O verso e a prosa
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Sobre este e-book
Provavelmente de minha mãe, menina-mulher dos tempos de outrora que as unia em perfeita sintonia, falando do seu amor por meu pai.
Este livro trata de herança que tomei em minhas mãos quando me aposentei.
Queria falar da vida, da minha em particular, plena de momentos os mais variados de tristezas, alegrias, perdas, lutas, vitórias, amores, música, dança...
Escrever sobre a vida permite trazer à consciência vivências que, de tão valorosas, evidenciam como foi bem vivida.
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O verso e a prosa - Cleonice Duprat
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Cavalgando
Numa tarde de sonhos,
Bem perto do anoitecer,
Saí a cavalgar em belo cavalo,
Daqueles importados da Inglaterra,
Que, nos haras da nossa terra,
Só em sonhos pode existir.
Trote suave, tranquilo,
Inebriante, de gestos tão amáveis...
Pelos e crinas bem tratados e escovados
Sela e esporas especiais para um belo
Animal de pura raça, que parecia
Mágico ao conduzir-me pelas margens
Do rio, como a mostrar-me toda a beleza
Do contraste com aqueles campos verdejantes.
Viajante sensível ao calor daquela tarde
Dispus-me a desnudar-me parcialmente
Para sentir o fragor dos ventos que
Sopravam minha pele,
Excitante panorama da colisão
Entre a tarde e a noite.
Naquela paisagem jamais vista,
Longe da monotonia,
Não havia tédio nem rancores:
O olhar fixo, inebriante,
Senti-me trêmula,
Lampejo de prazer crescente.
Não é dolorosa a existência
Quando há meios de amenizá-la
Dissipando as tristezas românticas dos viajantes,
Conflitos de pensamentos ambulantes
Quando se cavalga nos campos...
Com a alma aberta...
Cavalgando...
Confidência
Embevecida em praia deserta
Volto meus olhos para a imensidão do mar.
Acaricio meu corpo, pés e mãos desnudos,
Patenteando sentimentos no meu jeito de amar.
Faço participação secreta ao oceano diáfano,
Único capaz de guardar segredo meu tristonho
De um amor cândido, puro e saudável,
Que pode ir-se embora num vendaval estranho.
Os penedos abarrotados de frustrações minhas
Completam a maldição contida dentro de mim
Que emerge das ondas, num desejo violento.
Mas jogo-as de volta ao meu tranquilo jardim.
São tristezas inexplicáveis, amargas como o fel,
Que lentamente de mim se apoderam.
Mas por que tanta cólera, tanta inquietação,
Se tenho teus beijos com sabor de mel?
Incompreensíveis momentos de incerteza,
Ânsia que desvaira um coração em prantos
Vendo-me espelhada na água que aflora
Face cansada de lamentos tantos.
Saudades
Saudades de onde nasci, não vivi e não conheci.
Saudades de onde realmente passei parte da vida,
Vagueando o fluxo das águas com olhar doce e sonhador,
Feliz ou infeliz no decorrer da existência.
Saudades dos que se foram e não voltaram.
Sequer em sonhos pude encontrá-los,
abraçá-los, beijá-los...
Certa estou de que não os verei jamais.
Recordo de mim, pequenina, chorando angustiada
No seio de quem se foi e não retornou,
Restando a maior saudade existente,
Que parte o peito e deixa no coração um ardor
Que jamais cessa
E me seguirá por toda a vida.
Saudades de infinitas e nostálgicas lembranças
Que me castigam onde quer que eu vá.
São ausências intermináveis de tudo que se foi
E de mim se afastou num abandono não esquecido.
Saudades da vida que poderia ter vivido,
Saudades dos que me fizeram sofrer.
Saudades dos que me ampararam à distância,
Saudades dos que nunca conheci e não conhecerei.
Saudades das lembranças que na alma residem.
Saudades do meu piano deixado de lado
Para calar o som triste que dele se ouvia
Como prece que a mim me confortava,
Mas não para os que sentiam desprazer
Nas vibrações sonoras que se faziam deslizar suavemente.
Saudades de pessoas órfãs como eu,
Saudades do presente, do futuro e do passado,
Saudades do vazio interior que em mim reside,
Na lembrança solene de tudo que se foi.
Feliz agora para não me deixar afogar
No oceano de mim mesma.
Bênção
Deus em toda a sua supremacia e beneficência
Deu-me a graça de ser mãe, a mais veemente,
De uma linda menina de olhos cor do céu,
Como num sonho, em sua maior incandescência.
Ela me veio em momento altamente abençoado
E me trouxe o melhor que da vida se pode ter.
Feliz o dia dos aprazeres mais febris.
Em que meu âmago gerou ser tão esperado.
Fui premiada entre as mulheres mais férteis,
Para conceber criança das mais belas,
Mimosa, iluminada, suave como uma flor
Dentre os botões das variadas espécies.
Renasceu em meu coração o prazer de viver,
Pois chegava a ditosa filhinha primogênita,
Cercada por uma auréola brilhante,
E um anjo estava ali a lhe proteger.
Chorei de alegria ao vê-la pela primeira vez,
Com comoção pura e acalentadora,
Ouvi canção de amor trazendo a minha paz,
Era a vida mostrando-me toda a sua altivez.
Ergui os olhos para o céu em agradecimento
Por ter em meus braços um aljôfar, um brilhante,
Pedra preciosa que me pertencia com galhardia
E cintilava como as estrelas no firmamento.
Como foi sublime tê-la em meus braços,
Embalá-la em meu peito, tranquilizá-la,
Como se tudo quisesse me dizer
Que a vida era completa com seus abraços.
Amor e vinho
Hoje, tudo em nossa existência é alegria,
Somos livres a correr pelos prados floridos.
O vinho aumenta o tamanho das flores
E traz-nos de volta ao mundo de alforria.
Oh, vinho doce que o passado faz esquecer,
Olhando estonteantes o azul viçoso céu,
A paisagem gigante que se aproxima,
Conforme vagamos até o alvorecer.
Oh, vinho que nos faz amar intensamente
E seguir como se fôssemos um só,
Busca do Éden que está à nossa frente,
Avistando-nos com a felicidade plenamente.
Vinho que multiplica sentimentos aflorados,
Excita-nos e eleva-nos ao mais alto torpor,
Fazendo-nos esquecer o amanhã.
Que importa se hoje estamos abraçados?
Vinho que nos aquece a alma enternecida
Num inexorável momento de ternura,
Num gesto incontido de amor ardente,
Fazendo-nos chegar à paz já esquecida!
Junto à natureza
Contemplar a natureza quando o pensamento é tortuoso
Mostra-nos como tudo na vida é valoroso.
A natureza, com sua beleza interminável,
Dá-nos a interpretação de verdades indeléveis,
Liberta-nos de todo sofrimento de pensar.
Repleta de comoção, alivia-nos, sem torturar,
Da opressão frustrada de ser sensível e amar.
Plena de vida, ela nos coloca ilesos
Do incômodo da vida a que estamos presos,
Diz-nos que é inevitável que existamos
Leva-nos a sentir a realidade da vida que amamos.
De modo absoluto, não imaginário, mas real,
Exibe-nos meiguice, sem que tenha sensibilidade virtual;
Completa-nos quando vemos as coisas apenas com os olhos,
Não com a mente, que está desordenada entre os abrolhos.
Ao se fixar o olhar sobre uma flor,
Não se experimenta abandono, mas, sim, uma quietude de amor.
Mostra-nos ternura do alvorecer ao anoitecer,
Uma sorte enigmática que nos domina e fortalece,
O croqui de um destino a que não sabemos como obedecer.
Toda tranquilidade da natureza está conosco a sorrir
E exala paz, harmonia e sabedoria;
Deixa-nos transparentes na mais forte emoção
Diante do que nos satisfaz e apraz ao coração.
Ensina que não devemos fugir das ações dolorosas,
Mas que não sejam extremas nem lastimosas.
Viver a natureza, viver com a natureza
Exulta-nos o sentir da existência sem aspereza,
Ao tempo em que a multiplicidade de suas nuanças
Evidencia-nos o poder de se alcançarem as mudanças.
Ora é o mar plácido, sossegado
A nos banhar com sua calmaria
Onde o vento torna-se abnegado,
Ora é o mar alvissareiro,
Demonstrando, por vezes, sua infinitude,
Por outra, sua força e seu poder traiçoeiro.
Ora são as montanhas, de uma beleza sem igual,
Que nos convida a alcançar seu pináculo, muitas vezes fatal.
Ora é a lua, que transforma os amantes entristecidos
E enleva o coração dos poetas embevecidos.
Ora as estrelas que brilham cintilantes,
Agrupadas em montes separados e distantes,
Que mais parecem tochas brilhantes
A nos espiar de longe em nossos momentos de agonia,
Como se tudo nos envolvesse numa eterna nostalgia.
Por fim, a majestosa e elegante floresta
Conduz-nos por sobre folhas secas,
Como se caminhássemos por uma única esteira,
Ao mesmo tempo em que atravessamos
O entressachar de suas folhagens selvagens
Acompanhadas do perfume de suas flores naturais...
Ah, natureza divina, que a todo instante nos convida
A experimentar seu esplendor!
Você é, sem sombra de dúvida,
O maior benefício que Deus nos ofertou.
Chegada da primavera
Quão ansiosa pela mudança a estação,
Misturada aos ventos ainda quentes
Que aquecem corações enternecidos
De almas ofegantes à espera da mutação.
És tu, natureza de esplendor,
Transmitindo teu segredo estonteante
Aos amantes cheios de ternura,
Cuja evolução de sentimento e brandura
Pode se expandir através de flores e amor.
Vem a mim, primavera dos meus sonhos!
Afaga-me em teus braços vibrantes,
Traz-me o frescor de tuas flores eternais,
Conchega-te a mim com teu perfume exalante,
Embala-me em teus seios não mais tristonhos.
Chega a mim sorrateiramente,
Oferta-me o odor dos teus aromas
Que são as misturas das rosas,
Trazendo paz aos eternos namorados,
Em sensação de devaneios da mente.
Vem mansinha com tochas inflamantes
Em forma de bálsamo envolvente,
E fica por um tempo ao meu encalço
Lançando faíscas ébrias do fogo da paixão,
Pois és a estação luminosa dos amantes.
Meu esconderijo
Naquele velho sótão, que eu chamava
De fortaleza velha, num ir e vir constante,
Passei seis anos de minha primeira infância,
Minha triste primeira infância, esperando uma
Luz trazida pelos timoneiros, desejada,
Mas por eles nunca alcançada.
Foram anos a observar daquela torre,
Cujos degraus subi centenas de vezes,
As ventanias que traziam as chuvas,
A tranquilidade geral que depois aplainava
O dia que se iniciava, assim como
A tarde que se findava.
Eu nada entendia diante de tantas
Mudanças ora luzentes,
Ora negras, mas visíveis,
Ora transitórias, ora incompreensíveis
Que por mim passavam me glorificando e
Em minha imaginação mergulhando.