Terapia Peripatética de Grupo Fenomenologia e Psicopatologia
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Terapia Peripatética de Grupo Fenomenologia e Psicopatologia - Demétrius França
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO MULTIDISCIPLINARIDADES EM SAÚDE E HUMANIDADES
À memória dos amigos Norberto e Ganges
Agradecimentos
Aos professores doutores Andrés e Jean-Marie.
À equipe de terapeutas que apoiaram a atividade.
Aos parceiros do ISM, diretor Ulisses, Melissa, Edimar e Nelson.
A Wilson Theodoro e Wilson Theodoro.
Aos meus irmãos.
A Maria e Maria.
As pessoas não morrem.
Ficam encantadas.
(Guimarães Rosa)
APRESENTAÇÃO
Este livro, inicialmente, demanda uma contextualização prévia, por mínima que seja, quanto à história da saúde mental no mundo, no Brasil, e, especificamente, em sua capital Brasília, onde a intervenção terapêutica que aqui descrevo foi realizada. Essa contextualização mostra-se necessária porque a percepção do que é saúde e doença no campo da saúde mental não é uniforme ao redor do mundo, tendo correlação direta com o contexto ético, cultural e econômico dos diferentes povos e países. E, claro, essas especificidades também se encontram sujeitas às variações da evolução histórica ao longo do tempo.
Proposto inicialmente por Bleuler em 1908, o diagnóstico de esquizofrenia em sua origem referia-se a distintas causalidades e possíveis evoluções. Nessa perspectiva, o delírio era a manifestação do prejuízo afetivo e associativo por parte da pessoa adoecida. Esse diagnóstico representou um importante avanço diante da dita demência precoce de Kraepelin, que não se distinguia da demência convencional quanto à causalidade e ao tratamento. O diagnóstico de esquizofrenia representa, portanto, um esforço ativo de compreensão e cuidado com as pessoas em sofrimento psíquico.
Mesmo que pouco conhecido atualmente, Eugène Minkowski apresenta-se como pioneiro e referência histórica dentro da saúde mental. Enquanto ex-assistente de Bleuler, Minkowski teve importante papel na popularização do diagnóstico da esquizofrenia na França. Talvez a maior marca de Minkowski seja a proposta de mudança de postura do psiquiatra, que sai do lugar de meramente perguntar e listar sintomas para buscar compreender a experiência vivida do paciente, utilizando como referencial a própria consciência. Não por acaso, Lacan escreve sobre a importância do trabalho de Minkowski.
Felizmente (ou não), o campo da saúde mental não evoluiu de forma crescente e linear, tampouco uniforme. Por mais que o leitor compreenda, hoje, a importância do bom cuidado em saúde mental, vários são os exemplos das consequências dos movimentos éticos, culturais e econômicos na oferta de serviços em saúde mental. No século XX, houve a ascensão do movimento higienista (social hygiene movement), na Europa e nas Américas, que passou a definir políticas públicas. Dessa forma, a maioria dos serviços de saúde mental se desenvolveu a partir de um modelo asilar e higienista. Tal ideologia motivou o pressuposto de que as pessoas adoecidas, menos capazes e/ou menos adaptadas, deveriam ser isoladas, sob justificativas eugênicas formais ou informais, do restante da sociedade.
Esse pensamento apresentou repercussão no mundo inteiro. Como exemplo, podemos citar o caso francês, que mesmo proferindo formalmente o discurso de liberdade, igualdade e fraternidade, permitiu que asilos psiquiátricos franceses¹ na Argélia funcionassem, em 1953, como verdadeiros depósitos humanos, onde as alas psiquiátricas eram divididas entre os diferentes grupos étnicos. Pode não ser razoável, mas os franceses brancos dispunham de uma ala exclusiva, distinta da ala que abrigava árabes e berberes – aparentemente a cidadania francesa era mera formalidade para essas pessoas tratadas como selvagens na perspectiva psiquiátrica da época.
No Brasil, a mesma política de isolamento higienista se manifestou. O exemplo mais extremo se encontra em Barbacena, Minas Gerais. O maior hospital nessa cidade dispunha de uma maioria negra, refletindo os ideais eugenistas do higienismo. Curiosamente, 70% dos pacientes internados não dispunham de diagnóstico psiquiátrico. Desempregados, homossexuais, epilépticos, crianças que sofriam de enurese e até mães solteiras foram encaminhados para esse asilo construído para os desajustados
. Sem a possibilidade de sair, estimativas acusam a morte de pelo menos 60 mil pessoas nessa instituição fúnebre, que, não obstante as condições já degradáveis, também vendia cadáveres ilegalmente para uso em escolas de medicina, por exemplo.
Essa política de morte foi combatida por esforços individuais de diversos profissionais, tomando a forma e o nome coletivo de antipsiquiatria, termo cunhado por David Cooper. Esse movimento combateu o uso indiscriminado da eletroconvulsoterapia e da lobotomia, exigiu tratamento humanizado e propôs alternativas terapêuticas, em liberdade, para as pessoas em sofrimento psíquico.
Entre os pioneiros da antipsiquiatria, podemos citar Franz Fanon, que eliminou as distinções raciais do hospital argelino em que trabalhou como diretor em 1953. Além disso, agrupou os moradores dos manicômios de acordo com o diagnóstico e a gravidade do adoecimento e introduziu atividades terapêuticas, como partidas de futebol fora dos limites hospitalares. No caso de Fanon, vale acrescentar que ele não se limitou à saúde mental e lutou também contra o imperialismo francês e segue como referência do pensamento decolonial contemporâneo.
No Brasil, a Reforma Psiquiátrica foi inspirada no trabalho de Franco Basaglia, convergindo para uma política pública de fechamento de manicômios e abertura de hospitais-dias. Entretanto, a política pública, aprovada diante da pressão dos defensores de direitos humanos e dos escândalos de tortura e maus-tratos, não modificou necessariamente os preconceitos e a cultura de políticos e profissionais de saúde de um país historicamente racista e excludente: no caso brasileiro, ocorreu o fechamento gradual dos manicômios, mas não uma mudança estrutural definitiva quanto à importância da saúde mental, que segue subfinanciada no Brasil. Por parte dos profissionais de saúde, muitos seguem atuando guiados por preconceitos de gênero e raça, entre outros elementos higienistas que provocam ou justificam a indiferença e/ou rejeição aos pacientes fragilizados e que não podem se defender ou demandar dignidade.
É nesse contexto que este presente trabalho foi desenvolvido. O manicômio chamado Clínica Planalto, localizado no entorno do Distrito Federal, foi forçado a encerrar suas atividades somente em ٢٠٠٣, devido a acusações de crimes contra a humanidade. Além dos maus-tratos, também ocorreu o desaparecimento de algumas das pessoas aprisionadas nesse lugar, que lá estiveram sob o pretexto de serem tratadas
e cuidadas
. Esse caso específico me é caro pois, à época, era estudante de Psicologia na Universidade de Brasília (UnB) e recordo não apenas das celebrações pelo fechamento do manicômio, mas também das implicações que demandaram a organização de uma estrutura de acolhimento e encaminhamento dessas pessoas libertas, que seguiam necessitando de cuidados após o fechamento da instituição.
Essas memórias foram reavivadas em 2014, 11 anos mais tarde, durante o meu doutorado, quando reencontrei alguns dos sobreviventes da Clínica Planalto no Instituto de Saúde Mental (ISM), em Brasília – instituição onde desejava desenvolver minha pesquisa. Além disso, o perfil dos moradores do ISM mudou ao longo dos anos, acomodando também pessoas oriundas do sistema prisional. Apesar de a legislação brasileira exigir a oferta de residências terapêuticas para as pessoas oriundas dos manicômios, os diferentes governadores do Distrito Federal completaram 20 anos em 2020 sem cumprir com essa normativa. Essa condição precária apenas reforçou a obrigação ética de incluí-los no meu projeto terapêutico.
Esse breve resumo ilustra como nossas experiências profissionais ocorrem de forma integrada a nossas histórias de vida. Talvez um dos diferenciais deste livro, que nasceu a partir da minha tese de doutoramento defendida em 2016 no Programa de Pós-Graduação em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), é a busca pela demonstração do amadurecimento que ocorreu não apenas por meio da reflexão e apropriação da obra de Minkowski, mas também do exercício ativo de aplicação desses princípios no trabalho terapêutico, desenvolvido com as pessoas que mais necessitavam de um profissional dedicado a alcançá-los.
Esse processo de reflexão e amadurecimento segue um ritmo vivido distinto do prazo cronológico de quatro anos que é necessário para iniciar e concluir um doutorado. O livro trata-se, portanto, da elaboração de diversos questionamentos iniciados no doutorado e/ou fora dele, que organizei mais tarde para apresentar ao leitor. Ainda que números não reproduzam a realidade, o livro conta com aproximadamente 10 mil palavras a mais que a tese, tornando-se uma obra bastante distinta quando comparada ao projeto que a originou.
Neste segundo livro de minha autoria dedicado inteiramente à terapia peripatética de grupo, será possível identificar e compreender não apenas a maturação de um trabalho para o outro, mas também o desenvolvimento de um manejo profissional diferenciado e o esforço pela compreensão dos pacientes. A própria narrativa do processo clínico descrito de forma integral, dos semelhante a uma crônica, torna a obra uma experiência diferente da maior parte das publicações clínicas, que geralmente omitem ou resumem as partes do processo que possam ser consideradas menos significativas
ou feias
, mas que em última instância são essenciais para transmitir a evolução gradual e orgânica do processo – um processo no qual nem o terapeuta, nem os participantes estão prontos para os grandes insights ou para as porradas
clínicas.
Para os interessados em fenomenologia, outro elemento que torna a obra atraente, é a descrição e apropriação da obra de Eugène e Françoise Minkowski. Além de minha apropriação ocorrer adaptada à terapia peripatética de grupo, creio que se trata também de uma introdução à obra dos Minkowski (Eugéne e Françoise) em língua portuguesa. A psicopatologia viva para pessoas vivas
desenvolvida por Eugène Minkowski mostra-se cada vez mais atual em um contexto no qual nossos profissionais dedicam cada vez menos tempo à compreensão das pessoas em sofrimento, sob a justificativa do uso de uma técnica rígida e de uma burocracia castradora que preconizam como deve ocorrer um tratamento.
Esta pesquisa foi realizada em um momento de luta da saúde mental pelo avanço na qualidade dos serviços e, claro, pelo incremento da rede de hospitais-dias. Em 2020, de um lado, deparamo-nos novamente com restrições orçamentarias que, na prática, inviabilizaram a oferta de serviços em saúde mental. Por outro lado, o Governo Federal (e também as esferas estaduais e municipais) financia, novamente, entidades asilares privadas, em sua maioria religiosas. Mesmo que as chamadas comunidades terapêuticas no Brasil tenham inúmeros registros comprovados de trabalho forçado, tortura e outras modalidades de desrespeitos aos direitos humanos, elas se fortalecem diante da aliança política do governo com grupos políticos religiosos – que também pressionam a ideia eugênica de uma suposta reversão de homossexualidade
.
Diante dessas oscilações, entre avanços e retrocessos quanto ao falso dilema sobre oferecer o cuidado, ou a exclusão dos desajustados, autores como Minkowski e Fanon seguem atuais e necessários. Mesmo que produto de um contexto específico (Brasília – Brasil – Planeta Terra), no século XXI, este livro propõe um debate atualizado sobre a obra de Eugène e Françoise Minkowski e sua aplicação em uma modalidade particular de terapia.
Assim como a terapia peripatética funciona fora dos limites convencionais das quatro paredes e muros dos consultórios e instituições, no esforço terapêutico por meio do estímulo à criação de novos sentidos e ressignificação de velhos afetos. É meu desejo que este livro facilite ou provoque uma peripateia em que o leitor dialogue com o autor sobre as possibilidades dessa clínica ambulante.
O autor
PREFÁCIO
Este livro esforça-se para aplicar os insights fenomenológicos de um dos maiores psiquiatras do século XX – Eugène Minkowski – em uma nova forma de terapia de grupo – a terapia peripatética de grupo.
Para entender o projeto, precisamos saber o que tais insights fenomenológicos são, o que era tão excepcional sobre Minkowski, e o que se entende por terapia de grupo peripatética.
1. Insight fenomenológico
Nos anos 1920, quatro psiquiatras reuniram-se em uma conferência e formularam um método compartilhado para investigar desordens psiquiátricas. Seus nomes eram Eugène Minkowski (francês naturalizado), Ludwig Binswanger (suíço), e Victor von Gebsattel e Erwin Straus (alemães). Seus projetos eram contra os determinismos psicológicos e biológicos, além de serem, essencialmente, uma primeira tentativa da psicopatologia filosófica – aplicando os pensamentos filosóficos de vários filósofos, não unicamente a escola fenomenológica – ver a seguir. Minkowski foi principalmente influenciado por Bergson, Binswanger oscilou entre Husserl e Heidegger, Von Gebsattel deve ao Scheler, e Straus ao Aristotle.
A escola de filosofia fenomenológica foi um produto de três filósofos na virada do século XX – Edmund Husserl, Max Scheler and Martin Heidegger (todos alemães). Suas visões-chaves sobre a natureza dos seres humanos e do mundo são tão díspares que é difícil acreditar que eles integraram a mesma escola filosófica. Heidegger inverteu a filosofia de Husserl – que era uma forma extrema de Cartesianismo – e proclamou que o homem primariamente habitou uma forma de ser pré-reflexiva, preconsciente – pouco separada da forma animal. Scheler criticou duramente ambos colegas e opinou que o homem era tanto animal quanto espírito, e não era nem um solipsismo nem um animal.
O insight fenomenológico que França escreve não é, portanto, derivado de nenhum desses filósofos mencionados, nem de outro filósofo do século XX considerado como sendo fenomenológico
em seus escritos – e.g. Maurice Merleau-Ponty, Jean-Paul Sartre, e numerosos outros. É antes um termo demasiado utilizado para o que é nada menos que a prática de intuição da parte do psicólogo, do psiquiatra ou do terapeuta – não para ser subestimado, nem se vincular a uma escola filosófica que estava em desacordo com ela mesma e cujos supostos pais
regularmente negavam que eram fenomenologistas, e não se relaciona com um grupo de psiquiatras cujo mentores filosóficos eram, às vezes, não fenomenologistas.
2. O status excepcional de Minkowski
Minkowski foi um emigrado polonês que se instalou na França após a Primeira Guerra Mundial e escreveu vários trabalhos e livros durante os anos 1920 e 1950. Seu principal foco era na esquizofrenia e depressão, seu mentor era Bergson e não um dos três supostos pais da escola filosófica fenomenológica – Husserl, Scheler, Heidegger. Seu método visava identificar flagrantes anomalias, no que chamo de inventório filosófico
– e.g. tempo, espaço, personalidade, objetividade, subjetividade – todos esses fragmentos que determinam o que experienciamos e como experienciamos. Para Minkowski, o(a) paciente psiquiátrico(a) era aquele(a) cujo self e mundo estavam distorcidos vis-à-vis ao normal
, porque seu espaço, tempo, personalidade, subjetividade e objetividade eram diferentes do dito saudável
.
Minkowski não apenas formulou a psicose em fragmentos até então inéditos, mas ele percebeu, como nenhum outro psiquiatra (nem filósofo) percebeu antes, que o esquizofrênico e o depressivo, de maneira diferente e inversa, eram exemplos vivos de falsas posições filosóficas sobre o ser humano normal
: a esquizofrenia é um idealismo vivo, e a depressão, um materialismo in vivo.
3. Terapia peripatética de grupo
Se alguém deseja conhecer e tratar distúrbios psiquiátricos, quanto mais perto possível de suas vidas essenciais, melhor. Settings artificiais, como se sentar em quarto de hospital com uma equipe de saúde mental, devem ser considerado como o mais distante possível do dia a dia. Acompanhar o paciente às refeições, ao teatro, a exposições de arte e afins é muito melhor. A terapia é fenomenologicamente derivada
, no sentido de que é baseada na intuição e no cotidiano. A escola de filosofia fenomenológica e a escola de psiquiatria fenomenológica, ambas as quais eram, de qualquer forma, heterogêneas, estão somente tangencialmente envolvidas no assunto discutido, cuja validade deve ser avaliada nos parâmetros científicos usuais de se algo funciona ou não.
4. Em conclusão
Qual é a melhor abordagem para a questão da saúde mental é um tópico que tem desafiado doutores e leigos interessados desde os gregos. Os mais efetivos têm sido os serendipíticos – antidepressivos, antipsicóticos, terapia eletroconvulsiva. Mas isso sempre me pareceu insatisfatório. O que Demétrius França faz neste livro é unir a melhor consideração teórica sobre distúrbios psiquiátricos – baseado em Minkowski – e ver se tal pode sustentar um tipo particular de terapia.
Dr. J. Cutting
Psiquiatra britânico, foi professor honorário na Kings College Hospital – Londres e Institute of Psychiatry – Londres, e autor de livros sobre psiquiatria.
Maio de ٢٠٢٠
Sumário
Introdução 25
Terapia peripatética: história, conceitos e princípios 35
Definição 35
Contrato terapêutico 35
Teoria e técnica psicológica 36
Setting clínico ambulante 37
História 41
Terapia peripatética de grupo 46
O ensaio (2005) 48
A primeira dissertação (2004) 50
A segunda dissertação (2009) 55
A experiência argentina 60
Conceito de exclusão para a terapia peripatética 64
Therapeutic Accompaniment 65
Fenomenologia 73
Psicopatologia fenômeno-estrutural 75
Primeiro momento 77
Segundo momento 79
Um caso de depressão esquizofrênica 82
Transferência (bilateral) 90
Método 99
Local e participantes 99
O ISM e a definição de residência terapêutica 99
Moradores do ISM 102
A terapia peripatética na prática 104
Psicopatologia fenômeno-estrutural na terapia peripatética de grupo 105
Resultados 111
A residência 113
A segunda equipe conhece a residência 114
Trilha ecológica 115
Música e dança 119
Trilha ecológica 121
Reunião de programação 124
Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) 129
Piquenique na piscina 137
Piscina 140
Biscoitos de aveia 141
Bolo 143
Jogos 145
24 e 26 de setembro 148
Piscina do ISM 148
Parque da Cidade 150
Parque Onoyama 153
Bingo 156
Planejamento da programação 159
Museu da República 163
Calendário 168
Teatro na Polícia Rodoviária Federal 169
Uma queda 171
Um resultado inesperado 172
Piscina e piquenique 174
Parque da Água mineral 176
Escolha das fotos preferidas 177
Mapa das histórias 178
Cancelado 179
Estádio Mané Garrincha 179
Despedida 180
Ganges e a Constituição Epileptoide 183
1o Round 183
2o Round 190
3o Round 193
4o Round: O Desafio Final 195
Terapia Peripatética de Grupo: desdobramentos 203
Baixa Retenção de Temporalidade 205
Gênero 208
Evolução da terapia peripatética de grupo 209
Espaço-temporalidade 213
Encerramento 215
Elementos de uma psicopatologia colonial 217
Última Metáfora 225
Conclusão 233
REFERÊNCIAS 237
Anexos 245
Anexo A – Nomes Fictícios dos Moradores 245
Anexo B – No
M
es fictícios da Equipe 246
ÍNDICE REMISSIVO 247
ÍNDICE REMISSIVO
Introdução
Pode-se comprar uma caixa de pêssegos, mas como faz para comprar um pomar de pêssegos em flor?
(Sonhos, Akira Kurosawa, 1990)
Foi em 2004, durante a supervisão da minha primeira paciente, no meu primeiro estágio na psicologia clínica, que vivi uma situação muito desagradável, mas que fez parte central na minha escolha pela fenomenologia. Ainda empolgado, pois era a segunda sessão deste caso inaugural, e um pouco ingênuo sobre os professores de forma geral, comentei com um sorriso bem humorado, durante minha supervisão, a estranha situação na qual minha paciente exigiu sentar-se na minha cadeira, e não na poltrona mais confortável que tinha sido disponibilizada para ela. Pego de surpresa, e um pouco ansioso para iniciar a sessão de terapia, eu concordei e não questionei a situação.
Fui imediatamente censurado: minha supervisora recriminou-me quanto ao que eu considerava importante interpretar acerca do caso, e, apresentando sua opinião como verdade absoluta, analisou a insistência da paciente em sentar-se no meu lugar. Fui censurado porque não percebi o teste a que fora submetido. Minha paciente quis ocupar o lugar do terapeuta
e eu cedi tolamente. O manejo proposto por minha supervisora, obviamente, era o de que eu deveria enquadrá-la
no seu lugar de paciente².
Somente assim ela poderia iniciar seu processo terapêutico, conduzido por mim, o terapeuta. Senti-me culpado com a censura, afinal, reprovara no primeiro teste a que fora submetido como clínico.
Ingênuo e inexperiente, acolhi a fala da minha supervisora e entrei na terceira sessão pronto para mostrar quem é que mandava
³. Pelo menos era assim que me sentia orientado a agir. Tão logo a paciente entrou e tentou sentar-se na minha cadeira, disse a ela que aquele era o meu lugar e que ela deveria sentar-se na poltrona. Constrangida, a paciente insistiu que não sentaria na poltrona.
Questionei e ela respondeu que a poltrona era muito alta e que se incomodava porque seus pés não tocavam o chão. Por um lado, compreendi que minha supervisora se antecipou e orientou-me inadequadamente quanto à paciente baixinha
. No entanto, precisei buscar uma cadeira mais baixa para não contrariar minha supervisora. Afinal, além de censurado, senti-me constrangido ao lado dos outros estagiários e não queria correr o risco de passar novamente por isso.
Ao explicar a situação após o esclarecimento da paciente, a supervisora permaneceu impassível e não teceu maiores comentários. Apenas reforçou o cuidado que eu deveria ter para permanecer no lugar de terapeuta. Com o avanço do estágio entendi que a supervisora provavelmente entendia que a regra também se aplicava a ela. Então, ela não poderia nem assumir um erro, nem rever sua própria supervisão.
Retomando a questão da minha primeira paciente, pode-se dizer que nunca se firmou uma relação de confiança. Diante de minha postura fechada, replicando o papel de terapeuta plenipotenciário que não cedia aos questionamentos da paciente, creio que a transferência nunca se estabeleceu. Ela solicitou o encerramento da terapia antes de completar dois meses de atendimento. Da minha parte, ponderei se realmente tinha talento para trabalhar como clínico e não dei continuidade ao estágio na clínica-escola da minha universidade.
Eu somente compreendi, ou elaborei melhor, esta situação com o tempo – mais precisamente um ano depois, quando a apresentei à professora mestra Gabriela Celidônio (2004). Eu cursei, no último semestre do curso de psicologia, a disciplina tópicos em psicoterapia, na qual tive uma introdução à daseinanálise⁴, uma abordagem terapêutica de viés fenomenológico. A professora mestra Celidônio (2004), ainda mestranda, ministrou a disciplina como prática de docência, obrigatória no mestrado da Universidade de Brasília (UnB), e utilizou a experiência da sala de aula para sua pesquisa de mestrado e descreveu o episódio da minha primeira experiência como clínico, bem como sua reflexão sobre a discussão que tivemos em sala de aula:
Nesse sentido, refletimos como certos conceitos relacionados a ideias comuns ao repertório dos psicólogos podem atrapalhar a compreensão de questões fundamentais de um paciente. Isso porque são conceitos que fizeram sentido no contexto em que foram pensados, dentro de certas teorias, mas quando são tratados como óbvios, impedem a procura por outros significados (em geral isso acontece com os conceitos que já parecem muito bons). (Celidônio, 2004, p. 23)
Esta abertura para conhecer e dialogar com o indivíduo em suas peculiaridades, bem como a forte crítica ao enquadramento teórico forçado dos pacientes que muitas abordagens psicoterapêuticas estimulam ou favorecem entre seus praticantes ecoaram profundamente em mim. Celidônio (2004) fez ainda outro comentário sobre a situação que demonstrou as implicações para o manejo clínico dessa abertura proporcionada pela fenomenologia durante a terapia:
O que seria essa tal de manipulação do paciente, que muitas vezes é entendida como algo que caberia a nós,