Crónica de África: Manuel S. Fonseca
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Sobre este e-book
Livro inspirado pela vida, entre uma lágrima e muito riso, com um capítulo final sobre a independência, que conta o primeiro réveillon revolucionário: «A carne talvez fosse fraca, o sal seria um veneno, mas nunca o molho pareceu tão bom.»
«Todas as infâncias felizes se fazem de eternidade. À do Manel, acompanha-a um prato de búzios.»
Pedro Norton
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Crónica de África - Manuel S. Fonseca
Título: Crónica de África
Autor: Manuel S. Fonseca
© Autor e Guerra e Paz, Editores, Lda., 2023
Reservados todos os direitos
A presente edição não segue a grafia do novo acordo ortográfico.
Acompanhamento editorial: Maria José Batista
Revisão: Ana Cristina Câmara
Design: Ilídio J.B. Vasco
Isbn: 978-989-702-932-5
Guerra e Paz, Editores, Lda
R. Conde de Redondo, 8–5.º Esq.
1150-105 Lisboa
Tel.: 213 144 488 / Fax: 213 144 489
E-mail: guerraepaz@guerraepaz.pt
www.guerraepaz.pt
À Alice e ao Artur, mãe e pai, cuja infinita bondade e gárrulo amor são a minha única garantia de absolvição.
À Elvira, minha irmã, que prescindiu de tanto a meu favor.
À Antónia, minha mulher, e à Rita, minha filha: têm orelhas tão bonitas que só me apetece estar sempre a contar-lhes ao ouvido estas histórias.
Índice
Prefácio
De eternidade se fazem todas as infâncias felizes
Preliminares, que o que se segue é uma história de amor
INFÂNCIA
O mar
O ouvido fino do meu pai
Missão de São Paulo
4 de Fevereiro
Há erros de que nos orgulhamos para o resto da vida
Pum, pum, estás morto
Uns ovinhos de perdiz
Eu era para ser Papa
Os mais jovens pára-quedistas do mundo
O fedelho e a preguiça
O que os dedos não voltam a agarrar
Um caso perdido
ADOLESCÊNCIA
A lábil curva
O chimpanzé da minha rua
A bassula e a dignidade
Uma esquina com alma
Um atraso de vida cheio de futuro
Ulisses tinha um Austin A40 Devon
Richard Dreyfuss morou na minha rua
Uma mulatíssima Debra Winger
A rapariga loura, de olhos tão mansos e líricos
O fanático e o primeiro botão
Um suave derrame sentimental
Louvor do tráfico
A princesa nua
O chumbo e o livro
Aretha Franklin
Deus já foi um Eusébio cósmico
A jukebox
Isto não é um prato de búzios
O primo negro
Se hoje fosse sábado
E um dia comem-nos
A praia deserta
Não somos doidos, somos judeus
Quem pode ainda armar a tenda?
INDEPENDÊNCIA
1975, o ano de todos os delírios
A agilidade vagabunda de um Dois Cavalos
Estrela tracejante no céu de África
O paraíso
Um fim-de-semana com Godard
Dar a volta por cima
Ele chega a morder-lhe, sim
Um avião para Luanda
Um rugido de fim de império
Viagens à beira-mar
Joana Maluca
O melhor fim de ano é independente
O pequeno livro vermelho
De canhão apontado
Entra o urso
Adeus
CODA
Um centenário
Declaração de amor ao Liceu Salvador Correia
Prefácio
De eternidade se fazem todas as infâncias felizes
Pedro Norton
Todos temos, todos tivemos, muitos perdemos, amigos de infância. Amigos que não escolhemos fazer, mas que decidimos manter. Amigos que sabemos ler por dentro e por fora, de quem conhecemos as manias, as misérias, as grandezas, as alegrias e as tristezas. Amigos que nos falam em silêncio. Amigos que, como algures disse Herberto, são «tristes com cinco dedos de cada lado, […] que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos, com os livros atrás a arder para toda a eternidade».
Mas, que me desculpe o poeta, o que é verdadeiramente raro é ter amigos que nos convidam para uma infância que não vivemos. Que nos abrem as portas a memórias muito suas e que, com uma generosidade que é só deles, querem que as façamos nossas. O Manel é um amigo desses. Conhecemo-nos há muitos anos, julgo que ele concordará se vos disser que nos liga uma «rija amizade», mas sou capaz de jurar que não cheguei a vê-lo com os calções de gaiato em Luanda, que é a sua forma muito particular de ser eterno.
E, no entanto. E, no entanto, conheço-lhe boa parte da infância. Não que me tenha oferecido o bilhete de ida logo à primeira. E mal sabe ele que o bilhete que o levou de regresso a Luanda tinha o seu quê de meu. Foi o meu pai que ouvi chamar, com indisfarçável orgulho, em pleno zoo, em plena aldeia dos macacos, aos altifalantes dessa fugaz memória de revolução, para que regressasse sem mais demoras aos labores da ponte aérea que ajudava a organizar. Mas desconverso porque não é sobre esse outro herói que me pedem para escrever.
Dizia eu que o Manel me foi abrindo aos poucos a eternidade da sua infância. Primeiro, foram umas conversas fugazes, conversas pingadas de copos em Cannes, em Nova Orleães ou no não menos cosmopolita refeitório da Outurela. E muito haveria para contar sobre essas noites, mas não seriam conversas para os meninos que sois. Desconverso outra vez. Dizia eu que não me escancarou de imediato as portas da «metafísica da [sua] infância». Deixava cair uma coisa aqui, outra ali. Talvez por timidez, talvez por natural desconfiança, a verdade é que conheci os restos do beirão bem antes de conhecer o puto africano.
Foi preciso que os descaminhos da profissão nos afastassem para que percebêssemos que o caminho que fizéramos tinha já sido «o início de uma bela amizade». A partir daí, foi um ver se te avias. Montámos projectos, escrevemos blogues, editámos livros, organizámos tertúlias, continuámos a beber copos noctívagos como se não houvesse amanhã e como se os corpinhos pudessem aguentá-los aos 50, com a bravura e a imensa decência com que os tinham toureado aos 30.
Foi então, na imensa nebulosa que foram esses tempos de delirantes e semiclandestinas comunas criativas, em variáveis geometrias de parceiros de aventura, que o Manel me (nos) escancarou, em textos de pantufas, mas também em jantares de exaltada gritaria (sim, dentro do gentil Fonseca continua a palpitar, semiadormecido, um revolucionário temível), as portas da sua tropical infância. Fomos ao Sambizanga, à Vila Alice e ao Salvador Correia. Apresentou-nos a professora Mimi e, quase posso garantir, conheci também todos e cada um dos garotos da esquina da Rua Alberto Correia. Ao Ngola, fui com toda a certeza e ainda há poucos dias provei, num restaurante de Lisboa, no delírio de mais um projecto que não viria a sê-lo, uma cerveja gelada pelos longos braços da noite de Grenoble.
É para essa eternidade crioula que agora nos convoca a todos o nosso bom Fonseca. Adocicado pelo lento andar da vida, deixou-se dos últimos pudores e abriu definitivamente as pernas de uma história de amor que não conseguia manter só sua.
Todas as infâncias felizes se fazem de eternidade. À do Manel, acompanha-a um prato de búzios.
Crónica de África
Preliminares, que o que se segue é uma história de amor
Cheguei a Luanda a 29 de Junho de 1959. Tinha cinco anos, o meu pai era um funcionário do Porto de Luanda com um salário pele e osso, que não dava para mais do que uma casa com água e luz no maior musseque de Luanda, o Sambizanga. Eis o que me entrou pelos olhos então brilhantes, pelas narinas que se abriam em boca-de-sino: o espectáculo ardente da terra vermelha e arbustos selvagens das barrocas de Luanda, da colina do Miramar às da Boavista, sobre a baía, o porto e os caminhos-de-ferro; o aroma humaníssimo da mandioca a ser assada, o cheiro acre e comovente da pretíssima gente que pela primeira vez via.
Nunca mais deixei de falar e escrever sobre esse amor à primeira vista. Obceca-me, assalta-me, instiga-me. Não resisti, por isso, a reunir as impressões de infância, adolescência e independência, os capítulos que entendi dar a essa aventura de encanto, conflito, paixão, de tanta amarga frustração, e de tanta inocência também: a minha crónica de África.
INFÂNCIA
«Toda a minha primeira infância tem gosto de caju e de pitanga […] ainda hoje, quando provo uma pitanga ou um caju contemporâneo, sou raptado por um desses movimentos proustianos, por um desses processos regressivos e fatais.»
Nelson Rodrigues, in A Menina Sem Estrela
O mar
A primeira vez que eu vi mesmo o mar foi já no meio do Oceano Atlântico. De Angola, o meu pai chamava os meus cinco anos, e lá iam eles agarrados à saia da minha mãe e a toque de caixa da minha irmã.
Nunca tinha saído da minha aldeia, Vale de Madeira, a não ser às aldeias próximas. De mula, como num western. O comboio, pouca terra, pouca terra, numa tarde de cerejas vermelhíssimas, da Beira fria, farta e feia trouxera-nos a Lisboa. Viagem longa e surpresas irrequietas. Levantava-me, sentava-me, espreitava à janela – que, nesse tempo, ainda se podiam abrir. De repente, a velocidade reduziu-se e o comboio entrou, majestoso, numa ponte, um rio cá em baixo, no que aos meus olhos pareciam mil metros de altura. Mas a impressão que mais perdurou colou-se-me ao céu-da-boca: o sabor das cerejas que comemos, a minha mãe, a minha irmã e eu, no pequeno compartimento que ocupávamos. Ainda hoje os comboios me sabem a cerejas.
Em Lisboa, Cais da Rocha, entrámos no transatlântico Vera Cruz; descemos logo ao camarote e, quando voltámos a subir – no dia seguinte? –, cercava-nos um vasto tapete ondulado, de um azul inútil e livre. Flutuávamos num oscilante lençol azul e verde com outro de seda azul-celeste a fazer de tecto: Houdini tinha escondido a terra. Ali estava, só eu, numa cadeira de balouço feita de mar e céu.
Exultantes, os pulmões não me cabiam no peito: em riso e lágrimas saíam-me pelos olhos. Dizem que é a plenitude. Gostava de me lembrar melhor, se havia vento, quase nenhumas nuvens e se eram sereias ou se sonhava já com Angola.
O ouvido fino do meu pai
Sean Connery pai ou Harrison Ford filho guiam com estilo a moto e sidecar em Indiana Jones. Deviam ver-te, pai, a rasgares, na tua BSA, ao sol e à brisa dessa Angola que era e não era nossa. Levavas-me ao Liceu, ao Morro da