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Segurança Química e Saúde do(a) Trabalhador(a) na Comunidade Internacional: uma necessária mudança de paradigma
Segurança Química e Saúde do(a) Trabalhador(a) na Comunidade Internacional: uma necessária mudança de paradigma
Segurança Química e Saúde do(a) Trabalhador(a) na Comunidade Internacional: uma necessária mudança de paradigma
E-book619 páginas7 horas

Segurança Química e Saúde do(a) Trabalhador(a) na Comunidade Internacional: uma necessária mudança de paradigma

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Sobre este e-book

O livro discorre sobre a proteção jurídica à saúde dos(as) trabalhadores(as) diante de riscos químicos presentes no meio ambiente de trabalho. A preocupação com os efeitos dos riscos químicos na saúde humana ganhou impulso com a Revolução Industrial, apresentando-se as reivindicações laborais, sociais e ambientais numa constante histórica, como tentativas de emancipação do ser humano diante de riscos produzidos num ambiente cada vez mais hostil às aspirações de bem-estar. De forma nem sempre paralela, três grandes mecanismos de resposta se formaram na comunidade internacional: a legislação internacional do trabalho, o direito internacional do meio ambiente e a saúde global. Tais sistemas produziram diplomas relevantes para a regulamentação de questões gerais e específicas quanto à segurança química no plano global, ao passo que não se pode perder de vista a importância da cultura local no desenvolvimento de alternativas viáveis de práxis emancipatória, a exemplo do campo da saúde do trabalhador. No contexto de crise da concepção mecanicista a partir do último quarto do século XX, a necessidade de mudança de paradigma torna-se mais evidente. O trabalho conclui pela necessidade da adoção de um novo paradigma de segurança, baseado na dignidade da pessoa humana, na democracia socioambiental e numa cidadania laboral participativa, como instrumentos de transformação emancipatória da realidade.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento29 de nov. de 2021
ISBN9786525214986
Segurança Química e Saúde do(a) Trabalhador(a) na Comunidade Internacional: uma necessária mudança de paradigma

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    Segurança Química e Saúde do(a) Trabalhador(a) na Comunidade Internacional - Silvio Teixeira

    1. PANORAMA HISTÓRICO INTERDISCIPLINAR DA PROTEÇÃO CONTRA OS RISCOS QUÍMICOS NO AMBIENTE DE TRABALHO ATÉ A GÊNESE DA LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO

    No capítulo que se inicia, propõe-se uma abordagem histórica da evolução do pensamento e dos impactos relacionados à saúde dos trabalhadores, a partir do advento de uma concepção mecanicista de mundo, pela civilização ocidental, na Idade Moderna.

    Uma vez identificado o Humanismo como o marco filosófico de uma nova visão de mundo, a obra paradigmática de Bernardino Ramazzini sobre as doenças dos trabalhadores será contextualizada como pertencente a uma visão de mundo distinta da que predominaria nos séculos seguintes, pois o racionalismo de René Descartes e a sua convicção na razão humana como matriz de todo conhecimento serviu de fonte para a consolidação de um paradigma mecanicista que ditaria a marcha do desenvolvimento das ciências, das tecnologias e dos modos de produção nos próximos séculos.

    Nesse sentido, observa-se que a ciência mecanicista ocidental representou um impacto não apenas na história de sua civilização, mas também, em perspectiva mais ampla, no rumo de toda a humanidade e na história do próprio planeta. É preciso pontuar esse fato e suas consequências no que tange à evolução da ciência química, num período curto, porém marcante de seu desenvolvimento, tendo em vista que ela pode ser identificada como um catalisador de matriz técnica para a Revolução Industrial. Dentro dessa perspectiva, deve-se, pois, compreender os impactos ocasionados pela adoção de novas tecnologias no contexto produtivo, cada vez mais letais aos seres humanos, bem como as reivindicações, revoltas e respostas da nascente classe proletária.

    Nesse ponto, cumpre identificar que o modelo fragmentado das ciências e a visão da natureza como uma externalidade a ser apropriada pela economia ocasionaram uma mudança significativa no tempo das técnicas e das ciências. Enquanto a economia, a química, a física, a política e a tecnologia desenvolveram-se e adaptaram-se dentro de uma crença no progresso e na acumulação de metais, capitais e conhecimento, servindo aos interesses de um modelo de produção, os mesmos passos não foram seguidos em igual velocidade pela saúde, pelo direito e pelas ciências da natureza¹.

    As respostas da medicina aos adoecimentos ocasionados por esse modelo de exploração dos seres humanos ainda eram incipientes, mas serão pontuadas por ocasião do desenvolvimento da Higiene Industrial. A questão social, assim, emerge nesse contexto, em que o direito também demoraria muito para superar as amarras civilistas que concebiam a propriedade — da qual fazia parte o poder de exploração da força de trabalho — como um dado praticamente absoluto: o surgimento das primeiras regulamentações internacionais sobre o trabalho humano merece uma análise contextualizada, até que seja traçado um panorama da tecnologia dos direitos sociais como uma alternativa ao paradigma mecanicista no plano jurídico.

    1.1 O HUMANISMO, O RENASCIMENTO, A REVOLUÇÃO CIENTÍFICA E OS PRIMÓRDIOS DOS ESTUDOS RELACIONADOS AO ADOECIMENTO OCUPACIONAL

    O movimento filosófico e literário caracterizado como Humanismo representou uma mudança significativa em relação a alguns dogmas medievais relativos ao conhecimento. Porém, conforme será constatado, ainda não concebia a natureza como uma máquina a ser domesticada pela ciência a serviço da propriedade individual e da soberania estatal.

    O papel de Leonardo da Vinci (1452-1519) cumpre ser destacado, não apenas por seus inventos e obras artísticas, mas também pelo desenvolvimento de uma nova abordagem empírica da qual fazia parte a observação sistemática da natureza, o raciocínio e a matemática,² o que se assemelha muito ao moderno método científico. É válido ressaltar, porém, que era

    Radicalmente diferente da ciência mecanicista que surgiria dali a dois séculos. Era uma ciência das formas, qualidades e processos de transformação orgânicos, que mostra alguns paralelos surpreendentes com nossos sistemas e teorias da complexidade contemporâneos.³

    Dentre os pensadores humanistas, alguns deles propuseram reflexões de forma a gestar uma sociedade ideal, passando a ser conhecidos como Utopistas. O principal expoente dessa corrente de pensamento foi Thomas Morus (1478-1535), cuja principal obra, Utopia, foi publicada em 1516. Cumpre esclarecer que, nesse modelo de sociedade, ainda não se cogitava banir a escravidão:

    Todos os escravos são submetidos a um trabalho contínuo, e trazem correntes. Os que são tratados, porém, com mais rigor, são os indígenas, que são tidos como os mais miseráveis dos celerados, dignos de servir de exemplo aos outros por uma pior degradação.

    É, porém, apenas com Nicolau Copérnico (1473-1543) que se inicia de fato a Revolução Científica,⁵ a partir da revogação da concepção geocêntrica que foi aceita por cerca de um milênio na Europa Ocidental. Johannes Kepler (1571-1630) formulou as leis empíricas sobre movimentos planetários, sendo também o primeiro a utilizar o termo entre aspas no mesmo sentido que a concepção aristotélica, pertencente ao domínio da matemática.⁶

    Aceitam os historiadores que o ano de 1492 constitui-se como o marco da Era Moderna, embora sua gestação datasse do nascimento das cidades medievais europeias.⁷ O despertar do movimento humanista a partir do século XIV, de cunho antropocêntrico e caracterizado por uma maior liberdade intelectual, abriu portas para que as artes e as ciências ganhassem novamente impulso na Europa Ocidental.⁸ Em relação ao seu desenvolvimento técnico, a invenção da imprensa em meados do século XV significou um avanço decisivo.⁹

    O Renascimento, por sua vez, consistiu numa série de respostas políticas, socioeconômicas e culturais adotadas por países europeus, as quais traziam, segundo Jean Delumeau, principalmente a crítica do pensamento clerical da Idade Média, a recuperação demográfica, os progressos técnicos, a aventura marítima, uma estética nova, um cristianismo reelaborado e rejuvenescido.¹⁰

    Dessa forma, nota-se que os valores renascentistas representam não apenas a retomada de concepções da Antiguidade Clássica greco-romana ou uma ruptura simples com a escolástica, mas sim uma dialética entre ambas, de modo a conceber o ser humano como portador de um eco ou um reflexo da dignidade de Deus, cuja presença se impõe ainda como o ponto de fuga, onde se encontram, no horizonte, todas as significações e todos os valores da realidade humana.¹¹

    Nesse período, como resultado do desenvolvimento das ciências, do mercantilismo e da expansão marítima, houve um incremento das atividades relacionadas à mineração, à manipulação de metais nobres e às atividades marítimas. O desenvolvimento de novas tecnologias implicaria, por conseguinte, na criação de riscos e de agravos adicionais à saúde humana, razão pela qual será privilegiada a análise das respostas da medicina renascentista dirigida aos trabalhadores no contexto da corrida mercantilista.

    A primeira obra inteiramente dedicada aos riscos ocupacionais foi escrita em 1473 (e editada em 1524) por Ulrich Ellenbog (1440-1499) e dirigida aos ourives de Augsburg. Ela tratava dos riscos relacionados ao trabalho de ourivesaria e apresentava advertências sobre como mitigar danos à saúde, sobretudo em relação aos vapores de prata, mercúrio e chumbo. ¹² Embora a Antiguidade tivesse conhecido estudos sobre o efeito de tais metais (Hipócrates, Plínio e Galeno), a obra de Ellenbog é significativa por ser a primeira a tratar do envenenamento ocupacional causado por metais.¹³

    Em relação aos marinheiros, ainda no século XV, Johannes de Vigo elaborou um capítulo inteiro dedicado à febre contraída por esses trabalhadores, texto que representou uma importante contribuição à Medicina do Trabalho.¹⁴ Nesse sentido, observa-se que o século XVI assistiria a uma profusão de obras relacionadas à saúde dos marinheiros, tendo sendo publicado em 1598 o primeiro tratado inglês relacionado à Medicina Naval.

    O desenvolvimento da anatomia, da fisiologia e da patologia humanas contribuiu de maneira significativa para a compreensão das doenças e sua cura,¹⁵ destacando-se Andreas Vesalius (1514-1564), como precursor da moderna anatomia, além de Miguel Servet (1509-1553) e Willian Harvey (1578-1657), responsáveis pela descrição da circulação sanguínea.¹⁶

    No ambiente de trabalho, é relevante a publicação, em 1556, da obra De re metallica (Dos Metais), de forma póstuma, por Georgius Agricola (Georg Bauer), que revelava as péssimas condições dos trabalhadores em minas subterrâneas, dando destaque a asma dos mineiros¹⁷ e identificando, já naquela época, possibilidades de se evitarem problemas como esses, a partir de tratamentos realizados não apenas como uma questão médica, mas sim, como questões de:

    Natureza político-organizacional e tecnológica, que se expressavam no tipo de processo de trabalho utilizado. A modificação de tais processos, ressalta Agricola, acrescida da introdução de meios para melhorar a ventilação das minas, poderia proteger os trabalhadores.¹⁸

    Theofrastus Bombastus von Hohenhiem, conhecido como Paracelso (1493-1541), publicou, em 1567, a obra "Von der bergsucht und anderen Bergkrankheitem",¹⁹ relacionada às moléstias associadas a trabalhadores das minas e fundições, tratando mais especificamente sobre doenças pulmonares que acometiam os mineiros, dentre elas a mala metallorum, enfermidade característica de fundidores e metalúrgicos, causada pelo mercúrio.²⁰ Sobre este último metal, objeto de investigações justamente por conta de agravos à saúde de mineiros, foram também realizados estudos por Jean François Fernel (1497-1558) e Gabrielle Falópio (1523-1562).²¹

    Ademais, é válido ressaltar que, ainda no que diz respeito à saúde dos mineiros, vários outros trabalhos foram realizados nos séculos XVI e XVII, com destaque para os estudos sobre efeitos de fumos e vapores realizados por Martin Pansa (1580-1626), Jan Baptista van Helmont (1580-1644) e Samuel Stockhausen (1619-1656).

    Georgius Wedelius (1645-1721), por sua vez, desenvolveu contribuições não apenas concernentes ao universo da mineração, mas também relativas a trabalhadores que manipulavam gesso, a soldadores e a sapateiros.

    Cumpre ressaltar, por fim, que embora já existisse uma literatura médica ocupacional no período, a administração da saúde e os sistemas de higiene permaneceram similares aos do período medieval e as ações de saúde relacionadas ao trabalho permaneciam muito restritas²², conforme ressalta René Mendes. Apenas na passagem do século XVII ao XVIII, seria realizada, na Itália, uma grande sistematização do panorama das doenças ocupacionais em distintas atividades.

    1.2. O HUMANISMO DE RAMAZZINI

    Bernardino Ramazzini (1633-1714) , ao publicar De Morbis Artificum Diatriba (as doenças dos trabalhadores), em 1700, faz uma advertência à sua própria obra no prólogo, quando escreve: proclamas que vais ensinar uma matéria nova, os sábios acorrerão a ti ávidos e curiosos. Porém, mesmo diante do fato de que suas páginas poderiam se tornar embalagens de peixe, pimenta ou cheiroso cumim, ao menos estariam nas (escuras) oficinas onde nasceste.²³ Trata-se de uma obra paradigmática sobre o estudo das moléstias no ambiente de trabalho, fruto de observações e análises do autor, como médico, sobre doenças que acometiam os trabalhadores em seus ofícios.

    Para Rene Mendes e William Waissmann, trata-se de um divisor de águas na história do conhecimento sobre doenças relacionadas ao trabalho,²⁴ que apresentou seu primeiro tratado completo, de modo a tornar-se uma grande referência para a área até o século XIX, ocasião em que a Revolução Industrial traria novas perspectivas a respeito dos problemas sanitários.²⁵

    Dentre as mais de cinquenta profissões citadas, várias delas são relacionadas a riscos químicos, dentre as quais encontram-se as atividades de mineiros, oleiros, químicos, estanhadores, vidraceiros, pintores, trabalhadores do enxofre, gesseiros, farmacêuticos, cloaqueiros, azeiteiros, trabalhadores do fumo e do amido, vinhateiros, peneiradores, joalheiros, bronzistas, ladrilheiros e poceiros, dentre outras com potenciais prejuízos à saúde humana causados por agentes químicos.

    A importância da obra de Ramazzini revela-se: 1) pela sua preocupação e o compromisso com uma classe de pessoas habitualmente esquecida e menosprezada pela Medicina²⁶; 2) pela determinação social da doença²⁷; 3) por sua contribuição metodológica ao exercício da Medicina, relacionando-a ao estudo da literatura, à inspeção in loco, à prática da história (anamnese ocupacional) associada à análise do perfil epidemiológico; 4) bem como pela identificação da natureza e do grau de nexo entre doenças e trabalho, enfatizando já àquela época a importância da prevenção primária.²⁸

    Além disso, o critério empírico de classificação de doenças já reunia elementos para a sistematização da Patologia do Trabalho em torno da diferenciação entre doenças profissionais (tecnopatias) e doenças adquiridas pelas condições em que o trabalho é realizado (mesopatias).²⁹

    Outra variável, modernamente resgatada pelo campo da Saúde do Trabalhador, como se verá adiante, revela-se na compreensão de fatores relacionados ao território, a exemplo da explanação acerca das doenças dos poceiros:

    Existe em Módena outra classe de poceiros que não cava no verão e sim no meados do inverno; trata-se de poços muito diferentes dos demais, porque se obtêm fontes de água viva, pura e transparente […] Esse trabalho é sumamente penoso e sujo; os operários têm que permanecer quase um mês nos poços e no inverno, como já disse, porque no verão não querem fazer o trabalho, por causa das exalações quentes e esguichos frios; no inverno, ao contrário, vivem como em porões, pela grande concentração do calor, e podem ter luz acesa, ao passo que no verão a fumaça das emanações a apaga. E ali, pela faina de cavar ou pelo calor reinante, ficam todos molhados de suor e não podem, mais tarde, deixar de sentir as incomodidades e contrair graves doenças que provêm de uma transpiração perturbada. Os poceiros costumam cair doentes do peito, fluxões e outras afecções; na sua maioria são caquéticos em consequência da má alimentação que a sua pobreza lhes proporciona, tomam um aspecto amarelamento, e quando chegam aos quarenta anos ou cinquenta despedem-se de sua profissão, e ao mesmo tempo, da vida, pois é mísera a condição desses artesãos.³⁰

    A obra chama a atenção também pelo seu viés humanista e por uma leitura que, hoje em dia, poderia ser classificada como interdisciplinar, com viés holístico sobre as causas do adoecimento, que incluíam o estudo das relações com o meio ambiente.³¹

    Importa salientar ainda o contexto histórico em que a obra de Ramazzini tomou corpo, podendo ser concebida como dissonante do método cartesianismo de matriz francesa, que vinha se consolidando como uma ciência nova nos estados da península itálica desde as orações inaugurais de Giambattista Vico (1668-1744), na Universidade de Nápoles, entre 1699 e 1707, compilada na primeira publicação de Principi di Scienza Nuova d´intorno ala comune natura dele nazioni (Princípios de uma nova ciência relativa à natureza comum das nações). ³²

    Observa-se, portanto, que, no que diz respeito ao paradigma mecanicista, alguns apontamentos são relevantes pela grande influência que exerceria na filosofia, nas ciências, na tecnologia e, por conseguinte, na abordagem (dissociada) entre corpo e mente. Assim, a revolução científica que acabara de ser impulsionada por Galileu Galilei e desenvolvida mais a fundo no plano epistemológico por René Descartes, passava a propugnar a apreensão da natureza como algo mecânico, composto por um sistema fechado e regulado por leis físicas.³³

    1.3 O PARADIGMA MECANICISTA

    Cumpre esclarecer o conceito de paradigma proposto por Thomas Khun, a partir de suas realizações no campo teórico, tendo em vista que elas: a) representaram inovações que conseguiram atrair um número duradouro de partidários, afastando-se de outras interpretações; b) e foram abertas o suficiente para permitir que todas as espécies de problemas fossem resolvidas pela comunidade científica praticante.³⁴ A resultante das realizações científicas obtidas com base nesse paradigma, denomina-se ciência normal.³⁵

    O mundo do século XVI até então era caracterizado por uma vastidão de florestas, pastagens e instituições comunais, compartilhadas coletivamente, sendo que tais estruturas comunitárias eram conhecidas na Inglaterra como "commons". ³⁶ Essa realidade começou a mudar a partir do desenvolvimento de condições, na Europa Ocidental, que permitiram separar as comunidades humanas da natureza e de uma certa relação simbiótica com a terra.

    Dessa forma, o paradigma mecanicista adotado a partir do século XVI surge como um divisor de águas, isto é, trata-se não apenas de mais uma divisão da história das relações humanas e socioeconômicas, que viria a ser conhecida como a Idade Moderna, mas de um marco também na própria história geológica do planeta.

    Em quatro domínios de análise, o paradigma mecanicista mostra-se evidente quando se constata que: a) o ser humano, por meio da ciência, pôde compreender melhor os processos naturais; b) a tecnologia possibilitou a apropriação e transformação da natureza; c) as teorias sociais e jurídicas ofereceram, por sua vez, institutos jurídicos relacionados à propriedade individual e à soberania estatal;³⁷ d) a economia passou a adotar ferramentas para transformação definitiva da natureza em commodity (mercadorias).

    Por uma questão de método (não propriamente cartesiano), desdobrar-se-á essa análise em três pontos, que tratarão, em primeiro lugar, da associação entre ciência e tecnologia; num segundo plano, da correlação entre teorias socioeconômicas e políticas, além de uma questão mais específica relacionada ao direito (item 1.1.3.1); e, por fim, em terceiro lugar, das limitações da ciência mecanicista ocidental em face da medicina chinesa tradicional (1.1.3.2). No item 1.1.4, será estudada a evolução da ciência química em específico, tanto por um recorte que contempla a compreensão de que o desenvolvimento da química representou um passo importante (sob a ótica do desenvolvimento capitalista) para o advento da Revolução Industrial, quanto por um recorte que antecipa, em dada medida, o estudo dos riscos químicos no ambiente do trabalho, no sentido de compreender a evolução dos riscos à saúde humana de acordo com o avanço dos sistemas tecnológicos correspondentes.

    1.3.1 A CIÊNCIA E TECNOLOGIA MECANICISTA

    A visão mecanicista de mundo integra-se, a partir de então, de forma radical no pensamento da modernidade ocidental capitalista.³⁸ De forma oposta, cumpre adiantar que os princípios físicos do mundo newtoniano só começaram a conhecer limitações a partir da termodinâmica e das teorias relacionadas ao eletromagnetismo no século XIX, sendo a Teoria da Relatividade de Einstein, no início do século XX, de fato, o grande ponto de partida.

    A fragmentação das ciências, nesse momento, passou a ser a tônica,³⁹ sendo formadas a anatomia, a embriologia, a botânica, a fisiologia, a química, a zoologia, a geologia, a mineralogia, dentre outras. Hilton Japiassu analisa da seguinte forma essa tendência:

    O processo de desintegração do saber se acelera. A ciência unitária explode como um obus. E seus fragmentos continuam a dissociar-se em sua trajetória. Acentua-se a divisão do trabalho epistemológico imposta pela força das circunstâncias. Tudo se passa como se o aprofundamento de um domínio qualquer do saber só fosse possível ao preço de uma restrição da superfície do campo estudado. A fragmentação, produto da divisão das ciências, torna-se esmigalhamento.⁴⁰

    A ênfase na quantificação foi incorporada por Galileu Galilei.⁴¹ Nesse sentido, a revolução galileliana do mecanicismo, fundada sobre a aliança da matemática moderna e da física experimental, reduz o universo a um vasto conjunto de corpúsculos materiais, cujas ações e reações obedecem a leis precisas e rigorosas.⁴²

    À René Descartes é comumente atribuída concepção da natureza como uma máquina separada da mente humana, pelo famoso excerto penso, logo existo, presente na quarta parte do Discurso do método. A ela, porém, antecede uma outra máxima: de sorte que este eu, isto é, a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, e até mais fácil de conhecer que ele, e, mesmo se o corpo não existisse, ela não deixaria de ser tudo o que é.⁴³ No capítulo quinto, ao descrever a sequência de leis estabelecidas por Deus na natureza, a separação entre mente e corpo é descrita da seguinte maneira:

    Pois, enquanto a razão é um instrumento universal, que pode servir em todas as circunstâncias, esses órgãos necessitam de alguma disposição particular para cada ação particular; daí ser moralmente impossível que haja numa máquina a diversidade suficiente de órgãos para fazê-la agir em todas as ocorrências da vida da mesma maneira que nossa razão nos faz agir […] isto não prova somente que os animais têm menos razão que os homens, mas que não têm absolutamente nenhuma.⁴⁴

    Em relação à física, Descartes a descreve como uma filosofia prática, uma forma de se chegar a conhecimentos úteis à vida, distinguindo-a da filosofia meramente especulativa, para nos tornarmos como que senhores e possessores da natureza.⁴⁵

    Francis Bacon (1561-1626), por sua vez, estende o domínio do homem sobre a natureza, consagrando o método empírico da ciência, baseado na indução verdadeira⁴⁶ e na demonstração experimental, diferenciando-se, assim, do projeto racionalista cartesiano, preponderantemente dedutivo. Sua principal obra, entitulada Novum Organum, de 1620, traz uma referência de oposição à obra de Aristóteles (Organum). Cita-se essa passagem, no Livro I, Capítulo CXII dos aforismos sobre a interpretação da natureza e o reino do homem:

    Os homens, até agora, pouco e muito superficialmente se têm dedicado à experiência, mas têm consagrado um tempo infinito a meditações e divagações engenhosas. Mas se houvesse entre nós alguém pronto a responder às interrogações incitadas pela natureza, em poucos anos seria realizado o descobrimento de todas as causas e o estabelecimento de todas as ciências.⁴⁷

    Sua influência foi significativa não apenas nos métodos científicos, mas também na filosofia e na adoção de um projeto político, já que conhecimento e poder representavam a mesma coisa naquele momento. No aforismo CXXVII do Livro I, Bacon esclarece sobre a extensão do método à lógica, à ética e à política.⁴⁸. Acerca do legado de sua obra, observa-se que: foi também conhecido como utilitarista por causa da sua concepção de utilidade do conhecimento. Seu discurso estava fundamentado não na contraposição, mas na complementaridade de verdade e utilidade.⁴⁹

    Sob o espírito baconiano, um grande desenvolvimento de métodos e operações nas artes mecânicas foi realizado por engenheiros, arquitetos e artesãos, mas longe do que se considerava a ciência oficial do século XVII, uma vez que, à época, o empirismo de Bacon não era associado à ciência mecanicista, mas sim ao naturalismo renascentista e à magia natural.⁵⁰ Paolo Rossi, historiador italiano, esclarece, nesse sentido, que embora o progresso tenha ocorrido por uma insistência de tipo baconiano na observação e nos experimentos,⁵¹ isso não significa que ele tenha sido o pai da ciência moderna, mas sim um propulsor das artes mecânicas, como o magnetismo e a eletricidade.⁵²

    É importante destacar que a nova ciência mecanicista terá impulso significativo na Inglaterra a partir da fundação da Royal Society, em 1660, sendo que, um século depois, seria desenvolvida a máquina a vapor. A partir de então a terminologia leis passou a ser utilizada em vários campos do conhecimento.⁵³

    A formulação matemática completa da concepção mecanicista seria criada por Isaac Newton (1642-1727), que sintetizou os trabalhos de Copérnico, Kepler, Galileu, Bacon e Descartes, de modo a tornar a física newtoniana o grande paradigma que dominaria os séculos XVII e XIX.⁵⁴ Principia, de 1687 (Philosophiae naturalis principia mathematica), consiste na grande obra de Newton, dividida em três volumes (número I e II sobre o movimento dos corpos e III sobre o sistema do mundo). No último Livro, ao tratar das regras de raciocínio em filosofia, a 4ª regra tem por objetivo evitar que o argumento da indução seja iludido por hipóteses, da seguinte maneira:

    Na filosofia experimental, devemos considerar as proposições inferidas pela indução geral a partir dos fenômenos como precisamente ou muito aproximadamente verdadeiras, apesar de quaisquer hipóteses contrárias que possam ser imaginadas, até o momento em que outros fenômenos ocorram pelos quais elas possam ou ser tomadas mais precisas, ou fiquem sujeitas a exceções.⁵⁵

    O equivalente mecanicista nas teorias sociais e políticas foi representado tanto pela adoção da visão atomista da sociedade por John Locke, como pela soberania estatal de Thomas Hobbes.

    A economia, por sua vez, passa a ser artificialmente concebida como uma ciência exata, caracterizada por um extremo reducionismo e linearidade, com excessiva ênfase na quantificação,⁵⁶ produzindo, assim, distorções que não afetarão apenas debates acadêmicos, mas sim consequências desastrosas para a história da humanidade. A crítica de uma divisão mecanicista de sociedade e economia ganhará adeptos mais significativos somente a partir do desenvolvimento da teoria socialista de Marx e Engels, desenvolvida com base no pressuposto de que a transformação do mundo pelas ideias é uma necessidade.

    A teoria do direito também encontra sua expressão relacionada ao paradigma mecanicista, por meio de um absolutismo jurídico, tendo se destacado no século XVII, Hugo Grotius e Jean Domat.⁵⁷ Nesse contexto, foi desenvolvida uma teoria que, em linhas gerais, dotava a propriedade como um direito individual, tendo por objetivo a dominação da natureza. O Estado Nacional Absolutista nascente visava justamente a garantir esse domínio por meio do direito civil.

    1.3.2 UM CONTRAPONTO: OS LIMITES DA CIÊNCIA MECANICISTA DE MATRIZ OCIDENTAL

    O caso da medicina chinesa merece algumas considerações em relação ao paradigma mecanicista e suas limitações. O país manteve-se intacto em relação à dominação intelectual de matriz mecanicista ocidental até o início do século XX, ocasião em que a ciência ocidental foi importada por uma geração incomodada com a suposta superioridade material europeia. Passou-se, então, a marginalizar antigas e consagradas tradições como a medicina herbórea, a acupuntura, a moxibustão, a dualidade yin/yang e a teoria do chi, que perduraram até 1954, ocasião em que o governo reintroduziu a medicina tradicional, ainda que não oficialmente, de forma a estimular a competição com os preceitos ocidentais. ⁵⁸

    Diante de um movimento inverso da ciência ocidental no início do século XXI, Paul Feyerabend, ao procurar respostas em métodos tradicionais, afirma que: a lição a ser aprendida é que ideologias, práticas, teorias e tradições não científicas podem se tornar rivais poderosos e também revelar deficiências importantes da ciência se lhes for dada uma justa oportunidade para competir.⁵⁹ Se é verdade que a medicina ocidental ajudou a erradicar parasitas e doenças infecciosas, isso não a torna a única tradição apta a oferecer boas soluções, como comprova a medicina chinesa. Nesse sentido, o ideal é que se possa conceber a ciência ocidental como uma ciência entre muitas.⁶⁰

    O reino da ciência ocidental sobre o globo ocorre, assim, não pelo método de sua racionalidade inerente, mas pelo uso do poder, pela consequente imposição do modo de vida das nações colonizadoras e pela criação dos mais eficientes instrumentos de extermínio.⁶¹

    Vale aqui adiantar que, no último quarto do século XX, ganhará impulso uma concepção mais abrangente, de matriz holística e ecológica, que privilegiará o pensamento sistêmico e a metáfora do mundo como uma rede, e não mais como uma máquina. Dentro dessa perspectiva, Fritjof Capra e Ugo Mattei propõem, no plano jurídico, uma mudança no paradigma de matriz mecanicista, adotando-se uma nova ecologia do direito, baseada num ordenamento ecojurídico.

    1.4 A EVOLUÇÃO DA CIÊNCIA QUÍMICA

    Vale dizer que, no século XVI, ainda não se questionava, na Europa Ocidental, a alquimia como uma verdadeira ciência. Ela fora difundida durante a Baixa Idade Média, a partir do século XII, por meio da influência árabe, e ajustada aos preceitos do cristianismo de acordo com uma leitura que resgatava a obra de Aristóteles, tendo sido fundamental nesse processo a contribuição de Alberto Magno (1193-1206), Tomás de Aquino (1225-1274) e Roger Bacon (1219-1292).⁶² Houve de início uma grande difusão das obras sobre alquimia, o que foi conhecido como uma verdadeira Idade de Ouro. Os preceitos dessa ciência começariam a ser questionados pela filosofia natural apenas no século XVII, a partir sobretudo das bases do método científico.

    A obra de Paracelso, dentro desse contexto, representa uma ruptura com o conhecimento de alquimia tradicionalmente aplicado à medicina, colocando ênfase na utilização de substâncias químicas como meio para se alcançar a cura, de modo a inaugurar, assim, um novo campo chamado de iatroquímica.⁶³

    O surgimento de um olhar da ciência moderna para a química surge a partir da publicação, em 1661, do livro O químico cético, de Robert Boyle (1627-1691), obra essa escrita em forma de diálogo. Refutações ao trabalho dos iatroquímicos, sobretudo de Paracelso, realizado um século antes aparece em vários trechos como os que seguem: pelo que encontrei mesmo eminentes autores (como R.Lully e Paracelsus), fazem mau uso da terminologia empregada, seja dando o mesmo nome a coisas diversas, ou uma nome a vários significantes⁶⁴; no último século, Paracelsus e outros empiristas impuros, como assim eles se refere, ao invés de filósofos, tiveram seus olhos vedados e seus cérebros perturbados com a fumaça de seus próprios fornos.⁶⁵

    Em relação ao que denomina químicos comuns ou vulgares, Boyle, o cético, problematiza que estes não foram capazes de conferir importância devida ao mercúrio, sendo que Paracelso em diversas vezes atribui essa relevância a alguns sais.⁶⁶ Ademais, Boyle afirma ainda: […] em seus escritos me deparo com discursos fantásticos e discursos ininteligíveis que frequentemente se tornam quebra-cabeças aos leitores, ao invés de expor com clareza alguns bons experimentos. ⁶⁷

    Antoine-Laurent Lavoisier (1743-1794) abriu espaços para a redefinição da química como ciência independente’, a partir da publicação, em 1789, do Tratado elementar de química", sendo considerado, assim, o pai dessa ciência na modernidade.⁶⁸ De fato, diante da concepção de paradigma proposto por Thomas Kuhn, Lavoisier concebeu um novo paradigma da ciência química, a partir dos questionamentos sobre a teoria flogística e o desenvolvimento da teoria da combustão pelo oxigênio, os quais permitiram uma reformulação tão radical dos princípios em questão que não seria um exagero falar em Revolução Química.⁶⁹

    A partir de então, o estudo e uso da química passou por um grande florescimento no século XIX da Europa Ocidental. Segundo Eric Hobsbawn:

    Sua expansão era dramática, especialmente na Alemanha, não apenas porque seu uso industrial parecesse não ter fim: de fertilizantes a produtos médicos e explosivos. Os químicos estavam a caminho de formarem mais da metade dos profissionais engajados nas ciências. As fundações da química como uma ciência madura haviam sido estabelecidas nos últimos 30 anos do século XVIII. Ela havia florescido desde então, e continuou desenvolvendo-se numa excitante fonte de ideias e descobertas em nosso período.⁷⁰

    Enquanto isso, as bases do desenvolvimento da termodinâmica estão relacionadas aos estudos de Nicolas Leonard Sadi Carnot (1796-1832). Um quarto de século depois, James Prescott Joule (1818-1889) mudou o curso da ciência ao mostrar que o calor e o trabalho são duas formas de energia.⁷¹

    Dessa forma, pode-se definir a termodinâmica como o estudo das transformações da energia ou ainda como a ciência dos processos irreversíveis,⁷² baseada em duas leis, sendo a primeira aquela preocupada em acompanhar as variações de energia, permitindo o cálculo da quantidade de calor que uma reação produz e prevendo que, caso uma reação ocorra, a energia total do universo permanece inalterada; e a segunda a que identifica que a direção natural do universo é ir da ordem para a desordem, da menor para a maior entropia,⁷³ entendendo-se por entropia o conceito que distingue os processos irreversíveis dos reversíveis.⁷⁴ É importante notar que a aplicação da termodinâmica no desenvolvimento tecnológico está relacionada aos trabalhos de Josiah Willard Gibbs (1839-1903) nos Estados Unidos.⁷⁵

    No Congresso de Karlsruhe, em 1860, foi apresentado o princípio de Avogadro, estabelecendo que o número de moléculas em amostras de gases diferentes de mesmo volume, pressão e temperatura é o mesmo.⁷⁶ Tal princípio permitiu, assim, que pudessem ser determinadas as massas atômicas relativas dos gases. Nesse sentido, Dmitri Ivanovich Mendeleev (1834-1907) percebeu, em 1869, que os elementos caiam em famílias com propriedades semelhantes quando eles eram arranjados na ordem crescente das massas atômicas, ⁷⁷ chamando a tal fenômeno de lei periódica. Sua tabela periódica relacionava, desse modo, as propriedades dos elementos em função de seus respectivos pesos atômicos.⁷⁸

    Por fim, ressalta-se que a teoria atômica da química viria a abrir caminho para a unificação conceitual da física e da química no século XX.⁷⁹

    1.5 OS IMPACTOS DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL NA SAÚDE E OS PRIMÓRDIOS DA HIGIENE INDUSTRIAL NA INGLATERRA

    Embora a tecnologia industrial tenha se expandido na Inglaterra do século XVII, a Primeira Revolução Industrial (aqui denominada simplesmente Revolução Industrial) é um fenômeno próprio do século XVIII, com repercussões mundiais no século seguinte.⁸⁰ Eric Hobsbawn situa o marco da Revolução nas transformações produtivas ocorridas na indústria do algodão, sendo que até aproximadamente 1830 tal setor concentraria indústrias e fábricas no sentido moderno da expressão.⁸¹ Para muitos, porém, o termo Revolução Industrial é atribuído a Friedrich Engels, que demarcou o início da história da classe operária na Inglaterra a partir da metade do século XVIII, também por parte dos operários algodoeiros.

    As máquinas a vapor marcaram o traço distintivo da Revolução Industrial, pois foram responsáveis pela possibilidade de produção em grande escala na indústria. Elas foram desenvolvidas por James Whatt em 1764, sendo que, neste mesmo ano, entram em operação as linhas de máquinas Jenny, de James Hargreaves.⁸² Logo após, em 1767, foi desenvolvida a spinning throstle, por Richard Arkwright (Kettenstuh, em alemão).

    Em 1785, Samuel Crompton desenvolveu a mule. A partir desse mesmo ano, as máquinas de vapor passam a acionar as máquinas de fiar, mudança que impulsionou de forma vertiginosa a produção em escala⁸³, de modo que toda a cadeia produtiva foi afetada. Houve alterações no sistema produtivo da lã, linho e seda e verificou-se a aceleração do processo em todos os setores industriais, o que acarretou uma busca ainda maior por carvão e ferro, levando ao desenvolvimento de uma indústria metalúrgica significativa. Também foram exploradas minas de estanho, cobre e chumbo, associadas à produção de vidro, resultando numa nova atividade industrial de compostos de cerâmica. Outras derivações industriais compreenderam a agricultura, as comunicações e o transporte (ferrovias e navegação a vapor).⁸⁴ Sobre essa fase, Engels afirma:

    A Inglaterra constitui o terreno clássico dessa revolução, que foi tanto mais grandiosa quanto mais silenciosamente se realizou. É por isso que a Inglaterra é também o país clássico para o desenvolvimento do principal resultado dessa revolução: o proletariado. Somente na Inglaterra o proletariado pode ser estudado em todos os seus aspectos e relações.⁸⁵

    Neste contexto de desenvolvimento tecnológico, os impactos da Revolução Industrial já se faziam sentir na classe trabalhadora, sendo mais evidentes em seu berço, a Inglaterra.

    O processo de enriquecimento da burguesia por meio da grande aceleração do ritmo de produção na atividade produtiva, organizado pela regulação de um Estado liberal, fortalecido pela consolidação das revoluções gloriosas, submeteu, no entanto, uma grande massa de trabalhadores a péssimas condições, situação que levou ao surgimento de uma classe social que carregava consigo a marca da insurreição, embora, de início, essa consciência de classe não fosse assim tão evidente.⁸⁶

    Com relação à saúde dos trabalhadores, lembra René Mendes que as condições de trabalho longo, penoso e perigoso e os ambientes de trabalho agressivos ao conforto e à saúde rapidamente produziram graves danos à saúde dos trabalhadores,⁸⁷ dentre os quais destaca-se toda a sorte de acidentes graves, mutiladores e fatais, provocados por intoxicações agudas e outros agravos,⁸⁸ impactando crianças de cinco anos e mulheres.

    Três médicos ingleses se destacaram nos primórdios da Revolução Industrial, por identificarem patologias associadas ao trabalho nas fábricas: George Baker, Charles Turner Thackrah e Percival Pott.

    George Baker (1722-1809) relacionou a utilização de chumbo na indústria do vinho de maçã ao surgimento da Cólica de Devonshire⁸⁹ em 1767.⁹⁰

    Charles Turner Thackrah (1795-1833), cuja principal obra foi publicada em 1831, utilizou-se de análises acerca das diferentes categorias econômicas e profissionais, valendo-se de instrumentos como o estudo de efeitos sobre a saúde (morbidade) e efeitos sobre a longevidade (mortalidade) para descrever as profissões com mortes mais precoces, tendo estimado que, somente em Leeds, morriam 450 pessoas por ano por acidentes ou outras causas relacionadas ao trabalho, desde doenças profissionais já reconhecidas como a silicose até impactos relacionados ao desgaste físico ou mental.⁹¹

    Percival Pott (1714-1788), que ao longo de suas pesquisas ressaltou a importância do estudo de toda a história profissional dos trabalhadores, tendo em vista o intenso movimento migratório e a dinâmica da mobilidade ocupacional da época,⁹² estabeleceu nexo causal entre a incidência de câncer escrotal à fuligem (doença que antes era relatada como de origem venérea),⁹³ descoberta que influenciaria a edição, em 1788, do Ato dos Limpadores de Chaminé (The Chimney Sweepers Act),⁹⁴ que proibia o trabalho de crianças menores de oito anos de idade em chaminés.⁹⁵

    Importa constatar que, do ponto de vista do Estado e da classe patronal, nenhuma concessão acabou sendo feita mesmo diante do quadro crítico relativo às cruéis condições de trabalho na pungente indústria nascente. Caso houvesse concessão, a legislação sobre o direito do trabalho, incluindo normas mais rígidas de proteção à saúde, teria sido adotada nas últimas décadas do século XVIII. Verifica-se que, de fato, a intervenção estatal na realidade social visou a impulsionar o capitalismo produtivo e/ou a reprimir, muitas vezes de forma violenta, as reivindicações obreiras, seja por meio de leis de condução coercitiva ao trabalho, seja por formas de liberação da compra e venda da força de trabalho, seja pela adoção do modelo liberal de negócio jurídico do Código Napoleônico de 1808. De forma mais ostensiva, foram impostas leis que reprimiam associação obreira, à exemplo da Lei Le Chapelier, na França. (1791).⁹⁶

    O que motivou, portanto, a edição das primeiras leis sobre o trabalho nas fábricas

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