Rotas, mapas & intercâmbios da História da Ciência
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Rotas, mapas & intercâmbios da História da Ciência - EDUC – Editora da PUC-SP
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Reitora: Maria Amalia Pie Abib Andery
EDITORA DA PUC-SP
Direção: José Luiz Goldfarb
Conselho Editorial
Maria Amalia Pie Abib Andery (Presidente)
Ana Mercês Bahia Bock
Claudia Maria Costin
José Luiz Goldfarb
José Rodolpho Perazzolo
Marcelo Perine
Maria Carmelita Yazbek
Maria Lucia Santaella Braga
Matthias Grenzer
Oswaldo Henrique Duek Marques
Copyright © 2020. Ana Maria Alfonso-Goldfarb e outros. Foi feito o depósito legal.
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP
Rotas, mapas & intercâmbios da história da ciência / orgs. Ana Maria Alfonso-Goldfarb... et al. - São Paulo : EDUC, 2020.
1. Recurso on-line: ePub
ISBN 978-65-87387-03-1
Disponível para ler em: todas as mídias eletrônicas.
Acesso restrito: http://pucsp.br/educ
Disponível no formato impresso: Rotas, mapas & intercâmbios da história da ciência / orgs. Ana Maria Alfonso-Goldfarb... et al. - São Paulo : EDUC, 2020. ISBN 978-65-87387-04-8.
1. Ciência - História. 2. Ciência - Pesquisa. 3. Ciência - Aspectos sociais. I. Ana Maria Alfonso-Goldfarb.
CDD 509
507.1
Bibliotecária: Carmen Prates Valls – CRB 8A./556
EDUC – Editora da PUC-SP
Direção
José Luiz Goldfarb
Produção Editorial
Sonia Montone
Editoração Eletrônica
Gabriel Moraes
Waldir Alves
Capa
Gustavo Castro Duarte
Administração e Vendas
Ronaldo Decicino
Produção do e-book
Waldir Alves
Revisão técnica do e-book
Gabriel Moraes
A preparação e a revisão dos textos são de responsabilidade dos organizadores e dos autores do livro.
Rua Monte Alegre, 984 – sala S16
CEP 05014-901 – São Paulo – SP
Tel./Fax: (11) 3670-8085 e 3670-8558
E-mail: educ@pucsp.br – Site: www.pucsp.br/educ
FrontispícioPrefácio
Praticar a ciência com rigoroso escrúpulo e reivindicar o valor social da ciência, nas circunstâncias atuais, passou a ser um ato político de primeira linha.
Entramos na era das Fake News e da pós-verdade das quais nem a ciência se livrou. Por que isso se dá? O tema das fake News e da pós-verdade perambula hoje de boca em boca, sem que aqueles que se pronunciam sobre a questão, inclusive intelectuais e filósofos, se deem sequer ao trabalho de estudar mais de perto sobre o que estão falando.
Tenho defendido que, longe de ser uma era que abraça e enlaça quaisquer formas de atividades humanas, Fake News, como o próprio nome diz, é um problema que diz respeito às notícias que nos chegam no dia a dia, de modo que é nesse campo, o do jornalismo em especial, que a pós-verdade atua. Todo o zumbido bastante intenso, em torno do problema deve-se ao fato de que as consequências da pós-verdade recaem sobretudo sobre a política, lá onde se localizam os poderes decisórios que, nas sociedades atuais, afetam todas as facetas da vida humana. O que está sucedendo, na realidade, não é uma negação da verdade. Trata-se, isto sim, de um contexto em que a verdade não mais importa.
Se seguirmos o pensamento de Hanna Arendt, somos levados a inferir que a política, com maior ou menor intensidade, sempre foi a arte da mentira, ou, pelo menos, do desapego à verdade. Isso significa que as Fake News sempre existiram. O que mudou agora, com a enxurrada ininterrupta de notícias e compartilhamentos nas redes sociais digitais, é que a notícias, na maior parte das vezes inverídicas, passaram a fervilhar e se disseminar em ritmo exponencial. Como se disseminam?
Longe de ser fruto apenas de uma força diabólica que movimenta as redes, existe um fator psicológico humano que também é responsável por esse estado de coisas. Os seres humanos tendem a ser homofílicos, ou seja, só apreciam se espelhar na sua própria imagem, em outras palavras, vivem em bolhas. Assim, diante das variadas versões de notícias que recebem, compartilham com maior frequência aquelas que se coadunam com suas crenças, mesmo que sejam infundadas. Isso leva a uma disseminação indiscriminada do falso, especialmente porque quanto mais se recebe confirmação de uma crença, mais ela se fortalece.
Além de produzir efeitos profundamente nefastos na política, a era da pós-verdade não tem deixado incólume nem mesmo a ciência. Evidentemente não se trata de reivindicar uma noção de verdade absoluta para a ciência. Longe disso, pois a ciência se rodeia de protocolos para chegar a resultados confiáveis, sem que, com isso, possa alardear estar de posse da verdade. É certo que existe nela a preocupação e a busca de uma veracidade nas conclusões que são extraídas de processos de pesquisa, esta que se constitui no mais legítimo alimento da ciência.
O número de outubro-2019 da Revista Pesquisa da Fapesp contém alguns artigos bastante relevantes para refletirmos sobre o modo como a pós-verdade afeta a maneira como as pessoas passaram a considerar o papel da ciência. Sobre isso, a Revista Fapesp apresenta estatísticas até mesmo alarmantes diante de uma verdadeira crise de confiança vivida pela ciência em sociedades polarizadas nas quais, notícias falsas e teorias da conspiração se propagam com rapidez pelas redes sociais. Não é casual que, nesse quadro, o conhecimento científico tenha se tornado alvo frequente de ataques que são disseminados em grupos com crenças ou interesses políticos ou econômicos que a ciência contraria. Dizer que a situação é alarmante não é um eufemismo quando se sabe que até mesmo pessoas com boa escolaridade hoje defendem o terraplanismo e negam a crise climática, contra todas as evidências fornecidas pela ciência.
Desde 2016, quando o tema da pós-verdade passou a ocupar até mesmo as manchetes dos jornais, cientistas puseram-se a campo para defender a ciência de possíveis ataques quanto à sua adesão à pós-verdade. Em oposição, infelizmente, há epistemólogos que se dizem pós-modernos e usam esse rótulo para denunciar veementemente a intimidade da ciência com a pós-verdade.
Tal denúncia só pode vir daqueles que veem de longe o fazer da ciência, negligenciando o fato de que a ciência é feita por pessoas vivas que lutam cotidianamente pelo avanço do conhecimento em laboratórios, em pesquisas básicas, empíricas ou exploratórias, inclusive revolvendo as nervuras do tempo para a recuperação da história da ciência.
É incontável o número de pontos no planeta em que pesquisadores se aglutinam para levar a cabo com ética e rigor metodológico as metas que sua área de pesquisa lhes impõe. Exemplo disso encontra-se bem perto de nós, no Brasil, no Estado de São Paulo, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Trata-se do Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência que, com renome nacional e internacional, comemora seus admiráveis vinte anos de existência.
O livro que aqui se apresenta é uma espécie de ponta do iceberg daquilo que vem sendo amealhado, ano após ano, em termos de projetos, descobertas, publicações, atividade didática e formação de pesquisadores. Além de funcionar como uma parte de um todo maior, o livro em si exemplifica o trabalho fino da história da ciência, na delicadeza de seus detalhes, na cautela de suas buscas, na ousadia de seus achados.
Precisamos aprender a apreciar, louvar e tomar como exemplo grupos de pesquisa que dão dignidade à ciência. As instituições acadêmicas precisam disso. O Brasil precisa disso.
Lucia Santaella
Professora titular na pós-graduação em Comunicação e Semiótica e coordenadora da pós-graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (PUC-SP), Doutora em Teoria Literária pela PUC-SP e Livre-docente em Ciências da Comunicação pela USP.
Nota dos organizadores
O Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo foi criado em 1997 como um dos primeiros programas da América Latina na área. Desde então, centenas de candidatos obtiveram os títulos de mestrado e doutorado, além de dezenas de bolsistas de pós-doutorado que optaram por conduzir seus projetos conosco, financiados pelas mais prestigiadas agências de apoio à pesquisa.
Nosso Programa e o centro de pesquisa afiliado – Centro Simão Mathias de Estudos em História da Ciência (Cesima) – hospedam um número considerável de projetos de pesquisa, entre os quais os financiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Com foco em assuntos diversificados, incluindo história das ciências da matéria, organização do conhecimento, trânsito global e local de ciência e tecnologia, papel da história da ciência na educação e humanidades digitais, entre outros, nossos projetos deram origem a uma rede global de intercâmbio com universidades e centros de pesquisa mais prestigiados do mundo.
Em 2017, comemoramos o vigésimo aniversário dessa jornada que nos deixa orgulhosos. Nessa ocasião, realizamos um colóquio internacional com nossos parceiros de muitos anos e também com novos, na Europa, América do Norte e do Sul.
Agora, queremos oferecer dois presentes de aniversário a todos os nossos amigos e à vasta comunidade de leitores e pesquisadores interessados na história da ciência e da tecnologia. Um deles é a Biblioteca Cesima Digital (http://cesimadigital.pucsp.br/), um grande repositório de documentos essenciais para pesquisas sobre a história da ciência e da tecnologia desde tempos remotos. O segundo é este livro, que traz uma seleção das apresentações tão gentilmente compartilhadas por nossos colegas no colóquio de 2017.
Embora o futuro seja sempre incerto, estamos seguros de nossas contribuições para o treinamento de uma nova geração de centenas de pesquisadores, para o estado da arte em nosso campo de especialização e para a comunidade global de historiadores da ciência.
Venha compartilhar nossa celebração!
Sumário
1 | A tale of two batteries
Hasok Chang
2 | A manuscript Japanese world map (1886) from the Collection in custody of the Institute of Brazilian Studies (IEB), University of São Paulo, Brazil: De-centred ways of knowledge transmission
Vera Dorofeeva-Lichtmann
3 | La farmacia naval argentina: notas para una reflexión histórico-social
Celina A. Lértora Mendoza
4 | Antiscorbutic medicines advertised in Stuart England
Vera Cecilia Machline
5 | How traditional Chinese materia medica entered modern medicine, 1956-1977
Georges Métailié
6 | Muito pouco mais sobre Galileu e as ciências intermediárias
Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento
7 | Pharmaceutical Patents in México at the beginning of the 20th century
Mariana Ortiz Reynoso
Liliana Schifter Aceves
Valeria Zepeda Trejo
8 | The periodic table in North American general chemistry textbooks (1900-1950)
Paulo Alves Porto
Sobre os autores
1
A tale of two batteries
Hasok Chang
The two batteries
In our scientific understanding of electrical batteries today there is a great dissonance that deserves highlighting, between the workings of the most commonly used device in everyday life and the most common theoretical explanation of how batteries work that is found in non-specialist textbooks.
Any student asking ‘how does a battery work?’ is likely to be shown the schema of the Daniell cell (Figure 1).¹ This cell has two metal electrodes, and two electrolytes separated by a salt bridge or a permeable barrier to allow a passage of ions. Each metal is dipped in its own solution (or in a solution containing its ions), and the electrical activity is conveniently explained in terms of redox (reduction–oxidation) reactions on the two sides. The difference between the redox potentials on the two sides gives the voltage of the cell, and the directionality of the electric current explained by the imbalance between the chemical potentials on the two sides. The Daniell cell is the iconic instrument of what I have called the ‘chemical imbalance system’ of nineteenth-century battery science, which is the ancestor of modern electrochemistry. The core of this system of practice² was the idea that a battery created a flow of electricity in a circuit because it had two loci of electricity-generating (or electricity-pushing) chemical reactions, one of which acted more strongly than the other; this idea helped practitioners in understanding the workings of batteries, create new batteries, and studying their chemical effects. In the history of electrochemistry and other allied practices, which I have called ‘battery science,’ I have identified four main systems of practice in co-existence and mutual interaction throughout the nineteenth century.³ The chemical imbalance system was on the whole the most dominant of these systems.
Meanwhile, in the realm of daily life the iconic battery remains the 1.5V ‘dry cell,’⁴ descended from the carbon–zinc cell/battery of the late nineteenth century.⁵ This class of instruments has become literally iconic—who does not recognize the battery icon depicting a thin cylinder with a protruding tip at one end? It is one of the few items of modern civilization that one expects to be able to buy at every corner shop. But the dry cell is not configured like the Daniell cell, which means that most of us, even those who paid attention in chemistry class at school, have no idea how our little Duracell works, not to mention more up-to-date devices. This is only a particular manifestation of a prevalent modern situation in which even advanced scientific education does not provide a theoretical understanding of many of the most common and important things in our everyday life, natural and technological. Is it any wonder that many of the most aware and observant students find their science education meaningless?
There are very few textbooks that confront the chemistry of the dry cell directly. Here is a very frank admission by one author, Carl Snyder: Although the carbon-zinc battery is one of our simpler consumer products, the chemistry that goes on inside that wet, black paste [of NH4Cl, ZnCl2 and MnO2] is much too complex to be described in detail here […]’. He asks the students to be satisfied at this level with knowing:
As the electrons leave the zinc casing, the zinc atoms that lose the electrons become transformed into zinc cations, Zn²+. It’s the flow of these electrons […] that provide the power to our radios, flashlights, clocks, and the like."⁶ I will discuss some more detailed treatments below, but this is a significant and interesting fact: a clear majority of chemistry textbooks for both schools and universities decline to give a detailed treatment of this most common and basic technological device of everyday life, and one university-level textbook admits that it is too complicated to be treated properly.
In this paper I seek to tell the historical story of how we ended up in this situation—a tale of two batteries. In a very rough outline, the story is as follows. The Daniell cell and the dry cell each have a very complicated and long-standing history. John Frederic Daniell (1790–1845) invented his ‘constant-current battery’ in the 1830s, in a practical effort to improve the stability of batteries that were available up to that point. Even though it became quickly and widely accepted as the best laboratory battery, the conception of the Daniell cell did not become its iconic textbook version for many decades. The modern theoretical schema of the Daniell cell only dates from the early twentieth century, when the new theory of ions by Svante Arrhenius (1859–1927) met the discovery of the electron. Showing when and how the modern Daniell-schema became entrenched in textbooks is an important task that I cannot undertake in this paper.
The dry cell began its commercial life with the carbon-zinc cell invented by Georges Leclanché (1839–1882) in 1866. The dry cell is the unsung hero and workhorse of modern civilization, which made possible flashlights, portable radios, wall clocks, and so many other amenities that we now take entirely for granted. The Leclanché cell was actually very wet, with a zinc rod immersed in a solution of ammonium chloride; later versions by Carl Gassner (1855–1942), who made it drier and used zinc as the casing, were patented in Germany in 1886 and in the U.S. in 1887. Looking back, the lineage of the Leclanché cell can be traced back to Robert Bunsen (1811–1899), of the Bunsen burner fame, who in 1842 proposed using carbon in place of platinum in a cell invented by William Robert Grove (1811–1896), in the 1830s like Daniell’s, and also in an attempt to make practical improvements in standard batteries.
The tale of two batteries was not a tale of two cities, to begin with: Daniell and Grove were working in very close proximity (though not together) in London in the 1830s and the 1840s. They were both strongly influenced by Michael Faraday (1791–1867), and their instruments were both ultimately descended from Alessandro Volta’s (1745–1827) battery from 1800, via William Hyde Wollaston’s (1776–1828) improvement of it. It will be interesting to see the divergent development of the two batteries in their material construction, theoretical understanding and practical employment. This story will also have some interesting implications about the nature of scientific or technoscientific knowledge.
The development of the Daniell cell
S.R. Bottone’s very comprehensive Galvanic Batteries, published at the start of the twentieth century, identifies the Daniell cell as the most important
of the double-fluid cells.
⁷ Daniell’s initial motivation was very specific: to make a Voltaic cell that would maintain a constant level of current, by eliminating interfering material factors. As Joost Mertens argues, Daniell’s own focus was not technological, and certainly not commercial. Daniell was the first Professor of Chemistry at King’s College London, and he invented the constant battery as an instrument for lecture demonstrations and experimental research; the constant battery was primarily a philosophical apparatus serving the advancement of knowledge,
though his research did not produce any new principle.
⁸ Interestingly, within just a decade of Daniell’s invention, batteries of his design were being used profitably in electrometallurgy and telegraphy. Daniell wrote in his well-known textbook of chemistry that these technological applications have sprung from scientific principles at one leap to perfection,
but the