O Inquisidor
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O Inquisidor - Edomberto Freitas Alves Rodrigues
O Inquisidor
Memórias de um inquisidor condenado pela inquisição
Edomberto Freitas Alves Rodrigues
Clube de Autores (Independente)
O autor
Edomberto Freitas Alves Rodrigues. Formado em História pela UFMG e Filosofia pela PUC-MG. Professor de história em BH e Betim. Pesquisador de espiritualidade e filosofia. Escreveu a coleção Religare e outros livros espiritualistas. Agora ele traz seu novo romance: HERCULANUM. Nele, o leitor encontrará várias questões filosóficas e de autoconhecimento. Essa obra não se desconecta das anteriores, pois ainda apresenta as buscas e pesquisas espiritualistas do autor.
Capa: Edomberto Freitas
Sumário
Introdução
Uma perspectiva espiritual
O alvorecer de uma Nova Era
Infância e sede de conhecimento
Sussurro do conhecimento
Encontro com Ficino
Partindo de casa
A vida no mosteiro
Meus estudos
O espectro da bruxaria
Convocação para julgar
A busca nas sombras da história
O encontro com a acusada
O peso do silêncio
O perigoso monismo
O medo dos místicos
A minha doutrina
O julgamento de um místico
Meus estudos de Plotino
Cuidando de minha mãe
Avisos sinistros
Acusado
Torturado
A sentença
De volta para a unidade
Caros leitores,
Nas páginas que se seguem, convido-os a embarcar numa jornada transcendental, uma viagem através do tempo e do espírito, explorando a profundidade da alma humana e a busca incessante pela verdade e conexão divina. Esta obra não é apenas um relato, é um mosaico de experiências, reflexões e revelações, tecido com os fios da história, da filosofia e da espiritualidade.
Aqui, iremos juntos desvendar as camadas de uma vida dedicada à compreensão da unidade que permeia toda a existência. Desde as masmorras sombrias da inquisição até os luminares celestes da iluminação, cada capítulo é um espelho que reflete não apenas a minha jornada, mas também as indagações universais da humanidade.
Esta narrativa é um convite para que você, leitor, possa contemplar a trama da vida com olhos renovados, reconhecendo-se em cada alegria e desafio, em cada busca e descoberta. É um chamado para que juntos possamos transcender as barreiras do conhecido e tocar o infinito que reside dentro de nós.
Prepare-se para uma aventura que transcende o tempo, onde o passado e o futuro se encontram no presente, onde a sabedoria dos antigos se entrelaça com as inquietações modernas. Que esta obra seja um farol, iluminando o caminho para aqueles que buscam compreender os mistérios do ser e do cosmos.
Com um coração repleto de esperança e um espírito ansioso por compartilhar, apresento-lhes O inquisidor: Memórias de um inquisidor julgado pela inquisição
.
Com gratidão e humildade,
Frei Giorgio Contarini
Abertura capítulo 01.jpgUma perspectiva espiritual
Enquanto observo o emaranhado de memórias e experiências que formaram a trama de minha existência terrena, vejo-me agora em um estado de ser que transcende o tempo e o espaço. Aqui, no reino etéreo do mundo espiritual, estou livre das amarras da carne, mas ainda enlaçado pelas reflexões de minha vida como Frei Giorgio Contarini.
Nesta esfera de existência, onde o passado, presente e futuro se entrelaçam como fios num tecido infinito, começo a compreender a imensidão do que vivi e do que deixei para trás. Minha vida, marcada por uma busca incessante por conhecimento e verdade, parece agora um rio cujas águas fluíram tanto para a luz quanto para a escuridão.
Nascido da união proibida e secreta, cresci à sombra de um estigma invisível, mas profundamente sentido. Minha mãe, uma mulher de origens humildes, e meu pai, um nobre cujo nome nunca foi reivindicado como meu, deram-me mais do que a vida: deram-me um enigma para resolver, uma identidade para desvendar.
A Igreja foi meu refúgio e minha escola, um lugar onde pude saciar minha sede de saber. No entanto, foi também o palco de meu maior conflito: a luta entre a fé que me foi ensinada e a fé que comecei a formar em meu coração e mente, influenciada pelas palavras enigmáticas de Plotino e sua visão do Uno, a fonte de toda existência.
Refletindo agora, vejo como cada passo, cada escolha, foi um ponto de partida para o próximo, tecendo o caminho que eventualmente me levou à condenação pela mesma instituição que um dia chamei de lar. Aqui, no limiar do eterno, percebo que minha jornada foi mais do que um caminho para a verdade; foi um caminho para entender a própria natureza da humanidade e de sua busca incansável por significado.
Meu percurso, embora marcado por inúmeras reviravoltas, teve um ponto de inflexão definitivo: o dia em que me deparei com Domenico Scandella, conhecido como Menocchio. Este simples moleiro, cuja compreensão do divino desafiava as mais rígidas doutrinas da Igreja, foi a faísca que acendeu a chama da dúvida em meu ser.
Menocchio, com suas ideias de panteísmo, falava de um Deus que não estava confinado às estruturas e dogmas da Igreja, mas que era inseparável do próprio universo. Suas palavras, consideradas heréticas e perigosas pelos meus colegas inquisidores, ecoavam estranhamente dentro de mim, despertando perguntas que há muito estavam adormecidas.
Recordo-me agora, no silêncio deste plano espiritual, das conversas que tivemos. Cada argumento que ele apresentava contra a concepção ortodoxa de Deus, cada vislumbre de um universo imbuído de divindade, fazia-me questionar não apenas as doutrinas que eu defendia, mas também a própria natureza da verdade e da fé.
Foi naquele momento, diante desse homem que muitos viam como nada mais do que um herege ignorante, que senti as primeiras rachaduras em minha convicção inabalável. A ironia de minha situação não me escapa: eu, um inquisidor encarregado de erradicar a heresia, encontrei-me atraído pelas mesmas ideias que deveria condenar.
Essa jornada de descoberta e conflito interno não foi fácil. Lutei contra mim mesmo, contra as crenças que formavam o alicerce de minha vida e minha identidade. E agora, olhando para trás através das névoas do tempo e do espaço, vejo claramente como esse encontro com Menocchio foi crucial para desencadear minha própria transformação - uma transformação que me levou a caminhos nunca imaginados, e finalmente à minha própria condenação.
Ao refletir sobre esses momentos, percebo que cada diálogo com Menocchio foi um passo adiante em minha jornada espiritual. Eles me levaram a questionar, a explorar, e finalmente a abraçar uma visão de mundo que ia além das paredes da Igreja - uma visão que me levou a encontrar a beleza e a complexidade do pensamento de Plotino sobre a unidade de todas as coisas.
Abertura capítulo 02.jpgO alvorecer de uma Nova Era
Enquanto permaneço neste limiar etéreo, as memórias de minha existência terrena continuam a fluir, trazendo-me agora ao contexto vibrante e turbulento do tempo em que vivi. Foi uma era marcada pelo Renascimento, um período de despertar e renovação, onde as luzes da sabedoria antiga foram reacendidas e novas ideias começaram a tomar forma, desafiando os velhos modos de pensar.
Nasci em um momento incrível, quando a Europa estava redescobrindo os tesouros da Grécia Antiga e do Império Romano. O mundo em que cresci era um caldeirão fervilhante de novas ideias, onde as artes floresciam e a ciência começava a lançar seu olhar curioso sobre os mistérios da natureza.
Os escritos de Platão, Aristóteles e, claro, Plotino, foram como faróis que iluminaram meu caminho. Eles falavam de um universo ordenado e harmonioso, de ideias que transcendiam a compreensão comum e abriam portas para mundos de conhecimento e compreensão que eu mal podia imaginar em minha juventude.
Mas este também foi um tempo de tensão e conflito. O mesmo fervor que alimentava a busca pelo conhecimento também acendia as chamas da disputa e da divisão. A Igreja, que por tanto tempo havia sido a guardiã incontestável da verdade e do conhecimento, agora via-se desafiada por novos pensamentos e descobertas. Em cada canto, em cada praça ou universidade, havia discussões fervorosas sobre teologia, filosofia e ciência.
Foi neste cenário efervescente que iniciei minha jornada. A busca pelo conhecimento não era apenas uma atividade intelectual; era um ato de fé, uma crença na capacidade humana de compreender e melhorar o mundo. A cada livro que lia, a cada discussão em que participava, sentia-me mais vivo, mais conectado a este vasto e maravilhoso tapeçar da existência.
No entanto, a luz da sabedoria vem frequentemente acompanhada pela sombra da perseguição. As mesmas ideias que me fascinavam e inspiravam eram vistas por muitos como uma ameaça à ordem estabelecida. E assim, enquanto eu me deleitava no esplendor do conhecimento renascentista, uma nuvem sombria de incerteza e medo começava a se formar sobre mim.
Abertura capítulo 03.jpgInfância e sede
de conhecimento
Minha jornada não começou no claustro, nem sob o olhar severo dos inquisidores, mas sim nas colinas ondulantes e nos campos dourados de minha infância. Foi lá, em meio à simplicidade de uma vida camponesa, longe dos corredores do poder e das disputas acadêmicas, que conheci Marsilio. Marsilio Ficino, que viria a ser uma das mentes mais brilhantes de nossa época, era, naquela época, apenas um menino de olhos curiosos e mente faminta por saber.
Nossos primeiros encontros ocorreram ao acaso, nos limites de uma feira local, onde os mercadores de livros vendiam seus volumes empoeirados. Eu, um menino de origem humilde, fascinado pelas letras e palavras que mal compreendia, e Marsilio, filho de um médico, já demonstrando uma compreensão precoce dos mistérios do mundo. Nosso amor compartilhado pelos livros nos uniu, e nossa amizade floresceu sobre pergaminhos e perguntas sem fim.
À medida que crescíamos, nossos caminhos pareciam divergir - eu, levado pelo fervor religioso, encontrei meu lar entre os franciscanos; Marsilio, movido por um desejo incansável de desvendar os segredos do passado, mergulhou nos estudos do grego antigo e da filosofia. No entanto, nossa amizade permaneceu inabalável, uma ponte entre dois mundos que raramente se encontravam.
Nos verões de nossa juventude, Marsilio compartilhava comigo as maravilhas dos textos que descobria. Lembro-me claramente de uma tarde em particular, sob a sombra de uma velha oliveira, quando ele me falou pela primeira vez de Plotino. Giorgio
, disse ele, com um brilho nos olhos, há um universo inteiro dentro dessas palavras, um cosmos de ideias que desafiam tudo o que pensamos saber.
Aqueles dias eram iluminados por um sol de descobertas e debates. Discutíamos até o anoitecer, nossas mentes dançando entre os ensinamentos de Aristóteles e as visões místicas de Plotino. Esses momentos moldaram-me, abriram meu coração e mente para um mundo além dos limites rígidos da doutrina que eu estava destinado a defender.
Agora, olhando para trás daqui, deste reino etéreo, vejo como esses primeiros anos com Marsilio plantaram as sementes do meu destino. Juntos, começamos uma jornada de conhecimento e questionamento, uma jornada que, para mim, terminaria com um fogo muito diferente daquele que iluminou nossas discussões juvenis.
***
Nas asas do tempo, minha mente voa de volta à infância, à pequena casa de pedra onde fui criado. Ali, minha mãe, uma mulher de força silenciosa e sorriso caloroso, tecia nossa vida com fios de humildade e trabalho árduo. Ela nunca falava de meu pai, e por muitos anos, a verdade sobre minha origem permaneceu envolta em mistério.
Eu era uma criança de perguntas sem respostas, olhando para o mundo com olhos curiosos, sempre me perguntando por que éramos diferentes dos outros na vila. Minha mãe, com sua sabedoria simples, dizia apenas:
— Você é especial, Giorgio. Há um mundo de possibilidades esperando por você.
Eu sentia em suas palavras um amor incondicional, mas também um peso, um segredo não dito.
Foi apenas quando atingi a adolescência que a verdade veio à tona. Em um raro momento de abertura, sob a pressão de minhas incessantes perguntas, minha mãe revelou a verdade sobre meu pai. Ele era um nobre, um homem de prestígio e poder, com quem ela havia compartilhado um breve, porém intenso, romance. Nossa existência era o fruto desse amor proibido.
A revelação sacudiu as fundações do meu mundo. De repente, as diferenças que sentia na infância faziam sentido – eu era um filho bastardo da nobreza, vivendo à sombra de um legado que jamais poderia reivindicar. Essa nova compreensão de quem eu era não trouxe ressentimento, mas sim uma determinação silenciosa de forjar meu próprio caminho, longe das sombras da nobreza e das expectativas impossíveis.
Nas palavras e nos silêncios de minha mãe, encontrei a força para buscar um futuro além das colinas que circundavam nossa humilde casa. Foi essa força que me levou aos pés dos franciscanos e, eventualmente, ao encontro com Marsilio e às profundezas do conhecimento que tanto ansiava.
Olhando para trás, dessa esfera etérea onde agora habito, vejo como cada fio de minha história foi tecido com precisão. A humildade de minha mãe, a nobreza de meu pai desconhecido, e a sede de conhecimento que brotou em minha alma – todos eles me conduziram ao caminho que trilhei, um caminho repleto de luz e sombras, de descobertas e perigos.
***
Desde cedo, minha mãe reconheceu em mim uma sede insaciável pelo saber. Apesar de nossa simplicidade, ela fez questão de que eu aprendesse a ler e escrever, habilidades raras em nosso vilarejo. Ela dizia que as palavras tinham o poder de libertar a mente e abrir as portas do mundo. E foi essa crença que me levou à feira que mudaria minha vida.
Lembro-me daquele dia com uma clareza que transcende o tempo. A feira era um turbilhão de cores, sons e cheiros. Camponeses, artesãos e mercadores se misturavam em um balé de comércio e conversa. Mas, para mim, tudo isso se tornou um mero pano de fundo quando meus olhos encontraram a barraca de um vendedor de livros.
Era uma visão modesta, com pilhas de livros usados e pergaminhos desgastados. Para muitos, aquilo seria apenas um amontoado de papel velho, mas para mim, era um tesouro inestimável. Com dedos trêmulos, folheei páginas amareladas, tocando as palavras como se fossem preciosas gemas. Cada página virada era uma janela aberta para um novo mundo – histórias de reinos distantes, tratados de filosofia e poesia que dançava nas linhas.
Naquele dia, não tinha dinheiro para comprar nada, mas o vendedor, um homem de olhos bondosos e sorriso encorajador, percebeu minha paixão.
— Leve este — disse ele, entregando-me um pequeno livro de poesias — Traga-me um pouco de queijo da próxima vez.
Aquele livro tornou-se meu companheiro constante. Nele, encontrei não apenas histórias e lições, mas também um convite para questionar e explorar. Foi este presente simples que acendeu em meu coração a chama do conhecimento, uma chama que se tornaria uma labareda ardente em minha busca pela verdade.
Agora, refletindo do outro lado do véu da morte, vejo como aquele momento na feira foi crucial. Foi ali que comecei a entender que meu destino não estava confinado às fronteiras de minha origem humilde. O saber tornou-se minha ponte para o mundo e a chave que abriria a porta do meu futuro, um futuro que me conduziria a caminhos nunca antes imaginados.
***
A descoberta daquele pequeno livro de poesias na feira foi apenas o começo de uma jornada insaciável pelo conhecimento. Decidido a explorar mais mundos escondidos nas páginas dos livros, comecei a realizar pequenos trabalhos na vila. Cada moeda ganha com meu esforço tinha um propósito claro: comprar mais livros.
Meus dias eram divididos entre ajudar minha mãe em casa, trabalhar nos campos ou fazer recados para os vizinhos. Cada tarefa concluída me aproximava um pouco mais do meu próximo livro. Lembro-me da alegria que sentia ao juntar o suficiente para uma nova compra. Era como se cada livro