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Infância e pedagogia histórico-crítica
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Infância e pedagogia histórico-crítica
E-book381 páginas4 horas

Infância e pedagogia histórico-crítica

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Sobre este e-book

"Talvez pudéssemos dizer que a maneira como os adultos respondem à pergunta "como educaremos as crianças" é bastante reveladora do que eles pensam sobre a sociedade, a vida e o futuro da humanidade. Se essa hipótese estiver correta e se analisarmos criticamente o que tem sido a educação da infância brasileira nas últimas décadas, chegaremos à conclusão de que a sociedade contemporânea resolveu deixar que o acaso decida os rumos da história. Em se tratando de uma sociedade dominada pela lógica do capital, as consequências dessa atitude não são alentadoras. Os textos reunidos neste livro guardam em comum a não aceitação dessa renúncia ao trabalho de formação intencional das novas gerações e se somam a estudos que têm preconizado a adoção da pedagogia histórico-crítica no campo da educação, opondo-se à difusão das pedagogias do aprender a aprender e reafirmando o ato de ensinar." - Newton Duarte
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de nov. de 2020
ISBN9786588717042
Infância e pedagogia histórico-crítica

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    Infância e pedagogia histórico-crítica - Ana Carolina Galvão

    capítulo 1

    NOTAS SOBRE A EDUCAÇÃO DA INFÂNCIA NUMA PERSPECTIVA MARXISTA

    José Claudinei Lombardi

    Ocongresso Infância e Pedagogia Histórico-Crítica teve por objetivo discutir a infância sob a perspectiva da pedagogia histórico-crítica, colaborando com o debate acadêmico sobre as teorias pedagógicas, como afirmado na divulgação do evento. Foi uma iniciativa do Núcleo de Educação Infantil (NEDI) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), a quem parabenizo, aplaudindo a iniciativa e o trabalho de coordenação da professora Ana Carolina Galvão.

    Foi uma honra o Grupo de Estudos e Pesquisas História, Sociedade e Educação no Brasil (HISTEDBR) ter apoiado a realização do evento. A presença do coordenador geral do grupo, Dermeval Saviani, é expressiva disso.

    Objetivamente, não tive possibilidade de estar presente ao congresso. Permitam-me explicitar que gostaria de estar presente, não porque eu tivesse alguma contribuição específica sobre o tema, mas para aprender com os colegas que têm pesquisado e atuado no âmbito da educação da infância na perspectiva da pedagogia histórico-crítica, articulando dialeticamente a teoria e a prática (isto é, a práxis) da educação das crianças.

    Penso que esse debate é fundamental nestes tempos em que, contraditoriamente, se declara a necessidade de educar a infância, mas se defende que essa educação deve ser uma antiescolarização. Portanto, reafirmo, essa iniciativa vem ao encontro daqueles educadores que defendem a educação infantil como um momento de formar e educar as crianças na escola, em uma perspectiva crítica e emancipadora.

    A pedagogia histórico-crítica como foco de recentes eventos

    Antes desse congresso, foi realizado o Seminário Pedagogia Histórico-Crítica: 30 anos, em dezembro de 2009, na UNESP de Araraquara, pelo Grupo de Pesquisa Estudos Marxistas em Educação, coordenado pelo professor Newton Duarte.

    Naquele evento, que resultou em livro publicado pela editora Autores Associados (MARSIGLIA, 2011), foi realizado um amplo e complexo debate sobre as bases filosóficas, históricas, psicológicas, didáticas e práticas da pedagogia histórica-crítica.

    Não se deixou de focar o confronto da pedagogia histórico-crítica com outras perspectivas teóricas, notadamente a contemporânea expressão da decadência ideológica burguesa – a pós-modernidade. Não se deixou também de fazer o confronto da pedagogia histórico-crítica com os modismos pedagógicos atuais, principalmente as pedagogias do aprender a aprender.

    Outros eventos também têm focado os fundamentos teóricos e as práticas envolvendo a pedagogia histórico-crítica, particularmente no HISTEDBR e no Grupo de Pesquisa Estudos Marxistas em Educação. No Programa de Pós-Graduação em Educação da UNICAMP, têm sido ofertadas disciplinas para o aprofundamento teórico e prático da pedagogia histórico-crítica. Em 2010, foi ofertada uma disciplina, coordenada por Dermeval Saviani e Mara Regina Martins Jacomeli, para o aprofundamento dos fundamentos da pedagogia histórico-crítica e voltado aos alunos da pós-graduação em educação da UNICAMP; em 2011, outra disciplina foi ofertada, focando a pedagogia histórico-crítica e os movimentos sociais, e que foi aberta à participação de outros grupos de estudos em várias regiões do Brasil, uma vez que a disciplina foi transmitida por meio da Videoconferência da Faculdade de Educação da UNICAMP¹, coordenada por Dermeval Saviani e José Claudinei Lombardi e contando com a participação de numerosos representantes de vários movimentos sociais; em 2012, nova disciplina, objetivando tratar a pedagogia histórico-crítica como uma construção coletiva, novamente coordenada por Saviani e Lombardi e com a participação de vários educadores identificados com essa perspectiva pedagógica. Também essa disciplina foi aberta à participação de outros grupos de estudos, sendo transmitida por meio da Videoconferência da Faculdade de Educação da UNICAMP². No interior desse conjunto de debates e reflexões em torno dessa formulação pedagógica, tem ocorrido uma intensa busca, motivada por questões teóricas e práticas, para entender a educação da infância.

    Desde as consultas preliminares para minha participação, explicitei que considerava o evento oportuno e necessário, pois está travando-se uma batalha em torno da educação de nossos pequenos. O embate diz respeito, particularmente, à educação estatal – aquela levada a cabo num momento em que o público está crescentemente sendo subsumido pelo privado.

    Nesse sentido, lembro que a ênfase foi dada pela análise marxista sobre o Estado capitalista, em que este é entendido como uma instituição (ou aparelho, na conceituação althusseriana) criada para a defesa dos interesses da burguesia. Entretanto, a filosofia política burguesa justificou (ideologicamente) a criação desse Estado como democrático e voltado à defesa dos interesses de todos. Para isso reproduziu, sob novas bases, os conceitos de democracia (demo – cracia) e de separação das esferas e poderes, notadamente público e privado. Mas público era (e é) apenas expressão de estatal, logo sob as mãos e controle da mesma classe que controla o Estado.

    Como a burguesia tem mecanismos e instituições próprias para o cuidado de seus pequenos – tomados como herdeiros da riqueza e que, por isso, devem ser preparados para o domínio e controle do saber e da gestão do ter –, ao Estado compete o cuidado da massa infantil dos que vivem do trabalho (do proletariado, para usar uma expressão que é própria do referencial marxista). É, portanto, a partir da análise marxista que abordaremos a temática.

    Do cuidado à educação da infância

    Inicialmente, o cuidado com a infância nada mais fez que propiciar espaços para que as famílias trabalhadoras pudessem deixar seus filhos supostamente protegidos e cuidados em suas necessidades fundamentais, biológicas, psicológicas e sociais, liberando pais e mães para o trabalho. De meus estudos, não posso deixar de lembrar as análises de Engels e, depois, Marx sobre os cuidados e educação dos filhos dos trabalhadores ingleses que desvelam o caráter que tal educação tomou (LOMBARDI, 2011).

    Como resultado das lutas e reivindicações dos trabalhadores (notadamente das mulheres trabalhadoras), os fétidos depósitos de crianças sob os (des)cuidados de trabalhadoras(es) despreparados para tanto foram transformando-se. E as conquistas políticas foram sendo regulamentadas, transformando-se em legislação educacional e, com ela, a institucionalização da educação infantil. Os nomes das instituições foram mudando, em conformidade com as modas de plantão, dos jardins de infância até os nossos dias, com creches, pré-escola etc.

    O que os trabalhadores queriam para a educação de seus filhos foi sendo definido, na medida em que a luta de classes avançava. Os debates e experiências desenvolvidos na Comuna de Paris foram impactantes; também as elaborações e experiências desenvolvidas sob a Rússia revolucionária e que ainda repercutem nos dias de hoje, apesar do precário conhecimento que temos do assunto, bem como dos autores diretamente envolvidos no desenvolvimento de uma pedagogia adequada a uma formação social em pleno processo revolucionário.

    Ao lado dos debates políticos e das experiências educacionais, as balizas de uma nova concepção pedagógica foram sendo formuladas, alicerçadas em avanços notáveis do conhecimento sobre o homem, em suas várias dimensões, realizados em uma revolucionária perspectiva científica: a concepção materialista dialética da história.

    Estamos avançando nos estudos sobre o marxismo e as contribuições dos clássicos para a formulação teórica de pedagogias revolucionárias; hoje não desconhecemos as contribuições de Marx e Engels; também as de Lenin, Krupskaia, Blonski, Lunacharsky; Makarenko, Pistrak e Gramsci; da psicologia histórico-cultural de Lev Semenovitch Vygotsky, Alexander Luria, Alexei Nikolaievich

    Leontiev e Daniil B. Elkonin.

    Todos esses estudos possibilitam-nos entender, hoje, como pensar uma educação para a educação infantil que rompa com a concepção burguesa de educação. Então, mais que oportuno um debate em torno da pedagogia histórica-crítica e sua colaboração para tal nível de ensino.

    Retomada de reflexões, mais que necessárias

    No seminário dos trinta anos da pedagogia histórico-crítica, os estudos de Juliana Campregher Pasqualini e Ana Carolina Galvão avançaram em questões fundamentais da análise sobre a educação dos pequenos. Questões que considero importantes:

    1. É preciso aprofundar os estudos sobre a hipertrofia da escola, focando a educação da infância.

    2. São necessários estudos mais aprofundados quanto à identidade da educação dos menores de 6 anos de idade; não simplesmente pela decorrência de embates políticos, mas em vista dos avanços dos estudos neurológicos e psicológicos.

    3. O aprofundamento da discussão sobre a identidade da educação infantil exige que ele seja feito em relação ao trabalho pedagógico adequado à educação da infância, seja ela a educação infantil ou os anos iniciais do ensino fundamental.

    4. Em vista do avanço e hegemonização da pedagogia da infância, centrada numa perspectiva antiescolar , é fundamental ampliar a análise crítica desse novo modismo, demonstrando seus vínculos com o decadente pensamento pós-moderno e os equívocos de suas afirmações.

    5. Não basta apenas a crítica às perspectivas antiescolares, é preciso que também sejamos propositivos na direção da educação escolar da infância – com um ensino adequado às fases do desenvolvimento infantil.

    6. Nos vários debates de que tenho participado, duas velhas questões sempre aparecem: o que e como ensinar. Em outras palavras, é a retomada das velhas questões quanto ao conteúdo a ser ensinado; sobre o método e a didática mais adequada; enfim, sobre os materiais e instrumentos didático-pedagógicos adequados a uma perspectiva revolucionária.

    Esses aspectos, seguramente, precisam ser desenvolvidos e levados a cabo em estudos mais aprofundados e, principalmente, na perspectiva de sermos propositivos na direção da implementação de uma educação escolar para a primeira infância, fundada nos aspectos fundamentais da pedagogia histórico-crítica.

    Além de aporte técnico, é preciso compromisso político!

    Há relativo consenso entre nós que a escola é uma instituição historicamente determinada, uma construção humana que se articula ao processo de produção das condições materiais da existência. Como uma dimensão da realidade humana, para além da mera reprodução da sociedade burguesa, pode a educação articular-se plenamente na construção da sociedade sem classes (SAVIANI, 1991, p. 105).

    Para isso, o educador precisa romper com as pedagogias escolares articuladoras dos interesses da burguesia e vincular sua concepção e sua prática a uma perspectiva revolucionária de homem e de mundo. Não se trata simplesmente de aderir a uma concepção científica de mundo e seu poder desvelador da realidade, mas de assumir na teoria e na prática uma concepção transformadora da vida, do homem e do mundo. Não revolucionaremos a sociedade pela escola, mas é por meio dela e de seus conteúdos e práticas que daremos aos trabalhadores as ferramentas ao entendimento da exploração, ideologias e controles dessa sociedade.

    Como a burguesia se apropria da ciência (e de todos os saberes) para impulsionar o desenvolvimento das forças produtivas sob seu controle, bem como para reforçar e naturalizar a dominação de classe, cabe-nos (como revolucionários) viabilizar aos que vivem do trabalho o acesso e a apropriação dos conteúdos e saberes elaborados pela humanidade. E para além disso devemos possibilitar, de modo amplo, a formação de consciências críticas, a formação para a luta proletária em defesa de seus próprios interesses, particularmente formando e preparando para a luta revolucionária que conduza a uma transformação histórica radical.

    Isso implica lutar por uma educação: pública (estatal), gratuita, universal, laica e integral – e isso em termos de seu conteúdo (o que ensinar), de sua forma (como ensinar) e em sua organização (quem ensina?, quem aprende?) e de seu papel social (conservador, reformista ou emancipador − o homem como sujeito de sua história).

    Não se pode esquecer, porém, que a educação escolar que se dá no interior da rede estatal, nesta época de transição, é contraditória, tendendo para a reprodução da dominação. Por isso, além de ocupar o espaço escolar e buscar direcioná-lo em conformidade com os interesses de classe do proletariado, é preciso criar alternativas de educação para e pelo proletariado organizado.

    No meu entendimento, é a isso que se propõe uma educação revolucionária e, também neste caso, considero que a pedagogia histórico-crítica cumpre exemplarmente tal papel, pois em seus fundamentos defende que a educação seja gestada com ampla participação da comunidade para a qual se destina; que seja uma educação omnilateral (do homem todo, corpo e intelecto); que seja em tempo integral, com tempo de atividades escolares e extraescolares; aulas + estudos individuais e em grupo; que articule o ensino com o trabalho, não do trabalho como diletantismo ou brincadeira infantil, mas como trabalho produtivo e que possibilite ao aluno entender como se dá a incorporação da ciência e da tecnologia aos instrumentos e processos produtivos; enfim, uma educação que, sendo crítica, esteja centrada nos conteúdos científicos, conquistados pela humanidade ao longo de sua história.

    De modo sintético, penso que, como educadores comunistas, nos cabe uma tripla tarefa:

    1. Empreender uma radical e profunda crítica da educação burguesa , mostrando seus mecanismos classistas de funcionamento, desmistificando e desnaturalizando o caráter classista, burguês, realizado na escola.

    2. Organizar uma educação crítica aos trabalhadores , uma prática educativa que possibilite aos despossuídos o acesso ao saber historicamente produzido pela humanidade, mas numa perspectiva crítica e articuladora do saber historicamente acumulado pela humanidade.

    3. E, ainda, uma formação política para a luta revolucionária (originalmente esta foi formulada para se dar no interior dos Partidos Comunistas e das instituições de luta dos trabalhadores; mas, e hoje, onde esta formação poderia ocorrer?).

    Para que essas tarefas possam ser levadas a cabo, entretanto, é preciso que haja educadores formados numa perspectiva histórica e crítica (ou marxista). Essa formação não ocorreu nos cursos de formação de professores ou de pedagogia, hegemonizados que são pelas teorias e ideologias articuladoras do pensamento burguês e mantenedoras da ordem que rege o modo capitalista de produção. Por isso mesmo, defendo que precisamos formar quadros que estejam preparados técnica e politicamente para a implementação de uma pedagogia revolucionária, com professores e intelectuais que tenham condições de disputar a hegemonia com as concepções pedagógicas burguesas.

    Para além das análises acadêmicas, precisamos ser mais propositivos. Mas para avançarmos na luta, precisamos substituir nossas práticas políticas divisionistas e antropofágicas pela articulação e cooperação. Do ponto de vista político, sabemos apontar o que divide os diferentes grupos de esquerda, mas será que não precisamos começar a conhecer o que nos une e nos articula? Penso que essa foi a intencionalidade do congresso Infância e Pedagogia Histórico-Crítica.

    Referências

    LOMBARDI, J. C. (2011). Educação e ensino na obra de Marx e Engels. Campinas, Alínea.

    MARSIGLIA, A. C. G. (2011). Pedagogia histórico-crítica: 30 anos. Campinas, Autores Associados.

    SAVIANI, D. (1991). Educação e questões da atualidade. São Paulo, Livros do Tatu; Cortez.

    capítulo 2

    PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA: CONTRIBUIÇÕES PARA A SUPERAÇÃO DO CONHECIMENTO TÁCITO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

    *

    Lidiane Teixeira

    Inicialmente, gostaria de agradecer o convite para participar do congresso Infância e Pedagogia Histórico-Crítica, ressaltando a oportunidade significativa que tal experiência traduz: o aprendizado com pesquisadores verdadeiramente comprometidos com os fundamentos teóricos dessa pedagogia.

    Minha exposição refere-se à formação do professor e nela objetivo discutir alguns aspectos relevantes da pedagogia histórico-crítica¹ no sentido da superação do imediatismo e do pragmatismo presentes nos discursos oficiais e acadêmicos para a formação docente em nosso país.

    Em minha pesquisa de doutorado², tomei como ponto de partida o exame das proposições teórico-epistemológicas dos documentos oficiais para a formação de professores para a Educação Básica, em especial, os Referenciais Curriculares Nacionais para a Formação de Professores (BRASIL/MEC/SEF, 1998) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica (BRASIL/CNE, 2001; 2002).

    A análise das orientações dos documentos evidenciou, para além da preocupação com a criação de formas de interferência direta nas práticas educativas desenvolvidas pelos professores nos contextos escolares (como a formação continuada, por exemplo), a descaracterização do papel do professor e a redução do trabalho educativo a um saber-fazer circunstancial. Pautado pela formação por competências e pela prática reflexiva, o discurso oficial defende, ainda, que os saberes relativos ao desenvolvimento profissional docente devem ser aqueles construídos na e pela prática, colocando a formação de competências como substituta da formação teórica e acadêmica.

    Essa perspectiva de formação tem como um de seus pilares a epistemologia da prática, resultante dos estudos realizados por Donald Schön (1995, 2000). Fundamentado na teoria da indagação de John Dewey e na teoria do conhecimento tácito de Michael Polanyi³ (1958), o autor desenvolveu argumentos a favor de uma epistemologia da prática em contraposição à racionalidade técnica. No início da década de 1990, as reflexões de Schön começaram a ser discutidas no meio acadêmico como contribuição para a formação de professores (ver NÓVOA, 1995).

    O conceito de prática reflexiva em Donald Schön (1995) desdobra-se em três outros: conhecer-na-ação, que apresenta noções de saberes escolares, mas é caracterizado por um conhecimento de caráter mais rotineiro, intuitivo e experimental; reflexão-na-ação, realizada pelo sujeito a partir das situações de incerteza que se apresentariam na prática profissional, para as quais não se encontram respostas imediatas; e reflexão sobre a reflexão-na-ação que ocorreria em momento posterior à ação e permitiria a análise da situação vivenciada para (re)orientação da prática.

    Com base nesses conceitos, Schön (1995) defende uma epistemologia pautada pela construção de conhecimentos a partir de um saber-fazer fazendo por meio de um sistema de formação tutorado, no qual o aprendiz teria a oportunidade de observar e aprender a prática de um prático praticando (CAMPOS & PESSOA, 1998, p. 194).

    Cumpre destacar que, em nossa realidade, um dos fundamentos epistemológicos dessa teoria, o pensamento reflexivo na obra de Dewey⁴, vem sendo bastante discutido no meio acadêmico por pesquisadores que apontam as contribuições da teoria do professor reflexivo⁵. Entretanto, no que se refere ao fundamento epistemológico da teoria de Michael Polanyi, o conhecimento tácito, raras obras dedicam-se à sua explicitação, tomando-o em abstrato.

    Esse esforço de aproximação ao conceito não é uma atividade inédita no campo da educação. Destaco a tese defendida por Saiani (2003) na Faculdade de Educação da USP intitulada Valorizando o conhecimento tácito: a epistemologia de Michael Polanyi na escola. Nesse trabalho, o pesquisador propõe-se a apresentar a epistemologia de Polanyi no sentido de superar a dicotomia objetivo/subjetivo no campo da construção do conhecimento, buscando, como desdobramento da pesquisa, possibilidades de aplicação dessa epistemologia na educação escolar, a partir dos estudos desenvolvidos na área de gestão do conhecimento segundo os interesses do mundo corporativo.

    Nesse sentido, o autor considera que o modo como o conhecimento tácito de funcionários tem sido aproveitado pelas grandes corporações, revelando-se como um importante recurso para o sucesso das empresas, pode ser tomado como referência na proposição de estratégias compatíveis com a função da escola (SAIANI, 2003, p. 6).

    Discutindo o conhecimento tácito

    Embora Polanyi tenha introduzido a expressão conhecimento tácito na discussão epistemológica contemporânea, afirmações sobre a existência de processos cognitivos embasados por operações inconscientes já estariam presentes nos trabalhos de Herman von Helmholtz, no século XIV.

    Em oposição ao ideal de objetividade absoluta herdado da Revolução Científica do século XVIII e às produções fundamentadas numa determinada ciência marxista⁶, Polanyi (2003) propõe a construção de uma nova epistemologia, cujo conceito central é o conhecimento tácito.

    Para Polanyi (2003), o conhecimento humano fundamenta-se no próprio ato da percepção. Portanto, não se separa do sujeito que o constrói, constituindo-se assim em uma elaboração particular. Nesse sentido, o autor destaca como aspectos importantes dessa construção:

    1. O necessário compromisso do cientista com a ciência que fabrica e como oposição à imparcialidade científica.

    2. O ato da descoberta ou atividade de elaboração científica como eixo central à filosofia da ciência, colocando em segundo plano a descoberta em si (P OLANYI , 1958). Vale ressaltar que, nesse ponto, Polanyi se aproxima da teoria epistemológica construtivista de Jean Piaget, cuja obra é referenciada em seu trabalho, possibilitando a afirmação de que, para ambos, mais importante que o conhecimento ou a descoberta científica é o próprio ato de conhecer.

    3. O conhecimento explícito, passível de sistematização, é apenas uma pequena parte em relação a um todo complexo implicado na construção do conhecimento científico. É o conhecimento implícito, ou tácito, construído a partir das percepções e história de vida do sujeito – sua experiência – que dá sustentação e sentido ao conhecimento explícito (P OLANYI , 1958; S AIANI , 2003).

    Segundo Polanyi (1958), conhecemos muito mais do que nos é possível expressar ou explicar. O ato de conhecer implicaria, portanto, elementos de percepção cuja complexidade de relações operaria de modo subliminar, sem que tenhamos consciência delas, sem que possamos percebê-las diretamente, tal como a percepção comum.

    Nesse sentido, a construção do conhecimento dependeria da incorporação, em alguma medida, de ferramentas cognitivas oferecidas por um referencial teórico, de tal modo que se tornassem autômatos e cumprissem o papel de elementos subsidiários na percepção do todo, atuando como elementos tácitos de uma nova construção.

    No âmbito da produção flexível, como veremos a seguir, esses elementos passam a ser valorizados sob a noção de competência, em decorrência da necessidade da utilização do conhecimento tácito para uma atuação eficiente dos indivíduos em suas atividades de trabalho, tanto naquelas que exigem pouco conhecimento, quanto as que demandam certo domínio de conhecimento científico e tecnológico.

    A apropriação do conceito de conhecimento tácito pelo mundo corporativo pressupõe compreendê-lo como intuitivo, construído com base em experiências diversificadas em contextos de trabalho, isto é, on the job. Dependeria de esquemas mentais individuais, nem sempre comunicáveis, mas que garantiriam um comportamento inteligente no cotidiano profissional de indivíduos bem-sucedidos (LINS, 2003).

    Na tentativa de melhor caracterizá-lo, Lins (2003, pp. 33-34) apresenta a seguinte definição:

    O conhecimento tácito pode ser visto como um composto de experiências condensadas, princípios, atitudes, comportamentos, informação contextual, experiência e insights experimentados. Por servir de plataforma para novas experiências e informações, este tipo de conhecimento gera cada vez mais conhecimentos quando usado por quem o possui. É o conhecimento adquirido ao longo do tempo que forma critérios e filtros, habilitando cada indivíduo a selecionar a relevância das informações de acordo com seus próprios mecanismos de seleção.

    Considerando o caráter pessoal do conhecimento tácito, Lins (2003) ainda observa a dificuldade de apresentá-lo em termos lógicos por fazer parte da própria idiossincrasia do indivíduo e segundo modelos mentais pessoais, manifestando-se como elemento implícito e inconsciente em suas ações, sendo muitas vezes identificado como habilidades inatas.

    Por ser um conhecimento de grande relevância no mundo do trabalho, essa característica representa grande preocupação para empresários e intelectuais a serviço do capital, por conta da pouca viabilidade de sua apropriação e da dependência que se estabelece em relação ao trabalhador que o detém.

    Nesse sentido, identificar, nomear e embalar as capacidades tácitas eficientes poderia ser a base de uma nova carreira profissional (STEWART, 1998), além de possibilitar processos educativos que permitam, em alguma medida, sua transferência, disseminação, multiplicação e ampliação (LINS, 2003).

    Além disso, pensando na existência de um conhecimento tácito organizacional, parte do como e do porque do funcionamento de uma empresa seriam acumulados em anos de compartilhamento de modelos mentais, permanecendo como uma memória coletiva tácita, sombria e frágil, mas necessária a determinada comunidade de trabalhadores para que continuem existindo como tal. Ocorre que, para além da dificuldade de comunicá-lo, esse conhecimento pode estar errado e sua modificação seria bastante difícil, justamente por estar fundado em percepções intuitivas, valores, princípios e hábitos pessoais compartilhados (LINS, 2003).

    Desse modo, tanto a valorização desse conhecimento como uma vantagem competitiva – na medida em que não pode ser reproduzido ou imitado sem a presença do conhecedor (SAIANI, 2003) –, quanto a sua modificação mediante propostas de inovação dependem do conhecimento de sua dinâmica, de seu processo de construção e das possibilidades de sua transmissão.

    Com base nessas considerações, Lins (2003) afirma que a transmissão do conhecimento tácito só poderia

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