Da verdadeira Índia
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Sobre este e-book
Melina Galete
Melina Galete tem 35 anos e é doutoranda em Literatura pela Universidade de Évora, Portugal. Concluiu o Mestrado em Línguas, Literaturas e Culturas, com dissertação sobre a obra de José Eduardo Agualusa, na Universidade de Aveiro, em 2015. Licenciou-se em Letras – Português/Literaturas pela Universidade Federal Fluminense, em 2013. Escreve para o blogue Livro-Me(u). 'Da verdadeira Índia' é o seu romance de estreia.
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Da verdadeira Índia - Melina Galete
Introdução
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Não é muito comum a presença de estrangeiros em casamentos tradicionais na Índia. Ainda mais incomum é a presença de não indianos nos dias que antecedem a cerimónia, que consistem na preparação dos noivos, separadamente.
Quando fui convidada para participar de um dos rituais mais importantes do hinduísmo, eu não julgava que presenciaria algo que poucos ocidentais puderam presenciar: a cerimónia do Mehendi, a festa da música, o banho de especiarias, o casamento, a receção pela família do noivo e, o que foi mais surpreendente, o ritual – Puja –, celebrado no dia a seguir à receção, em que fui a única pessoa de fora da família com permissão para participar, assistir aos sacrifícios animais, oferecer especiarias e frutas aos deuses e alimentar-me com as mesmas especiarias e frutas, após a oferenda.
Já no primeiro dia de celebrações pude constatar o ineditismo da presença de estrangeiros naquela fase do casamento. Estávamos há poucos minutos no quintal onde ocorria a cerimónia do Mehendi – que consiste na pintura das mãos com henna, quando chegaram repórteres de jornais impressos e da televisão. Nos dias a seguir ocorreu o mesmo. Aparecemos em todos os noticiários da TV Telugu e em diversos jornais, éramos parados nas ruas para que tirassem fotos conosco e recebemos mais olhares do que os noivos durante a principal cerimónia do casamento.
Fui para a Índia com algumas expetativas – nem todas agradáveis. Eu só não esperava que encontraria todas as situações durante a mesma viagem. É conhecido o confuso trânsito local, a dificuldade em atravessar as ruas, a poluição do ar, a imundície dos rios, a pobreza extrema, a escravatura moderna e o machismo exagerado. A pobreza, é certo, existe em todo lado. O machismo eu também encontro em qualquer esquina no Brasil e em Portugal. Já a escravatura eu não esperava encontrar. Mas encontrei.
Por estar em um lugar pouco frequentado por turistas e hospedada em casas de parentes da noiva, pude vivenciar na quase totalidade o dia a dia de uma família do sul da Índia. Prescindi de guias turísticos, hotéis, tradutores, alimentação de emergência e até de seguro de viagem completo. Por esse motivo, esses relatos carregam em si um ineditismo surpreendente sobre aquela cultura, tão divulgada – por vezes de maneira errónea – e tão difícil de compreender.
Céu – Algures entre Porto e Amsterdão
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Esta viagem começou em setembro de 2013. Há seis anos e dois meses, época em que eu havia chegado há pouco tempo em Portugal, eu estava no meu quarto, à tarde, na Rua Mário Sacramento, residência universitária da Universidade de Aveiro. Eu estava, portanto, no meu quarto, quando chegou uma moradora nova. Existiam três quartos na casa. Um ocupado por mim, outro pela Aralyia, uma iraniana, e o outro estava vazio até então.
Mas naquela tarde a nova moradora chegou, dirigiu-se até à porta do meu quarto e apresentou-se. Após a apresentação, eu pensei que ela era inglesa e só mais tarde percebi que era da Índia. Naquela época meu inglês estava muito aquém do necessário para manter uma conversa básica.
Ao longo dos dias, aproximamo-nos cada vez mais. Sridevi¹ falava que estava a guardar dinheiro para pagar o dote do seu casamento, no dia em que o irmão escolhesse um marido para ela. Eu considerava um absurdo. Como, em pleno século XXI, alguém aceitaria casar com um desconhecido, escolhido pela família, e ainda pagar por isso?
O ano passou, ela foi para Bolonha, com retorno marcado para três meses depois. Nesse tempo, eu me desentendi com a iraniana e mudei de casa. E de novo. E mais uma vez. Sridevi voltou. Não morávamos mais na mesma casa, mas continuamos com a amizade.
Após um tempo, eu saí daquela cidade. Minha filha foi viver comigo em Portugal e mudamos para um lugar mais isolado. Dois anos depois, já no final de 2017, Sridevi anunciou que voltaria para a Índia. Fui a Aveiro para a despedida, que foi na mesma casa em que eu estava naquela tarde de setembro, quando ela chegou.
No ano seguinte, ela enviou mensagem para avisar que estava a viver na Austrália, cursando o pós-doutoramento. E disse também para eu começar a guardar dinheiro para a viagem, pois sua família estava à procura de um noivo. Ela iria casar.
Eu não discutia mais com ela sobre esse assunto. Antes eu tentava convencê-la a fugir, a casar em Portugal com alguém que ela gostasse e mentir para a família, ou a falar a verdade, mesmo que ela fosse proibida de ter contacto com eles para sempre. Eu ofereci minha casa como esconderijo, ofereci minha mãe como mãe adotiva para o resto da vida (e minha mãe disse que se fosse necessário alinharia no plano). Custei a perceber que existia uma barreira cultural muito forte. Um dia (em que Sridevi já estava farta da minha conversa de que deve-se casar por amor) ela perguntou:
— Você casou por amor?
— É claro! – Afirmei com vontade.
— E onde está seu marido? – Ela completou com um sorriso irónico.
A partir dessa conversa, continuei sem entender a escolha, mas passei a aceitar e respeitar. É que eu pensava que ela não queria casar e que tinha ido para a Austrália para tentar evitar o casamento. Eu pensava que quanto mais ela estudasse, quanto mais acumulasse títulos, mais difícil seria arrumar um marido, pois provavelmente os homens recusariam uma noiva que tivesse uma formação mais elevada que a deles. Eu julgava, ainda, que ela não queria casar.
Até que em maio deste ano recebi uma mensagem. Era uma foto, apenas isso. Na foto, ela aparecia ao lado de um homem – Arjun. Estava escolhido. A foto era uma montagem. Eles ainda não se conheciam. Mas já sabiam que iriam casar e que seria ainda em 2019. Ela convidou-me. Eu não havia seguido o conselho recebido em 2018 e não guardei dinheiro. Eu realmente acreditava que ela não queria casar. A felicidade dela desmentia meus pensamentos.
Convenci minha mãe a pagar tudo. Não foi difícil. Especializei-me nessa área há muitos anos. Ela comprou os bilhetes para mim e minha filha e cá estamos, eu e Maria Clara, no primeiro avião dessa longa viagem.
Primeiro vamos parar em Amsterdão, depois em Abu Dhabi e então chegaremos em Hyjabad, onde estarão à nossa espera no aeroporto. Só a ideia de fazer essa viagem ajudou-me no processo de despertar pelo qual passo atualmente. Desde que soube da ida, comecei a meditar e a fazer yoga quase todos os dias de manhã bem cedo.
Agora ela e Arjun já se conhecem. Há pouco tempo, seis dias apenas. Semana que vem serão casados. Provavelmente para o resto da vida. Dessa vida. Espero que felizes.
1 Os nomes das pessoas e dos lugares foram alterados para preservar as identidades.
Primeiras impressões
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Cheguei à Índia há ALGUMAS horas. Trouxe expetativas na mala. Muitas dizem respeito à religião e à alimentação. Desde que eu soube que faria essa viagem, passei a acordar cedo para meditar e fazer yoga todos os dias. E quando digo acordar cedo, falo às cinco horas da manhã. Imaginei como seria na Índia. Grandes aulas de yoga ao ar livre, mantras cantados no templo, comidas vegetarianas por todo o lado. Comecei a seguir nas redes sociais o Sadhguru, que é de uma localidade próxima de onde estou. Também passei a rever os vídeos do Jiddu Krishnamurti, que fez parte de uma fase da minha vida.
Ainda é cedo para constatar que minhas expetativas serão frustradas, mas não consigo imaginar como alguém pode meditar e encontrar paz de espírito imerso nesse caos. Os exercícios de respiração do yoga, os meus preferidos, são ineficazes aqui. Quanto mais fundo eu tento respirar, mais poluição entra nos pulmões. Sou do Rio de Janeiro e já fui muitas vezes a São Paulo. Recordo-me que mesmo sendo o Rio uma cidade poluída, quando eu voltava de São Paulo era preciso passar loção adstringente diversas vezes no rosto e o algodão ficava preto até a quarta ou quinta vez. O mesmo ocorria com os cotonetes nas narinas. Mas Hyjabad faz com que o ar de São Paulo pareça tão puro quanto o das montanhas mais altas da Suíça. Nunca lá estive, mas pareceu-me uma boa comparação.
Sempre ouvi dizer que as vacas são sagradas no hinduísmo. E também que eles acreditam que podemos reencarnar como animais, depois como humanos de novo e, mais uma vez, como animais, até terminar o ciclo de reencarnações – o Samsara. Eu julgava que por esse motivo os hindus não comessem carne, ou ao menos evitassem as carnes de animais maiores. Sempre acreditei também que a Índia era um país de maioria vegetariana.
Contudo, tenho visto muitas beef shops. A princípio julguei serem de muçulmanos, o que foi confirmado pelas roupas características utilizadas pelas pessoas por trás dos balcões. Porém, observei muitos clientes com a marca vermelha entre os olhos, utilizadas pelos hindus. E também algumas clientes vestidas com sári. Após uma semana a conviver entre menus de restaurantes e almoços familiares, compreenderei melhor como funciona a alimentação por aqui. Até agora, passado apenas um dia e meio, soube que eles seguem, devido à religião, alguns dias vegetarianos e outros regados com muita carne – de frango, carneiro e, algumas vezes, de porco. Um homem confessou-me que adora Big Mac. Mas só pode comer quando está nos Estados Unidos, pois as lojas McDonald’s da Índia não oferecem essa opção. A comida aqui, aliás, é excelente, mas temo que a partir do quinto ou sexto dia meu estômago comece a rejeitar. Principalmente se continuarem a colocar coentro em tudo.
Ainda estou no meu