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Os Mistérios do Asfondelo
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E-book787 páginas6 horas

Os Mistérios do Asfondelo

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Sobre este e-book

Enquanto nos romances realistas as esposas infelizes (ou “aborrecidinhas”, como no caso da Luísa, de "O Primo Basílio") caem em tentação e acabam por morrer física ou socialmente depois do adultério, único desfecho possível na lógica machista que sustenta a escrita, tal não é o caso em "Os Mistérios do Asfondelo". Pelo contrário, a heroína que, no início, ostenta todas as qualidades morais de uma esposa que “respeita os laços que a ligam” ao marido, torna-se adúltera por vontade do próprio, além de incentivada a tal pelo pai, o primeiro, por pensar no “bem da família”, e o segundo, no futuro da filha, como deixam transparecer as suas “calculadas e pérfidas lamentações”.

O leitor contemporâneo poderá reconhecer em "Os Mistérios do Asfondelo" todos os temas do género e as técnicas do romance-folhetim: amores contrariados porque os amantes pertencem a duas famílias inimigas, os Coculins e os Mascarenhas, a condizer com as novelas sentimentais; sósias perfeitas – o que irá permitir uma maternidade de substituição entre as duas; peripécias mirabolantes; coincidências fatais; dissimulação (Ema não é uma enjeitada mas uma fidalga cuja identidade é enfim revelada no decorrer do enredo); sonhos premonitórios; amores à primeira vista; personagens caricaturais e grotescos, inclusive um padre devasso, a lembrar nas falas e atitudes quer a literatura satírica e libertina quer o romantismo gótico inglês.

"Os Mistérios do Asfondelo", tal como os outros romances de Arsénio de Chatenay, foi amplamente lido na sua época, mas logo votado a uma rasura crítica e à situação de “esgoto” pela imprensa contemporânea. Algum tempo depois da sua publicação, a janela que se abrira para a literatura licenciosa em Portugal, com a abolição do Tribunal do Santo Ofício, em 1821, fechar-se-ia durante a longa noite do Estado Novo. É por isso que nos parece urgente rever e reler a história da literatura erótica portuguesa, ou simplesmente escrevê-la, para tirar do olvido obras e autores que, como Chatenay, foram "queer avant la lettre".

IdiomaPortuguês
Data de lançamento16 de nov. de 2020
ISBN9781005084462
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    Os Mistérios do Asfondelo - Arsénio de Chatenay

    Os Mistérios

    do

    Asfondelo

    Leitura para homens

    Arsénio de Chatenay.

    Nova edição integral, revista e anotada.

    Introdução de Fernando Curopos.

    INDEX ebooks

    2020

    Ficha técnica

    Título: Os Mistérios do Asfondelo: Leitura para Homens.

    Autor: Arsénio de Chatenay (António da Cunha Lemos de Azevedo Castelo Branco).

    Autor da Introdução: Fernando Curopos.

    Original: Os Mysterios do Asphondelo (Leitura para Homens), por Arsénio de Chatenay; Porto, Typ. de A. F. Vasconcellos; 29, Rua do Moinho de Vento, 29; datado de 1886.

    Capa: adaptação da ilustração de O Consorcio das Flores, Epistola de La Croix a seu irmão, com tradução de Manuel Maria Barbosa du Bocage (1801).

    Transcrição, revisão e anotações: Fernando Curopos, João Máximo, Luís Chainho e Patrícia Relvas.

    Data de publicação: 16 de novembro de 2020

    Edição 1.00 de 16 de novembro de 2020

    Copyright © Fernando Curopos, João Máximo e Luís Chainho, 2020

    Todos os direitos reservados.

    Esta publicação não poderá ser reproduzida nem transmitida, parcial ou totalmente, de nenhuma forma e por nenhuns meios, eletrónicos ou mecânicos, incluindo fotocópia, digitalização, gravação ou qualquer outro suporte de informação ou sistema de reprodução, sem o consentimento escrito prévio dos editores, exceto no caso de citações breves para inclusão em artigos críticos ou estudos.

    INDEX ebooks

    www.indexebooks.com

    indexebooks.com@gmail.com

    www.facebook.com/indexebooks

    Lisboa, Portugal

    ISBN: 978-1005084462 (ebook)

    ISBN: (papel)

    INTRODUÇÃO

    Embora tenha havido, em Portugal, uma produção de poesia obscena ou francamente pornográfica durante todo o período medieval, um Eros marginal de que o teatro vicentino será a vertente mais visível e duradoura, por não ter sido apagada pelos rumos da História, a Inquisição, instituída em Portugal em 1536, estabelece a censura das publicações impressas, restringindo de maneira duradoura a circulação das mesmas. Desde então, e até à abolição do Tribunal do Santo Ofício (1821), raros foram os autores a ousarem enveredar pelos meandros de Eros. Quando tocam em tão pecaminoso e melindroso assunto, servem-se do álibi mitológico, como Camões no episódio da Ilha dos Amores. Quanto aos outros, como Caetano José da Silva Souto-Maior (1694-1739), autor do célebre poema épico-obsceno A Martinhada, tiveram de contentar-se com edições clandestinas, essencialmente manuscritas. Esse longo poema anticlerical, escrito no primeiro quartel de Setecentos, só foi dado à estampa em 1814, clandestinamente. Ao que tudo indica, foi a primeira obra pornográfica portuguesa publicada no país, no século XIX.¹

    Verifica-se assim que foi preciso esperar até finais de Setecentos para que surgisse uma verdadeira produção de literatura licenciosa em Portugal. Manuel Maria Barbosa du Bocage continua a ser o autor mais conhecido e mais lido do género, mas não era o único. Podemos citar, à guisa de exemplo, os poetas António Lobo de Carvalho ou Nicolau Tolentino.² No entanto, esses autores estavam longe do requinte libertino francês, já patente em Bocage, no seu romance epistolar em versos, Cartas de Olinda e Alzira, que circulava clandestinamente, em cópias manuscritas, no tempo do autor, e só foi publicado em 1854.³ Antes deste livro, a poesia era muito mais obscena ou satírica do que erótica, como no caso do luso-brasileiro Gregório de Matos Guerra (1636-1696) cujos versos também circularam em Portugal.

    Se os romances libertinos franceses, conquanto proibidos pela Real Mesa Censória, circulavam à socapa em Portugal nos finais do século XVIII,⁴ a difusão dos mesmos foi maior logo a seguir à extinção da Inquisição, no dia 31 de março de 1821. Contudo, é de notar que, tanto antes quanto depois, eram dados à estampa versos fesceninos de autores portugueses e romances libertinos em Londres e Paris.

    Caso invulgar será a edição em língua portuguesa do romance libertino de Claude Godard d’Aucourt, Mémoires turcs avec l’histoire galante de leur séjour en France (1743), publicada em 1806, em Lisboa, com o título de Templo de Jatab. Collecção de memorias turcas, e no Rio de Janeiro em 1811, na Impressão Régia, com o título de História de dois amantes, ou o templo de Jatab (1811).⁵ Trata-se de um caso ímpar, cuja publicação, num contexto de luta contra os invasores franceses, se deve ao conteúdo do texto. Com efeito, apesar de galante e anticlerical, não foi censurado porque era uma sátira aos costumes desregrados dos franceses. Mas estes últimos nem sempre são repelidos nem denegridos, como acontece no poema obsceno O Saque dos Conos ou a Relação do que Aconteceu às Moças do Porto pela Entrada do Exercito Francez, em Março de 1808, publicado também no Rio de Janeiro (1836), depois de ter circulado em Portugal em cópias manuscritas e numa edição deveras impressa em Argel.⁶ Nessa edição, junto ao poema vinha uma tradução de um texto pornográfico francês,⁷ Os Amores, Galanteios e Passatempos das Actrizes ou Confissões Divertidas dessas Senhoras Recopiladas da Grande Opera de Paris e agora Traduzida em Portuguez por ***. Por conseguinte, na primeira metade de Oitocentos começam a ser traduzidas obras notáveis da literatura licenciosa francesa, tal como o maior sucesso do género, L’histoire de Dom Bougre, portier des chartreux (Gervaise de Latouche, 1741), romance libertino anticlerical adaptado ao contexto luso-brasileiro (a ação passa-se no Rio de Janeiro) e publicado com o título de Saturnino ou o Porteiro dos Frades Bentos (1842).⁸

    Na segunda metade de Oitocentos, até por bandas da longínqua Elvas já circulavam traduções dos grandes clássicos da literatura licenciosa francesa, tal como encenado por José Simão Dias (1844-1899) na sua sátira A Hóstia de Ouro (1869):

    "[...] então se o amigo gosta

    D’essa especiaria, vou mostrar-lhe

    Coisa que a tudo excede n’esse género."

    E aqui fechando o livro, a mão estende

    E extrai de dentro d’um pequeno armário

    Vários tomos dourados, onde avultam

    Da Theresa philosopha o romance

    A cortina corrida e o Saturnino,

    Faublas, Bocage e os lúbricos eróticos

    De vários mil autores licenciosos

    Enriquecidos de cinzel artístico!

    Logo lhe vai mostrando

    No texto acetinado estampas várias

    Que os desejos acendem tumultuosos.

    O narrador junta ao Saturnino outras obras-primas do género: Vida e Aventuras do Cavalheiro de Faublas¹⁰ (Les amours du Chevalier de Faublas, de Louvet de Couvray, 1787-1790), A Cortina Corrida, ou a Educação da Laura (Le rideau levé ou l’éducation de Laure, do conde de Mirabeau, 1786), e o celebérrimo Teresa Filósofa ou Memórias para Esclarecer a Famosa História do Padre Dirrag com Mademoiselle Eradice (Thérèse philosophe, ou mémoires pour servir à l’histoire du Père Dirrag et de Mademoiselle Éradice, de Jean-Baptiste Boyer d’Argent, 1748). Apesar de não nos ser possível identificar quais eram esses vários mil autores licenciosos, os livros com estampas várias / que os desejos acendem tumultuosos eram os que apareciam nos catálogos por vezes apensos às obras do género, livros enriquecidos com ilustrações:

    Academia das Damas ou o Meursius Français: [...] A tradução portuguesa está esmeradíssima e tem a fazê-la sobressair magníficas litografias descrevendo quatro das mais frisantes situações da obra.

    ...

    Querubim, o Filho da... Prostituição¹¹ – Um belo volume, com 12 magníficas estampas.

    ...

    A Cortina Corrida, ou a Educação da Laura, pelo conde de Mirabeau, edição revista pelo original de 1786, adornada com 6 estampas livres.

    ...

    Margarida, a Palmilhadeira¹² – Um volume com 8 estampas [...].

    ...

    Saturnino ou o Porteiro dos Frades Bentos. Um volume com 6 estampas. [...] Uma obra clássica no género. Esgotadas todas as edições, fez-se uma outra, a fim de não ficar no esquecimento uma das melhores na especialidade.

    ...

    Teresa Filósofa ou Memórias para Esclarecer a Famosa História do Padre Dirrag com Mademoiselle Eradice. O escândalo que estes amores produziram levantaram grande celeuma, não só na França como em toda a Europa, e daí o grande êxito que esta obra tem tido, o que tem feito com que esteja traduzida em todas as línguas, tendo sido feitas em português muitas edições [...].¹³

    O sucesso das traduções de Thérèse philosophe e de Histoire de Dom Bougre, portier des Chartreux, reeditadas inúmeras vezes até o início do século XX e amplamente divulgadas, revela a apetência do público burguês por uma literatura erótica com toques anticlericais, de que encontramos ecos em Os Mysterios do Asphondelo, de Arsénio de Chatenay, como veremos.

    A vertente libertina francesa inspirou visivelmente o autor de Os Serões do Convento, o maior sucesso da literatura licenciosa portuguesa do século XIX; publicado em 1862, é sucessivamente reeditado até ao início do século XX.¹⁴ Impresso em Portugal, e indicando iniciais falsas na página de rosto – M. L. – para ludibriar o leitor, supomos que também foi editado no Brasil, por José Feliciano de Castilho, advogado português radicado no Rio de Janeiro, irmão do próprio autor, o ultrarromântico António Feliciano Castilho (1800-1875). Tendo em conta a popularidade do poeta na época, não é de admirar que as histórias das suas monjas devoradas por um amor nada místico, e nem sempre heterossexual, tenham sido dadas à estampa no maior sigilo. É, sem sombra de dúvida, a partir da publicação desta obra que surge um frutífero e lucrativo comércio de obras licenciosas em Portugal que se destinavam, também, a ser vendidas no Brasil.

    Além de Castilho, um dos primeiros autores licenciosos portugueses a ser vendido além-mar na segunda metade de Oitocentos foi o estimado e apreciado Arsénio de Chatenay.¹⁵ Enquanto a maior parte dos escritores e tradutores de literatura licenciosa permaneciam no segredo – o mesmo acontecia com os editores – a verdadeira identidade de Chatenay,¹⁶ autor literalmente obcecado pelo chat,¹⁷ já era conhecida em Portugal pelo menos desde 1880. Quanto aos seus livros, alguns com estampas eróticas e lesboeróticas, foram impressos no Porto, por editores conceituados (Typographia A. F. Vasconcellos; Typographia Nacional; Typographia Alliança; Campos e Godinho Editores) e anunciados nos jornais coevos (cf. imagem n.° 1) na categoria de Leitura para homens ou Romances para homens. Foi com Chatenay que a literatura erótica (pornográfica, para os seus contemporâneos) portuguesa saiu da clandestinidade para a luz plena.

    Imagem n.º 1 - Publicidade a Os Mistérios do Asfondelo.¹⁸

    Quanto às apreciações sobre a qualidade da sua obra: divergiam por completo. Nas escassas referências encontradas, o autor ora era censurado ora louvado, sinal de que os seus romances, embora eróticos, davam pouco espaço à polémica e muito menos à condenação por ofensa à moral e aos bons costumes. Se atendermos à celeuma provocada pela publicação de O Primo Basílio, de Eça de Queirós, não deixa de ser estranho que um romance, esse sim, realista, fosse taxado de pornográfico,¹⁹ ao passo que os de Chatenay, considerados ultra-realistas, passavam quase despercebidos à crítica, mas não ao público que os leu anos a fio:

    O Sr. António da Cunha, sob o pseudónimo de Arsénio de Chatenay, tem publicado romances realistas (mesmo ultra-realistas) no estilo de Zola. […]

    Apesar do seu realismo, o Sr. António da Cunha é um cavalheiro respeitável, e adornado de todas as qualidades que distinguem um verdadeiro fidalgo português. Custa por isso acreditar que ele escreva e publique livros que suas inocentes e interessantíssimas filhas não podem ler!²⁰

    Fechamos agora, depois de lido, página a página, um formoso livro […]. É seu autor o Sr. Arsénio de Chatenay, pseudónimo atrás do qual se esconde, modestamente, como as violetas da encosta, o verdadeiro nome dum amigo nosso. […] o nosso amigo é bacharel em direito, e nesta qualidade tem por várias vezes servido cargos importantes, a contento do bom senso, da honestidade, da inteligência e do seu independente carácter. O Sr. Arsénio de Chatenay (respeitamos-lhe o incógnito) deu-nos no romance A Vendetta mais uma prova do quanto vale a sua inteligência aplicada ao instrutivo lavor de aligeirar as suas horas de ócio. […] Seja dito ao correr da pena, que o ilustrado autor, rico de bens e de fortuna, não escreve para ganhar dinheiro.²¹

    Chatenay não era, portanto, um ilustre desconhecido, e fica claro que a publicidade a anunciar os seus romances para homens nos jornais mais populares da época (Diário de Notícias, Diário Illustrado, Commércio do Porto) espalharam o seu nome e deram a conhecer a sua obra. Conquanto o ilustrado autor, rico de bens e de fortuna, não escreve[sse] para ganhar dinheiro, a sua ousadia foi rentável, já que os seus romances deram centenas de libras ao livreiro que os especulou²² e souberam suprir aos devaneios eróticos de muitos jovens portugueses – os que sabiam ler, i.e., os filhos da burguesia e da nobreza – e homens feitos, quando não de donzelas atrevidas:

    Os meninos portugueses [a]os dezoito anos estão cobertos de barba e de eczemas suspeitos, têm romances de Chatenay entre os compêndios.²³

    De certo que aquela jovem, que queria parecer ao pai […] uma virgem pudibunda, […] era uma astuciosa, talvez perdida pelas más leituras […]. Era possível que saísse do colégio, onde tivesse, em companhia de amigas gulosas, saboreado toda a longa literatura galante que vai do cavaleiro de Faublas e dos contos de Bocaccio até à Thereza philosopha ou Serões do convento.

    Talvez mesmo soubesse de cor os romances de Chatenay […].²⁴

    Dos dez romances que lhe conhecemos, oito dos quais tidos como Leitura para homens, três foram reeditados em vida do autor, tendo o seu Sensualidade e Amor, com ilustrações, atingido três edições. Todos os seus romances circularam no Brasil pelo menos até 1906 (cf. imagem n.° 2) e não deixa de ser curioso que o seu La Vendetta ou o Saldo de Contas (1880)²⁵ tenha sido publicado em folhetim no jornal A República, do Rio Grande do Norte, em 1897. Sendo que o autor faleceu por volta de 1895,²⁶ supomos que alguns dos seus romances tenham sido pirateados além-mar.

    Imagem n.º 2 – Gazeta da Tarde (Rio de Janeiro), 5 de março de 1906, p. 5.²⁷

    Apesar de não constar de nenhum manual de História da literatura portuguesa e de ter sido literalmente apagado da memória coletiva, Arsénio de Chatenay produziu uma obra extremamente singular no panorama da literatura europeia do género. Com efeito, o seu imaginário erótico nada tem de realista, nem naturalista ou decadentista, e os toques libertinos patentes na obra também fogem do modelo francês inicial, como veremos. Às correntes literárias coevas e à tradição libertina, Chatenay prefere a mistura adúltera de tudo (Tristan Corbière) e a heterodoxia sexual, prefigurando assim uma certa sensibilidade queer.

    De facto, todos os seus romances eróticos apresentam cenas de sexo e afeto entre mulheres, o que era de esperar, já que as mesmas só servem para apimentar obras cujo público-alvo é o burguês heterossexual. Condenadas pelo heteropatriarcado, as lésbicas constituem, no entanto, uma fonte inesgotável para os devaneios eróticos masculinos, inclusive os do próprio autor. Daí que, nos contos e romances licenciosos da época²⁸ (e de hoje em dia, na pornografia mainstream, tanto escrita quanto visual) as cenas de sexo entre mulheres aconteçam quase sempre sob o olhar de um personagem masculino,²⁹ cenas de voyeurismo em que os personagens-voyeurs acabam por penetrar na arena sexual previamente observada,³⁰ dispositivo tradicional dos relatos pornográficos e metáfora do devaneio erótico provocado pelo ato de leitura. Tal tópos acaba por encenar um imaginário viril para o leitor-voyeur, como evidenciado por Jean-Marie Goulemont.³¹

    No entanto, Chatenay que, diga-se de passagem, satura os seus romances de relacionamentos lésbicos, vai muito mais além do tópos, subvertendo deste modo uma das convenções do género. Como poderá conferir o leitor, as relações heterossexuais pré-nupciais, conjugais e extraconjugais, também deixam espaço e dão azo a relações eróticas e afetivas entre mulheres, sendo que as cenas observadas nem sempre acabam como seria de esperar. Na pornografia heteronormativa, se o voyeur for uma mulher, a cena de sexo heterossexual observada tem uma função iniciática ou acaba por se tornar um incentivo para participar dela; de voyeur, a observadora passa a ser outro brinquedo sexual nas mãos de um irresistível e insaciável garanhão.

    Porém, com Chatenay, nem sempre a(s) observadora(s) entra(m) na arena sexual previamente observada. O autor encara a sexualidade (feminina) como polimorfa e as cenas de sexo (heterossexual ou lésbico) observadas podem desembocar em relacionamentos lésbicos sem que as parceiras sintam falta do elemento fálico (verdadeiro ou protético, o popular consolador), como seria de esperar num romance erótico publicado em 1886:

    – Oh! Afonso! Afonso! amo-te… amo-te!…

    – Como és linda, Ema, continuava ele, afagando-lhe depois os recatos tímidos, velados pelas sombras, deixa, deixa, feiticeira Ema, que eu me aposse de tantas belezas…

    – Ai! que tratante! segredava Isabel à rubra Olímpia, excitada pela voluptuosa cena.

    – E ela, Isabel!… Olha como se deixa vencer!…

    Assim lhe dizia, enlaçando-a pela cintura, ao passo que lhe beijava os lábios.

    – Ai! Olímpia! como aquela cena me escalda!…

    – E eu, filha, como me sinto… Olha, Isabel, vamos delirar também…

    – Sim, vamos, mas não sei como, Olímpia…

    Retiraram-se, pé ante pé, indo ocultar-se entre um grupo de roseiras… E foi lá, ali, que todas as belezas de Isabel, tão encarecidas pela Guilhermina a Ema, foram objeto do mais fervoroso culto, dos beijos mais sensuais e das mais íntimas e vivas carícias que a lascívia da dementada Olímpia pôde desencantar…

    Aliás, Chatenay antecipa um certo discurso desculpabilizador sobre as parafilias no tempo exato em que os termos voyeurismo (1849) e exibicionismo (1877) estão a ser cunhados pelos primeiros psiquiatras que se interessaram pelas perversões sexuais,³² termos estes que foram amplamente divulgados por Richard Von Krafft-Ebing (1840-1902) no seu Psychopathia Sexualis (1886), publicado no mesmo ano que Os Mysterios do Asphondelo. Ora se exibicionismo e voyeurismo designam comportamentos doentios para os médicos coevos, aberrações do sentido genésico, estas práticas são meras variantes de prazeres eróticos para Chatenay, outros tantos meios para provocar sensações inefáveis:

    – Mas porque um tal empenho da tua parte, Violante? Pois não te é mais agradável ser atora do que espectadora? Não te ferem assim mais intimamente as sensações do que a sua repercussão?…

    – Os mistérios da sensibilidade revelam-se debaixo de diferentes formas e aspetos, Ema, Se tu, pelas nossas narrações, és presa de curiosas emoções e sensações, não podes deixar de conceber que um tal fenómeno, pela visão, atingiria mais extraordinárias proporções…

    – Sim, Violante, muito bem o compreendo, mas…

    – Lá vou, Ema: eu, como atora, sinto uma certa ordem de sensações inefáveis, mas não excluem elas que anele variá-las, presenciando o valor das que vos deliciarem, – é um gozo duplo, de novos matizes, atuando no órgão da visão, da audição e no sistema nervoso; é a exploração do ignoto, e que, por isso mesmo, excita e inebria…

    – Seja assim, Violante, mas sinto não poder comprazer contigo nesta parte…

    – Se ao menos te prestasses a presenciar… Superexcita tanto, minha cara Ema…

    Enquanto nas convenções do género os amores sáficos são uma etapa no caminho para a verdadeira sexualidade, associada aos binarismos homem/mulher, ativo/passivo, masculino/feminino, que fundamentam a heteronormatividade e o patriarcado, no universo literário de Chatenay o lesbianismo não deixa de ser outra modalidade do prazer erótico feminino e um elemento de estabilidade emocional da mulher, mesmo quando casada, como demonstrado no último capítulo do romance. Logo a seguir ao casamento de Ema com Afonso e de Olímpia com D. Vasco, é com uma verdadeira orgia no feminino que fecha o romance, como se o casamento só servisse de álibi às protagonistas para constituírem uma verdadeira comunidade de afeto:³³ uma sororidade queer. Tendo cumprido o destino que lhes incumbe no regime patriarcal, poderão continuar, e com maior liberdade até, a viver, amar e gozar entre mulheres:

    Não havia ainda meia hora que se trocavam beijos e carícias vivas quando a Sílvia entrou…

    – Ah! disse esta, simulando surpresa.

    – Olha, Sílvia, fecha a porta. A Isabel foi, repentinamente, quando regressava do mirante, acometida por uma forte dor de cabeça, e guiei-a por isso ao teu quarto, que era o mais próximo, e fiquei-lhe fazendo companhia… …

    A Sílvia recostou, curvando-se, a cabeça ao travesseiro, e tão perto do rosto da doente que os seus alentos, tépidos, começaram a entrechocar-se… Depois, aproximou-se mais e mais, até que os seus lábios se uniram…

    Isabel, então, enlaçou-a pela cintura, enquanto que uma das mãos de Sílvia se perdeu nas sombras das suas vestes de veludo…

    – Ai! disse aquela, cerrando os olhos…

    Olímpia, inebriada, repartia por ambas os seus beijos sensuais, ao passo que com as mãos, nelas, tentava explorações misteriosas…

    A Sílvia, escoando-se ao longo do corpo de Isabel, foi-lhe levar as suas mais escolhidas e vivas carícias, enquanto que ela mesmo estava sendo objeto de outras iguais nessas magas regiões vilosas em que ela mesma imprimia sensações vivíssimas…

    Depois, ai! que evoluções em todos aqueles corpos lindos, que cantos melodiosos e que emanações perfumadas e ardentes!…

     Constatamos assim o quanto Chatenay se afasta dos romances realistas ou erótico-naturalistas de temática sáfica que começam a ser publicados em toda a Europa, inclusive em Portugal, depois do sucesso estrondoso de Mademoiselle Giraud, ma femme (1870), do escritor francês Adolphe Belot (1829-1890).³⁴ Com efeito, esta obra picante constituiu uma viragem na história dos romances de temática sáfica [...]. Inaugura uma onda de romances onde aparecem lésbicas e antecipa os debates sobre a homossexualidade.³⁵ A escandalosa obra será vertida para português por Manuel Pinheiro Chagas (1842-1895), com um título muito mais explícito, Amigas e Peccadoras (1873). Esgotada a tradução portuguesa, e porque a celeuma à volta da publicação³⁶ não permitiu a sua reedição, é lançada uma nova tradução no Brasil, com um título também equívoco: Esposa e Virgem (1877). O romance de Belot, ambientado no Paris contemporâneo do autor, num meio burguês, afasta-se por completo do safismo hedonista para leitor-voyeur da literatura libertina e erótica publicada até então, embora o tema continue vivaz nos contos portugueses dados à estampa na época.³⁷ Trata-se de mostrar – de modo voyeurístico – uma perversão e os males inerentes a uma sexualidade tida como contranatura e degenerada, à boa maneira naturalista. Doravante, para as mulheres, não há como escapar à heterossexualidade compulsória, à ortodoxia sexual legitimada pelo regime patriarcal, tal como exemplifica o romance Amar, Gozar, Morrer (s.d., circa 1878), publicado sem nome de autor, na senda do sucesso editorial de Belot, e contra o qual Chatenay parece arquitetar os seus heterodoxos mistérios. No romance anónimo, a Condessa de *** e a sua filha adotiva, Amélia, não só se relacionam sexualmente com mulheres, como também se recusam a casar com homens. A primeira para conservar a sua liberdade de jovem viúva, a segunda por não gostar da ideia de servidão feminina que o casamento (heterossexual) impõe. No entanto, de forma moralizadora, a Condessa, no final da sua vida de luxúrias, recomenda o casamento (heterossexual) como forma de regeneração da saúde, enquanto Amélia, diante de uma gravidez, também o aceita como uma forma de regeneração física e moral.³⁸

    Logo, se atendermos ao sistema ideológico que perpassa no romance, trata-se de uma invulgar defesa e ilustração da manice, à qual se junta, à mistura, uma verdadeira crítica do regime patriarcal em que as mulheres são seres subalternos, submissas às leis dos homens, passando das mãos dos pais para as dos maridos, como acontece com a protagonista, D. Violante. Obedecendo à vontade paterna, a heroína casa com D. Duarte, sobrinho e único herdeiro de D. Gaspar de Coculim, um rico nobre da província. O casamento arranjado resulta numa união infeliz, como confessa a própria ao capelão da quinta do Asfondelo, o concupiscente e matreiro padre António da Costa Pereira:

    – O amor, minha senhora, disse o padre, tem, entre os esposos, uma duplicada natureza, isto é, participa simultaneamente do espírito e do corpo, e, portanto, nas suas manifestações, deve estar em harmonia com as fontes de onde procede: exerce-o V. Ex.ª assim?

    – Não, senhor.

    – Oh!

    – Quero dizer, nem os meus sentidos nem a minha alma tomam parte nessas manifestações a que alude…

    – Não ama V. Ex.ª porventura seu marido?…

    – Respeito os laços a que ele me ligam, estimo-o, mas não o amo. […] Creio que o seu amor é todo sensual, e que a sua alma nenhuma parte toma em tais manifestações.

    – E o seu pensamento, senhora, não forceja encontrar noutras fontes o que o seu marido, segundo disse, lhe não pode oferecer?…

    – Até hoje ainda não, conquanto não deixe de carpir os laços que me infelicitam.

    Aliás, essa infelicidade é, no caso de D. Violante, de alma e de corpo, já que o narrador descreve, para condená-la – caso invulgar, tendo em conta o sexo do autor, a época e o género do romance – a violação conjugal a que é sujeita:

    D. Duarte, incapaz de outro afeto que não fosse o amor físico, bem longe de modificar, por calculadas carícias, a repugnância da mulher, atendia somente aos seus imperiosos desejos egoístas, agravando a situação com assaltos bruscos e brutais. […]

    A curiosidade, abismo tapetado de flores, onde tantas mulheres resvalam fascinadas pela vertigem, não deixou de concorrer para que a formosa Violante, medianamente violentada no princípio, se prestasse às aberrações do marido; e quando, mais tarde, satisfeita que foi a curiosidade, tentou reagir indignada, já aquele, afoitado pelas condescendências anteriores, se impôs e ordenou como senhor.

    Enquanto nos romances realistas as esposas infelizes (ou aborrecidinha[s],³⁹ como no caso da Luísa, de O Primo Basílio) caem em tentação e acabam por morrer física ou socialmente depois do adultério, único desfecho possível na lógica machista que sustenta a escrita, tal não é o caso em Os Mysterios do Asphondelo. Pelo contrário, a heroína que, no início, ostenta todas as qualidades morais de uma esposa que respeita os laços que a ligam ao marido, torna-se adúltera por vontade do próprio, além de incentivada a tal pelo pai, o primeiro, a pensar no bem da família, e o segundo, no futuro da filha, como deixam transparecer as suas calculadas e pérfidas lamentações:

    – Ai! e pensar eu que estás para sempre condenada a arrastar a pesada corrente; que tu, tão gentil e formosa, amarrada a um impotente sem atrativos, verás correr e passar os mais belos dias da tua existência […] sem que, por um momento ao menos, te seja permitido fruir os inebriantes gozos do amor, e que nem tão pouco te seja reservada a ventura de ser mãe, nem a mim a esperança de reviver em teus filhos e gozar das suas inocentes carícias, é motivo para maldizer a vida, ou para jamais me perdoar a precipitação com que aceitei tão odiado enlace!

    Com efeito, uma sorte cruel vinculou [Violante] a um marido duas vezes repelente, – pela figura e pela impotência. Ora, no contrato antenupcial ficara acordado que:

    […] caso, contra o que era de esperar, de tal matrimónio não houvesse sucessão, a nubente, ficando viúva, apenas poderia haver, a título de arras, a anuidade de 200$000 réis; e quando fosse pelo contrário, além de tais arras, desde já, ele D. Gaspar, lhe havia por nomeados os seus prazos de nomeação restrita – Sernancelhe, Arnas e Fonte-Arcada, cujo rendimento líquido era de 600$000 réis. D. Gaspar, simulando tal bizarria, bem compreendia que nada arriscava, já que tais prazos teriam de reverter em benefício dos sucessores de seu sobrinho D. Duarte num futuro mais ou menos próximo, houvesse ou não filhos.

    Por isso, é conveniente que haja, muito em breve, um filho, para que o casal possa herdar e usufruir de todos os bens do tio já idoso. Sendo D. Duarte clinicamente declarado infértil por três médicos sagazes e visivelmente peritos no assunto, pai e marido unem-se para incitar Violante a encontrar o que se poderia chamar, anacronicamente, um doador de esperma. Porque a medicina do tempo de Chatenay não conhecia ainda a inseminação artificial – embora já tivesse imaginado tal possibilidade num dos seus romances⁴⁰ – a desditosa Violante, carpindo o seu fado e brilhando-lhe ao mesmo tempo nos olhos uma faísca sensual, não poderá valer-se da assistência médica e tudo terá de acontecer como manda a natureza. Tendo de "recorrer a fonte estranha" no maior sigilo, o pai indicar-lhe-á o melhor dos doadores, o capelão, que, embora padre, tem uma vida sexual ativa, como era de esperar num romance erótico que evoca a literatura libertina francesa. A devassidão do personagem serve, metonimicamente, para denunciar a hipocrisia do clero, em clave lúdica, se compararmos com O Crime do Padre Amaro (1875), de Eça de Queirós, exato contemporâneo do autor. Contudo, o capelão não deixa de ser tão perverso e sádico quanto o Padre Amaro. Mas não sendo Os Mysterios do Asphondelo um romance realista, o capelão é morto por um marido ciumento, e a sua maior vítima, a inocente e pura Olímpia, vê-se assim vingada:

    Olímpia, essa flor que tão maculada fora pelos bafos impuros daquele satã, ao saber por Violante da terrível execução, dizia, estremecendo:

    – Oh! Violante! foi terrível… terrível, mas justo…

    A trama inicial não é em si original já que, quatro anos antes de Chatenay dar o seu romance à estampa, Maupassant publicara na revista Gil Blas (2 de novembro de 1882) um conto com o mesmo enredo. Todavia, o seu Le million (O Milhão) não ultrapassa as sete páginas e o objetivo é meramente satírico. Trata-se de ridiculizar uma respeitável família burguesa disposta a todos os compromissos para herdar de uma tia rica. O adultério da esposa com um colega do marido, com a sua tácita aceitação, nem parece ter acontecido e, no final do conto, depois de a protagonista anunciar estar grávida, marido e mulher beij[am]-se longamente, ternamente, muito unidos, muito honestos.⁴¹

    Apesar de o romance em apreço, cuja ação decorre numa quinta da Beira Alta, entre a Vila da Ponte e Sernancelhe, retomar o mesmo esquema narrativo, não se trata de uma sátira à burguesia. A crítica não recai sobre uma classe social em si, mas sobre os homens e sobre o regime patriarcal que inferioriza as mulheres. Num verdadeiro processo de empoderamento, as personagens femininas de Os Mysterios do Asphondelo revoltam-se contra o poder dos homens. Violante considera doravante o marido como um verdadeiro traste; a colaça, Sílvia, recusa afoitadamente qualquer tipo de relação com o pretendente, Roberto, que despreza; Ema, ao escolher ela própria com quem quer casar, acaba por agir em pé de igualdade com os homens que censura pelo seu egoísmo legitimado pelas leis da sociedade patriarcal:

    – São então, além de inconstantes, odiosamente egoístas!…

    – E porque os qualificas de egoístas, Ema?

    – Porque têm a desarrazoada pretensão de exigirem das mulheres uma fidelidade a que eles recusam sujeitar-se.

    – É que a sua organização e temperamento é, provavelmente, muito mais exigente do que o nosso; e depois, Ema, não o percas de vista, a sua educação e praxes estabelecidas converteram o abuso em lei, geralmente bem recebida…

    – Por eles! Oh! se o pretexto, a que V. Ex.ª alude, é justificação para desvarios, terão de admiti-lo e tolerá-lo quando a mulher, embora por exceção, seja também dotada de um temperamento igual.

    – Mas bem sabes que o pudor da mulher, a sua educação e exigências sociais…

    – Sim, tudo isso é verdade, interrompeu a linda impugnadora, já que os homens, interessados nesta ordem de coisas, arquitetaram a seu modo educações, pudores e exigências sociais; mas o facto nem exclui responsabilidades nem reciprocidade de deveres, porque o dever, nascendo com o homem, é anterior a tudo quanto ele possa fazer. É bem de crer, minha senhora, que, se as mulheres tivessem sido as arquitetas do regime social, com exclusão dos homens, estes nos

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