Educação menor: conceitos e experimentações
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Educação menor - Grupo Transversal-Unicamp
UERJ
Sumário
PREFÁCIO: Experimentando minorações no pensamento e na educação
APRESENTAÇÃO, por Alda Romaguera
Uma educação menor
Grupo Transversal
A Função Pedagógica do Educador: apontamentos sobre multiplicidade e diferença
Davina Marques, Gláucia Figueiredo e Sílvio Gallo
E
Davina Marques
Experimentar uma Pedagogia Menor através do filme Vermelho como o Céu
Gláucia Figueiredo
Educação Menor: produção de heterotopias no espaço escolar
Sílvio Gallo
Ética, Estética da Existência e Educação Menor
José Luiz Pastre
Texto de re ( ) talhos de ideias
Renata Lima Aspis
TransKafka: uma experimentação
Ana Godoy
Um Estudo do Conto Confissões de uma Viúva Moça, de Machado de Assis: experimentar o feminino
Marcelly Camacho Torteli Faria
Educação com Esquecimento: conversas, devaneios e criação
Elenise Cristina Pires de Andrade e Marcelly Camacho Torteli Faria
Aprendizagem como abertura intensiva para as relações do fora que nos forçam a pensar
Roberto Duarte Santana Nascimento
SOBRE OS AUTORES
Prefácio
Experimentando minorações no
pensamento e na educação
Em 2003, da maneira mais informal possível, numa caminhada por entre as árvores do campus da Unicamp, surgiu a oportunidade de materializar um desejo que tinha há tempos: a constituição de um grupo de estudos dedicado à filosofia francesa contemporânea, buscando suas interfaces com a educação. Na época, eu trabalhava na Universidade Metodista de Piracicaba e na Unicamp, em tempo parcial. Estava apenas uma vez por semana em Campinas e foi o empenho de duas orientandas, Luciana Palharini e Simone Gallina, que possibilitou que o grupo se concretizasse. Ele foi batizado como Transversal – grupo de pesquisas em filosofia contemporânea e educação.
Definimos que o grupo de estudos teria como objetivo desenvolver estudos e pesquisas na área de Filosofia Contemporânea, voltadas para um interface — direta ou indireta — com o campo da Educação, aglutinando os esforços de seu coordenador, professores convidados, pós-doutorandos, alunos de doutorado, mestrado e graduação em Educação (Pedagogia) e Filosofia. Essas pesquisas poderiam tanto estar voltadas para o estudo do pensamento de filósofos que possam contribuir direta ou indiretamente para a análise de questões referentes à educação, quanto para o estudo de problemas educacionais contemporâneos, utilizando-se do instrumental conceitual filosófico. O grupo pretendia, ainda, viabilizar a publicação de resultados de suas pesquisas, organizar seminários, congressos e outras atividades acadêmicas voltadas para a produção e a socialização do conhecimento em sua área específica de atuação.
Desde a origem, desejamos que o grupo fosse informal, sem passar pela malha da burocracia acadêmica, e que fosse aberto à participação de todos os interessados nas temáticas estudadas. Em agosto de 2005, com a criação do DiS – Grupo de Estudos e Pesquisas Diferenças e Subjetividades em Educação, do qual sou o coordenador, o Transversal foi acolhido como um grupo de estudos a ele ligado, respeitando sua informalidade e independência de trabalho. O DiS, por sua vez, está formalizado junto à Faculdade de Educação e ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Unicamp e cadastrado no Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq.
A principal forma de atuação do Transversal tem sido a reunião periódica (semanal ou quinzenal) para estudo e debate de textos e temas da filosofia contemporânea. A cada semestre, definimos um cronograma de atividades e leituras. A participação, por ser livre, é flutuante: o grupo mantém algumas pessoas mais perenes, com outras que variam a cada semestre, por conta dos temas e textos escolhidos para estudo. Como produtos do trabalho do grupo, temos tido dissertações de mestrado e teses de doutorado que se alimentam dos debates do grupo, bem como a produção de textos para eventos acadêmicos e para publicação em revistas e como capítulos de livros.
No ano de 2008, nos dedicamos, no primeiro semestre, à leitura, estudo e discussão da obra Kafka, por uma literatura menor, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, autores que o grupo frequenta bastante. No segundo semestre do mesmo ano, nos dedicamos a debater textos escritos pelos membros do grupo, motivados pela temática proposta por Deleuze e Guattari. O centro de nossas preocupações: pensar uma educação menor, em paralelo à ideia de uma literatura menor.
Escrevemos coletivamente, a várias cabeças e muitas mãos, um texto que procurou conceituar a ideia de menor na obra dos filósofos franceses e vários de nós escreveram textos individuais ou coletivos, que foram lidos e criticados pelo grupo. A experiência de uma escrita coletiva, com todas as dificuldades que ela impõe, foi uma experiência riquíssima para todo o grupo. Ter os textos de cada um lidos e discutidos foi também bastante produtivo para todos e para cada um. Este trabalho foi concluído em 2009 e os autores tiveram então um tempo para reescrever seus textos, bem como retrabalharmos o texto coletivo, que teve, pelo menos, onze versões até chegar nesta ora publicada. No primeiro semestre de 2010, os textos foram retomados, revistos, adequados às novas normas ortográficas e organizados no presente volume. Neste trabalho de finalização da obra, envolveram-se intensamente as doutorandas Davina Marques e Renata Lima Aspis.
Menor é um conceito chave na filosofia produzida por Gilles Deleuze e Félix Guattari. Aparece pela primeira vez neste trabalho sobre a literatura de Kafka, publicado na França em 1975, três anos após a publicação de sua primeira obra conjunta, O Anti-Édipo, e cinco anos antes da publicação de Mil Platôs. É, certamente, um pequeno livro que faz uma espécie de ponte, de conexão, entre estes dois grandes livros da filosofia do século vinte. Apenas a título de exemplo, nele aparece pela primeira vez o conceito de rizoma, que seria trabalhado intensamente em Mil Platôs. François Dosse nos conta, em sua biografia cruzada
de Deleuze e Guattari, que em larga medida o livro se deve a uma grande paixão de Guattari pela obra de Kafka, paixão que inclusive o fez organizar uma série de atividades em 1982, sob os auspícios do então ministro da cultura, Jack Lang, celebrando o centenário do nascimento de Kafka.¹
Uma literatura menor é um literatura de combate, de resistência, de afrontamento, produzida às margens da grande literatura, controlada pelo Estado. Em Mil Platôs o conceito é retomado e vemos emergir as ideias de ciência menor e de filosofia menor, por exemplo. Para os autores, o menor, seja na filosofia, na ciência, na literatura, é o que vaza, o que se produz nas margens, fora dos sistemas de controle. O menor é o nômade, distinto do sedentário. O menor está articulado como uma máquina de guerra, distinta da organização dos exércitos mantidos pelo Estado, pelo poder centralizado.
Mobilizado pela potência do menor, inspirado pelo livro sobre Kafka, o Transversal quis explorar a fundo a multiplicidade de sentidos de uma educação menor, tema que explorei pela primeira vez em um artigo publicado em 2002.² Se no capítulo de abertura, de autoria coletiva, procuramos conceituar menor na educação, os demais capítulos abrem-se para diferentes aspectos do problema.
Para dar organicidade à obra, organizamos os capítulos em dois grandes blocos. Uma primeira parte, composta por sete capítulos, intitulada, Entre educação e política, foca mais diretamente distintos aspectos políticos da educação, mobilizada em torno do conceito de uma educação menor. A segunda parte, sob o título Experimentações e pensamento, viaja pela educação, pela filosofia, pela literatura, produzindo experimentações de pensamento em torno do menor.
O grupo Transversal espera que os leitores encontrem aqui oportunidades de embrenhar-se pelo conceito de menor, atualizando algumas de suas virtualidades, mas que, sobretudo, os leitores encontrem elementos e desafio para realizar suas próprias experimentações no pensamento.
Prof. Dr. Sílvio Gallo
Faculdade de Educação – Unicamp
inverno de 2012
Apresentação
TRANSversar Kafka, kafkar deleuze
Professorar na contemporaneidade pode nos convidar ao embarque em viagens para o caos. Esta nova rota se propõe a desestabilizar viajantes que antes rumavam para o futuro, convidando-os a passear, a deslocar-se por intensidades de fluxos em direção ao devir. Proposta de exercitar uma relação mais móvel, sem fixidez, mais nômade, que aconteça em espaços horizontalizados, em rede, sem fronteiras.
O convite ao embarque que aqui se apresenta pretende traçar outras rotas, menos previsíveis, que levem a abdicar do conforto, da segura âncora histórica oferecida por pedagógicos textos, para transitar pelos incertos caminhos do agora. E aceitar a possibilidade de correr riscos, de dançar no trapézio, sem rede. E transmutar: professores/malabares/palhaços/equilibristas/domadores/mágicos – híbridos no grandioso espetáculo da vida -, em aprendizes de ousadia. E exercitar movimentos de participação e de observação: deslocar, sair do confortável lugar; ensaiar passos para propor uma dança sem prévia coreografia, para dançarinos que se movem em compassos cadenciados, de corpo inteiro, mergulhados em imanências.
O que ainda vibra no campo educacional que pode nos impulsionar a conexões outras, que acontecem na duração do instante, em espaços multiplicados, posto que nos tornamos outros e transitamos por tantos pensares?
Relações de encontros e desencontros. Muita gente junta, aglomerada em grandes cidades, bolsões de vida em proliferações desordenadas. Modo de vida que se dissemina pelas mídias e contagia comunidades antes pacatas e singulares, que se movem em estado de alienação autônoma
³. Proliferação consumista, compulsão pelo mesmo, cópia globalizada que se amplifica em ondas. Pessoas e saberes em des-compasso, nos movimentos arrítmicos de uma dança em espaços, tempos e fazeres deslocados, sem nexo. Interesses antagônicos, vozes cifradas, dizeres interrompidos, gestos travados.
Esboço, tentativa de re-desenhar uma paisagem, por entre rabiscos, que ainda deixa rastros de um pensamento que insiste em representar e interpretar, que assume a leitura dos mundos atuais como um imenso e devastado continente, cujo solo cansado resseca possíveis sementes, nada restando a fazer, além de repetir o mesmo. Aridez, desolação, apatia, inércia de deserto. Até que o vento sopre... E Éolo anuncie com Nietzsche e Deleuze: Tudo a fazer, no eterno retorno do diferente.
O que pode um (a) professor (a) agregar, que suspenda o movimento mecânico do fazer? A proposta é interromper a ação repetitiva dos fazeres educacionais, imprimir inventividade ao currículo, desenhando-o em rizomáticos contornos, ao mesmo tempo em que se estabelece rigor conceitual, escapando dos exercícios de fixação de conteúdos – tão caros aos sistemas de ensino, que investem pesado no modelo competitivo -, para buscar, experienciar saberes. Des-pedagogizar a educação hiper-escolarizada.
Educ-ação com caráter político, filosófico, operatório. Que não se configura enquanto estratégia metodológica, antes se propõe a repensar o aspecto ético e estético do existir.
Educ-ação campo-de-pensamento que assume o poder de afetar e de ser afetada.
Se a educação pode ser pensada como um movimento dos campos de pensamento, é preciso desalojar-se das certezas, evitar a formulação de perguntas que pressupõem respostas. Apostar na educação como dança, como que tradução de movimentos, como que em pulsação; para que não seja nem isto nem aquilo, conectando-se pelo ou, mas que seja e isto, e aquilo, e aquilo outro, e outra vez, posto que conectada pelo e: ensaios de orquestra, em arremedo felliniano.
TRANSitar: (es)tar em trânsito e des-en-CON-trar, CON-versar
TRANSversar kafka, kafkar deleuze e EX-cre-VER, LER
VER lamber ER, cheirar tocar AR, ouvir sentir IR
EX-ist- IR no que se lê, LER através, atravess-AR, VERsar o avesso
TRANS-VERter vozes, sub-VER-ter vocábulos
LER... li-ter-AR
TRANS-valor-AR
VER-sar, ga-gue-jAR linguagens, Are-jAR
minorAR educ-ações... RE- ações...
RE-EX-ist-IR, resistindo minoridades
RE-EX-ist-IR, existindo minoIRdades
Alda Romaguera
dezembro/2010
Uma Educação Menor
Grupo Transversal
Em Kafka, por uma literatura menor, Deleuze e Guattari veem uma característica singular que destacam na obra do escritor. Afirmam que a sua literatura é menor. Menor, termo em nada pejorativo, é apresentado como exemplo de uma literatura que tem atributos linguísticos, políticos e coletivos. Nas palavras dos autores, são importantes na obra de Kafka: a desterritorialização da língua, a ramificação do individual no imediato-político, o agenciamento coletivo de enunciação (DELEUZE & GUATTARI, 1977, p.28).
O primeiro aspecto, a desterritorialização da língua, é o elemento linguístico da minoridade, assim conceituado: Uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior
(Ibidem, p.25). Deleuze e Guattari destacam o deslocamento
do alemão kafkaniano, que na fala de seus personagens torna-se uma língua dissecada, misturada com tcheco e iídiche
(Ibidem, p.32). Kafka carrega a linguagem de tensores, perverte a sintaxe, cria uma língua intensiva
, um uso intensivo
do alemão, transforma-a em uma língua em experimentação. Experimentação esta que funciona como um deslocar-se no mesmo lugar (sur place). Trata-se de uma configuração intensiva, de um pulsar de intensidades. Essa linguagem em experimentação, que é movimento, não se movimenta ocupando e estriando o espaço, mas movimenta-se localizando e experimentando o aspecto linguístico. Experimenta-se fazendo vibrar fronteiras ilimitadas e indeterminadas da língua de uns e de outros. Experimenta-se, na literatura, construindo a maquinaria desejante-coletiva de uma fala-escrita-ação. É máquina, porque comporta mecanismos interconectados; desejante-coletiva, porque, como nos lembra Deleuze, em O Abecedário de Gilles Deleuze⁴, não desejamos simplesmente alguém ou algo, mas desejamos em conjunto, em construção.
A linguagem passa, portanto, por um processo de desterritorialização, sem linha reta, lembram Deleuze e Guattari. A língua é modificada, adulterada, torcida, passando a ser adequada a estranhos usos menores
(Ibidem, p.26). A língua alcança desvios para revelar a vida nas coisas
(DELEUZE, 1997, p.12) e torna-se então:
... uma espécie de língua estrangeira, que não é uma outra língua, nem um dialeto regional descoberto, mas um devir-outro da língua, uma minoração dessa língua maior, um delírio que a arrasta, uma linha de feitiçaria que foge ao sistema dominante. (...) opera uma decomposição ou uma destruição da língua materna, mas também (...) opera a invenção de uma nova língua (Ibidem, p.15).
Essa desterritorialização acontece porque Kafka traz ao seu texto uma multidão de grupos minoritários, fragmentados, nômades:
... grupos minoritários, ou oprimidos, ou proibidos, ou revoltados, ou sempre na borda das instituições reconhecidas, mais secretos ainda por serem extrínsecos (...) (DELEUZE & GUATTARI, 2002a, p.30).
O texto kafkaniano materializa vozes que falam dos mais distintos lugares, vozes nômades daqueles que se movimentam e não se mexem, que são nômades justamente por não se moverem. Em um texto menor, confunde-se, pois, o individual no coletivo, e isso leva àquilo que Deleuze e Guattari chamam de ramificação do individual no imediato-político. Nas literaturas menores, tudo é político. O texto assume esse caráter político e faz com que cada caso individual se torne necessário, indispensável, aumentado no microscópio, na medida em que outra história se agita nele
(DELEUZE & GUATTARI, 1977, p.26), pois a literatura menor tem a ver é com o povo
(Ibidem, p.26-27).
O entrelaçamento dessas múltiplas vozes resulta em um novo agenciamento⁵, uma máquina coletiva, algo que Kafka busca apontar, segundo os autores. Trata-se de um enunciado coletivo porque jamais remete a apenas um sujeito ou a um duplo. Na literatura menor (...) tudo adquire um valor coletivo
. Essa enunciação coletiva exprime uma outra comunidade potencial
, cria os meios de uma outra consciência e de uma outra sensibilidade
. Uma consciência coletiva não é ativada senão pela literatura, que se encarrega desse papel e dessa função de enunciação coletiva, e mesmo revolucionária
(Ibidem, p.27).
Esse agenciamento coletivo capta intensidades e as territorializa, fixa-as em blocos regidos por leis às quais os sujeitos não têm acesso. O território é uma coletividade complexa que vai além do que enxerga o senso comum, é efeito de um conjunto de relações produtoras que maquinam aberturas para novas e insuspeitadas construções. Portanto, o mesmo agenciamento, territorial, tem pontas de desterritorialização, linhas de fuga que o atravessam e o arrastam
(DELEUZE & GUATTARI, 2002b, p.219). Em outras palavras, o território é inseparável da desterritorialização:
As regras concretas de agenciamento operam, pois, segundo esses dois eixos: por um lado, qual é a territorialidade do agenciamento, quais são o regime de signos e o sistema pragmático? Por outro lado, quais são as pontas de desterritorialização, e as máquinas abstratas que elas efetuam? (Ibidem, p.220).
Estamos diante de um