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O Encarceramento de Indígenas Sul-Mato-Grossenses: do Icatu à Penitenciária Estadual de Dourados
O Encarceramento de Indígenas Sul-Mato-Grossenses: do Icatu à Penitenciária Estadual de Dourados
O Encarceramento de Indígenas Sul-Mato-Grossenses: do Icatu à Penitenciária Estadual de Dourados
E-book259 páginas2 horas

O Encarceramento de Indígenas Sul-Mato-Grossenses: do Icatu à Penitenciária Estadual de Dourados

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Sobre este e-book

A presente obra versa sobre uma forma de "tratamento" ministrada pelo Estado Republicado em face dos indígenas, principalmente sul-mato-grossenses, categorizados como "indisciplinados" ou "infratores": a prisão. Foi resultado de uma pesquisa que utilizou o método etnográfico, o genealógico e o da história de vida e após a revelação de "limites de segurança" do investigador foi advogado pela readequação do método disponível bem como a ideia de que a noção de etnografia deve ser constantemente ressignificada. Já no corpo do conteúdo, após reportar sobre a "pacificação" dos autóctones do oeste paulista, discorre sobre a transferência deles para a Terra Indígena do Icatu, que menos de vinte anos depois passou a figurar em documentos como "Escola Correcional", "Colônia Penal" e "Posto Correcional". Relaciona sessenta e quatro possíveis transferências sob a categoria de "cumprimento de pena", das quais foi possível o levantamento de cinquenta nomes e alguns retratos que os escassos documentos possibilitaram que não fossem apagados da história. Assim, apresenta parte da malha punitiva do SPI, o protagonismo do Icatu bem como sua substituição pelo Reformatório Krenak e posteriormente pela Fazenda Guarani. Por fim, seguindo nessa linha temporal-punitiva, chega no período atual, na Penitenciária Estadual de Dourados (PED) - líder nacional de encarceramento de indígenas - narrando parte do contexto dos Guarani e Kaiowá presos e as violações por parte do Estado brasileiro.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento28 de set. de 2021
ISBN9786525208336
O Encarceramento de Indígenas Sul-Mato-Grossenses: do Icatu à Penitenciária Estadual de Dourados

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    O Encarceramento de Indígenas Sul-Mato-Grossenses - Ariovaldo Toledo Penteado Junior

    CAPÍTULO I – É POSSÍVEL UMA ETNOGRAFIA SOBRE O APRISIONAMENTO ESTANDO O PESQUISADOR DO LADO DE FORA DAS GRADES?

    Os homens fazem a sua própria história, mas não o fazem como querem... a tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.

    Karl Marx¹

    Na presente obra pretendemos contribuir dentro da temática pouco explorada no meio acadêmico, mas de suma importância no atual contexto histórico de retomada das terras indígenas esbulhadas e uso constante do Direito Penal: o fenômeno do encarceramento indígena e suas violações constitucionais.

    No campo metodológico surge um terreno fértil para debates acadêmicos partindo das questões: Um policial pode, nas horas vagas, pesquisar em ambientes hostis? É possível uma etnografia do aprisionamento estando o pesquisador do lado de fora das grades? Essas questões refletem algumas fronteiras postas ao método etnográfico que, dependendo do objeto de investigação e dos grupos sociais a ele vinculados, demandam ajustamentos e renegociações constantes. Longe de alimentar o mito do antropólogo- herói, aquele a quem sobram adjetivações laudatórias como altruísta, estoico e corajoso (FLEISCHER; BONETTI, 2007), desejo apenas frisar o caráter maleável inscrito no fazer antropológico e na etnografia enquanto método de prospecção de dados.

    Dependendo do objetivo de pesquisa, e do local em que o objeto se situa, o fazer antropológico pelo viés da etnografia clássica torna-se, sim, uma questão de segurança. Os imprevistos em campo são uma constante na história da Antropologia, notadamente no decorrer de etnografias realizadas em ambientes nos quais pairam uma certa tensão, a exemplo das situações vividas por Berreman (1980), Foote-White (2005) e Evans- Pritchard (1993), para citar alguns. Nesse horizonte, não é raridade dentre os desafios dos pesquisadores assaltos, ameaças, chantagens, extorsões, guerras, enamoramentos, acidentes, processos de adoecimentos, epidemias contagiosas, entre outros (FLEISCHER; BONETTI, 2007, p. 7).

    Desse modo, inicialmente fez-se necessário definir os aspectos norteadores que tratam da constante preocupação com a segurança pessoal do pesquisador somada a sua vigilância epistemológica que envolve o objeto da pesquisa.

    1.1 QUESTÃO DE SEGURANÇA E VIGILÂNCIA EPISTEMOLÓGICA.

    No ano de 2006 ingressei como servidor público federal na segurança pública (atualmente no cargo de Policial Penal Federal) e acompanhei a implantação do Sistema Penitenciário Federal (SPF)², trabalhando na custódia de alguns dos presos mais perigosos do país. Foi meu rito de passagem, que condiciona uma vida social diferente para determinados aspectos relativos à segurança pessoal e familiar. Como meu objeto de pesquisa versa, em parte, sobre o sistema penitenciário, tal realidade passou a refletir de forma clara uma limitação parcial do pesquisador: o trabalho de campo dentro de cadeias.

    O Brasil é um país onde membros de facções criminosas que dominam grande parte do sistema penitenciário praticam constantemente atos terroristas determinando a execução de pais e mães de família na frente de seus filhos exclusivamente pelo fato de venderem sua força de trabalho à segurança pública do Estado. Foi o caso da psicóloga Melissa Almeida, em 2017, quando entrava em sua casa em um condomínio da cidade de Cascavel/PR. Não percebeu que durante o dia todo foi monitorada por um grupo armado que estava logo atrás, em três carros roubados. Foi covardemente assassinada, com dois tiros de fuzil no rosto, na frente de seu filho de dez meses.

    Sobre as investigações divulgadas sobre o caso Melissa, disse um representante do Ministério Público Federal: Eles não visam as pessoas, e sim o Estado. Os agentes são representantes do poder público (COSTA, 2017). Foi o motivo de sua morte, como também as de Alex Belarmino (2016), Henry Charles Gama Filho (2017) e, infelizmente, de outros que virão pela frente.

    Fui colega de trabalho de Belarmino e Henry e professor de Melissa no seu Curso de Formação Profissional, que nesse ano de 2019 completaria dez anos na função de psicóloga do SPF. Depois disso, desenvolvi a certeza de que nunca falamos o suficiente aos alunos sobre os riscos da profissão – e tais riscos foram inicialmente uma das preocupações metodológicas da nossa pesquisa.

    Tenho plena convicção que minha permanência constante durante o período de banho de sol, perto de uma cela, oficina de trabalho, pátio de visitas ou mesmo no parlatório de atendimento de qualquer estabelecimento prisional seria motivo para colocar o pesquisador, servidores e interlocutores em sério risco à integridade física.

    Não temo meus possíveis informantes presos, mas sim o que pode acontecer com eles quando facções criminosas que dominam algumas penitenciárias brasileiras descobrirem que estavam conversando com a Polícia. O crime organizado não quer saber se um policial pode ser pesquisador nas horas vagas. Tampouco lhe interessa que tipos de contributos advirão da pesquisa. O pesquisador sempre será policial e, portando, deverá morrer pelo simples fato de, como dito acima, vender sua força de trabalho ao Estado.

    Para fazer etnografia nas prisões não se pode apostar no sigilo. Não se entra (ou não se deveria entrar) em estabelecimento prisional sem autorizações administrativas e/ou judiciais. Como disse Vargas (2011, p. 20) após o ingresso na prisão o primeiro que as pessoas querem saber é quem é você e o que está fazendo ali. Dos agentes penitenciários na entrada da prisão, aos funcionários e técnicos e, principalmente, os presos e as presas.

    Essa situação deve ser considerada pelo investigador tanto na escolha do campo de pesquisa quanto em sua vigilância epistemológica. Dados de pesquisa realizada na universidade do estado de Washington (EUA) afirmam que 19% dos guardas de prisões dos EUA sofrem com o estresse pós-traumático (resposta a evento como guerra, sequestro, abuso sexual ou acidentes). O índice do público em geral é de 3,5%, ou seja, seis vezes menor que os guardas, cujo número de funcionários acometidos equivale aos soldados americanos que regressaram do Afeganistão e Iraque, superior aos policiais (BLUME, 2018).

    O filósofo Karl Popper (2004, p. 25) entende que é praticamente, impossível conseguir a eliminação dos valores extracientíficos da atividade científica posto que não há como roubar o partidarismo de um cientista sem também roubá-lo de sua humanidade, e não podemos suprimir ou destruir seus juízos de valores sem destruí-lo como ser humano e como cientista.

    Já conforme Fonseca (2007, p. 2), inquietações éticas e políticas do exercício etnográfico em vez de serem solucionadas com a maturidade do pesquisador, tendem a crescer. Para tentar superá-las, em busca da objetividade nas ciências sociais – levando em conta as concepções de weberianas sobre essa categoria – visamos um controle das condições de produção do conhecimento científico que pretende reconstruir alguns sentidos que marcam a vida social.

    Dessa feita, percebemos então que o problema não é o estranhamento do outro, mas sim o estranhamento de si mesmo (GEERTZ, 2008); ou, nos moldes do ratificado por DaMatta (1978, p. 20), transformar o exótico em familiar e o familiar em exótico.

    Surge então a importância do método da pesquisa para controlar a vigilância epistemológica do pesquisador. Nessa perspectiva, Florestan Fernandes (1978, p. 30) assevera que o importante não é o que se vê, mas sim o que se observa com método,

    Partindo dos pilares segurança pessoal e vigilância epistemológica, partimos para a definição do objeto, aspectos metodológicos e demais fases da pesquisa.

    1.2 OBJETO, METODOLOGIA, CAMPO E ORGANIZAÇÃO DOS DADOS.

    Como salientado alhures, nossa pesquisa visou traçar uma linha cronológica acerca do encarceramento dos indígenas sul-mato-grossenses no período republicano, bem como apontar algumas violações aos preceitos legais.

    Para tanto, a pesquisa foi constituída por três fases: 1) definição do objeto e metodologia; 2) empiria; 3) organização dos dados produzidos. Foi precisado nos moldes do preconizado por Da Matta (1978, p. 5) que defendeu após a fase teórico/intelectual e a prática, a terceira etapa de uma pesquisa como fase pessoal ou existencial, com característica globalizadora e integradora, sintetizando biografia com teoria – fase à qual Strathern (2014) denomina de momento etnográfico.

    As limitações pessoais do pesquisador acima mencionadas fomentaram novas análises e determinaram a readequação do método disponível. O clássico Evans-Pritchard (1993) já evidenciava que não há uma forma única para trabalho de campo; seu trabalho será diferente dos outros e, um alento significativo vem de Marcus (2016) quando diz que os trabalhos teóricos mais interessantes atualmente são os que dizem respeito à prática.

    Caminhando nesse sentido, alicerçados nas concepções teóricas de Strathern (2014, p. 353) em busca do momento etnográfico visamos o pareamento entre método e expectativa de dados obtidos. Seria o que Magnani (2009, p. 133) menciona a respeito do que devemos observar, isto é, a particularidade dos objetos de estudos que impõem estratégias de aproximação com a população estudada e no trato com os interlocutores.

    O que não podemos é acovardar-nos diante dos obstáculos e limitações, abandonando o objeto da pesquisa. Assim, socorremo-nos dos ensinamentos de Fonseca (2007, p. 4) quando trouxe sobre a importância de tais questionamentos éticos da mesma maneira que medidas para reduzir as reações negativas tais como usar apenas documentos históricos, com repercussões éticas já atenuadas pelo tempo ou estudar apenas aquelas partes da população que são consideradas ‘acima de suspeita’, ou ainda, ressaltar apenas aqueles aspectos da vida de nossos interlocutores que eles mesmos aprovam., mas não visar como único interesse evitar questionamentos Pois agindo assim, estaríamos abdicando da força do método etnográfico, aceitando rótulos hegemônicos de antemão para definir o que é aceitável ou não.

    Pensando nesse sentido, como temos alguns dias de experiência no sistema penitenciário brasileiro³, levamos tal bagagem como fundamento para nossa escolha: etnografia sobre o aprisionamento realizada com o pesquisador do lado de fora das grades (no Capítulo sobre a Penitenciária Estadual de Dourados veremos que não resistimos e violamos por um instante tal premissa de não entrar nos cárceres).

    Dessa forma, seria basicamente uma questão de custo/benefício posto que conforme Fleischer e Bonetti, (2007, p. 12), na análise dos riscos da pesquisa devemos ter em mente se, de fato, fazem sentido, para o antropólogo e os seus interlocutores na pesquisa. Há ‘riscos’ antes, no e depois do campo.

    Assim, com base no raciocínio que a noção de etnografia deve ser constantemente ressignificada (FONSECA, 2007), posso discutir se realizamos uma etnografia da prisão ou etnografia na prisão, em analogia aos ensinamentos de Magnani (2009, p. 138), quando disse em relação aos estudos urbanos da ou na cidade, salientando que devem ser considerados como dois polos de uma relação que circunscrevem, determinam e possibilitam a dinâmica que se está estudando.

    Por conseguinte, no projeto inicial foram realizadas readequações. Primeiro pelo método e depois no objeto da pesquisa. Jamais esquecerei as análises em grupo dos projetos iniciais com as contribuições dos colegas de batalha e dos mestres de plantão. Percebi que humildade não era meu forte como pesquisador. Visava, a priori, estudar o fenômeno do encarceramento de indígenas em todo Brasil, comparando dados e informações dos estados. Nunca mais esquecerei sobre recortar o objeto da pesquisa.

    Para Beaud e Weber (2007), como o tema é um momento determinante e condicionante das pesquisas, devemos sempre desconfiar de temas muito amplos. Tendo- se em vista que o tema se transforma no objeto da pesquisa, este deve ser realizável e apoiado em questões prévias que sempre consideram os aspectos burocráticos e, no meu caso, também aspectos de sobrevivência em ambientes hostis.

    Em face dessa realidade, decidimos focar o olhar de pesquisador nos presos do estado do Mato Grosso do Sul (MS); e quem diria que ganharíamos um campo clássico no contexto antropológico e, sobretudo, para uma etnografia sobre o aprisionamento de indígenas: uma aldeia e uma prisão.

    Estávamos conformados em sustentar uma etnografia do lado de fora das grades, longe de aldeias, feita nos gabinetes quase nos moldes evolucionistas quando em dado momento, História e Antropologia, ou melhor, os retoques de imprevisibilidade (FOOTE-WHITE, 2005) nos moldes do ocorrido com antropólogos conceituados como Evans-Pritchard (1993), presentearam-nos com o caso do Icatu que será o ponto de saída da nossa linha cronológica-punitiva que chega até os dias atuais na Penitenciária de Dourados (PED).

    O Icatu sempre esteve muito perto do pesquisador, mas sua rica história é hibernada à população regional. Minha mãe nasceu em Braúna, cidade do interior de São Paulo onde está localizada a aldeia. Meu avô Francisco Cortes Moreno, aos treze anos de idade, deixou com seus pais - que já temiam uma grande guerra na Europa - a vila de Casabermeja, província de Málaga, Espanha.

    Além do medo dos conflitos bélicos, no final do século XIX a Espanha possuía uma população muito densa para um país agrário que assistia o pequeno camponês concorrer com os latifundiários. Como se não bastasse, as videiras andaluzas que eram grande fonte de trabalho na região de meu avô, sofreram a partir de 1878 com o ataque de um inseto oriundo da França de nome filoxera, destruindo cerca de 95% da superfície plantada (CÁNOVAS, s/d). A pequena Braúna, no interior de São Paulo, foi seu destino final.

    Curiosamente o Icatu como presídio é uma novidade para os velhos moradores da pequena cidade. Na oitiva de sete filhos do senhor Francisco, nenhum tinha ouvido essa história. Já para os moradores da aldeia, é um tabu, exigindo técnicas de aproximação por parte dos investigadores que adiante serão mencionadas.

    Logramos êxito em conhecer parte do lado eclipsado do Icatu quando, buscando a história da punição de indígenas no início do século XX alcançamos parte da produção de autores renomados como Melatti (1976), Souza Lima (1995), Pinheiro (1992; 1999), Correa (2000), assim como o teor do documento conhecido como Relatório Figueiredo⁴ e depois o Relatório da Comissão da Verdade⁵, revelando que o estado recorreu, ano após ano, à privação de liberdade de índios que resistiram às ordens do chefe do posto, à invasão e exploração das riquezas de suas terras, bem como aos projetos de integração nacional e desenvolvimento (BRASIL, 2014).

    Pesquisando o acervo do então Serviço de Proteção aos Índios (SPI) obtivemos documentos com informações sobre um estabelecimento de abrangência nacional destinado ao acolhimento dos indígenas removidos e tidos por indisciplinados ou infratores. Foi o caso do posto indígena do Icatu, e como se não bastasse, documentos retratam transferências (ou deportações) também de familiares durante mais de trinta anos.

    Seguindo nessa cronologia-punitiva, a pesquisa definiu como objeto o fenômeno do encarceramento de alguns indígenas do então sul do estado do Mato Grosso no período Republicano (séculos XX e XXI) e, para tanto, pretendeu trazer parte da história da malha punitiva pesquisando o Icatu, suas ligações com

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