa. Mas de uma maneira espírita, tudo isso fizera-a cair nas graças de Salustiano,

    que vez ou outra enquanto aguava o quintal, deixava um dos seus dentro de uma bacia

    dágua. Ele nunca sabia nem lembrava nome de nenhum e pensava "essa preá só tem

    macho". Só ficava impressionado com o tamanho do pinto de cada um que ela trazia.

    Dizia enquanto fumava um charuto em Água de Meninos para feirantes ou amigos de

    copo, que os filhos de Natividade não tinham pinto, mas uma sucuiuba. "É cada manjuba

    que dá medo. O moleque não tem cinco anos e tem maior que a minha. Não acredite em

    mim não, acredite em Deus".

    Com o incômodo da letargia de Jerusa na questão de filhos, ele radicalizou e resolveu

    adotar. Tinha Natividade, que seria como Joquebede de Moisés, que amaria como mãe

    de verdade o filho que ele adotasse. A exemplo do que fora escrito no Êxodo, até o peito

    Natividade daria para algum salvo das águas que fosse escolhido pelo destino.

    A própria Natividade sugeriu a procura por uma criança abandonada na Irmã Dulce. O

    que deu certo, pois lá encontrou o menino com dois anos incompletos, de pele negra e

    olhos ligeiramente amendoados. Existiam tantos, com várias histórias de sofrimentos e

    traumas, mas que para este, que Jerusa escolheu - fato esse que fora uma imposição de

    Salustiano que dizia no final do corredor de maneira discreta "pelo menos isso, qual você

    escolhe "- não se via nos olhos nenhuma sequela por conta de seu abandono.

    Salustiano precisava de um filho também por outro motivo muito importante para ele,

    pois era um adorador da marca Ford, do homem Henry Ford e todos os caminhões que

    fabricara. Queria por último ter um filho e colocar esse nome: Ford. Na juventude ele

    sonhara com isso e agora, após ver aquele mulatinho em Irmã Dulce lembrou de seu

    sonho e imaginou que aquela criança tinha uma missão de ser O Fordão Baiano, como

    posteriormente ele diria em toda Cidade Alta e Baixa, na sua figura de Zé Pelintra.

    No princípio não conseguiu registrar o nome Ford Divino da Boamorte, pois só rico na

    Bahia conseguia colocar nome de inglês em filho. Mas ele tentou de várias maneiras,

    mas parecia que os escriturários e oficiais dos cartórios não queriam que ele realizasse

    seu sonho. Por último lembrou de um camarada da Calçada; era só achar uma

    maneira de comprovar que morava no bairro do Uruguai, na cidade Baixa, que seria

    fácil. Mas não foi.

    Dizia para Salustiano num boteco no pé da Ladeira do Inferno, "homem, pelo Senhor do

    Bonfim não tem baiano vivo com esse nome de Ford, e Salustiano dizia e daí, mas tem

    Maicon. Também não; só se for em São Paulo. Impaciente dizia o camarada Homem

    vá então em São Paulo e tenta pra ver. O tabelião aqui não vai assinar. Mas Maicon

    aqui na Bahia tem, não tem, olha que tem, não tem homem . Olha que te mostro

    . Me mostre. Vá, vá, não tem, mas e daí ".

    E daí que não deu, mas Salustiano era malandro e sempre seria e pensou, "Ford não dá

    e ele está certo, mas Henry não tem porque não". Aproveitou o mal humor, a

    impaciência, o bode de segunda-feira do camarada de copo que até o nome ele não

    sabia, pois chamava-o de Parceiro e conseguiu o registro de Henry Divino da Boamorte.

    Esse nome iria incomoda-lo por toda infância e boa parte de sua vida adulta, pois sentia

    que sua baianidade era forte, suas raízes iorubá eram marcantes e o nome Henry

    chamado nos babas de futebol nos campos do lasca, Cean e Campinas de Brotas ficava

    desconexo; um ultraje ao seu estilo viril e aguerrido de Baiaco. Era seu jeito sério dentro

    do campo sem brincadeiras, compenetrado como se fosse o próprio Edvaldo, o Baiaco

    ídolo da nação tricolor. Isso lhe rendeu a mesma alcunha e no futuro ele retaria, e em

    cartório faria a maior desfeita contra Salustiano, trocando o nome para Edvaldo.

    Foram vários apelidos como outros, até do rival Vitória da Bahia, como Zé Preta, uma

    vez ao conseguir fazer um gol, numa patada maluca da intermediária do campo. Bedeu

    do alto da ladeira do campo do Cean gritou:

    - Que porra é essa véi? Não é mais Baiaco não é Zé Preta sacana.

    Quase que pega o apelido, mas a exemplo de Baiaco ele gritava "nada

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