VAGAS LEMBRANÇAS DE UM -QUASE- ATLETA: Aventuras e desventuras de um atleta mais ou menos
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Sobre este e-book
Paulo Marreco
Marido da Letícia. Cristão. Escritor, autor dos livros Vagas Lembranças de Um Quase Atleta (crônicas esportivas) e À noite na Barra (contos de fantasia e suspense). Surfista, torcedor fanático do GALO.
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VAGAS LEMBRANÇAS DE UM -QUASE- ATLETA - Paulo Marreco
Como todo garoto brasileiro, eu também já sonhei em ser um grande jogador de futebol, em vestir a camisa amarelinha da seleção e brilhar nos gramados do mundo. Cheguei a disputar campeonatos de futsal (que na época atendia pelo nome de futebol de salão) pelo Clube Libanês, do qual era sócio. Eu era um dos três goleiros que brigavam pela vaga debaixo das traves. Humildemente, tenho que dizer que eu era o terceiro na preferência do técnico. Apesar da concorrência ser intensa, Sandro Pretti, que era o titular, quase sempre faltava aos jogos que aconteciam aos sábados de manhã ou à tarde. Quando alguém contava que ele não tinha comparecido ao jogo para ir surfar, eu ficava intrigado. Não podia compreender como alguém era capaz de abandonar uma coisa tão séria, uma partida importante do campeonato capixaba de futsal, categoria infantil, simplesmente porque naquele dia havia altas ondas
no surfe! (pensava assim até que eu também me tornei um surfista: mas isso não vem ao caso no momento).
Pois bem. Quando Sandro faltava ao jogo para ir pegar onda, eu e o Alemão (que me perdoe o Alemão, mas eu não sei o seu nome; acho que ninguém nunca soube. Talvez os seus pais soubessem) disputávamos a posição, quase sempre com larga vantagem para ele. Mas eu também tive meus momentos.
Naquele ano, nós fomos vice-campeões, se não me engano. Este resultado, aliado ao fato de algumas pessoas do meu círculo irem fazer testes em times do Rio (eu jogava bola com o Sávio quase toda semana no campinho do Libanês; de fato, se a memória não me trai, devo ter-lhe ensinado um driblezinho ou dois), e ainda a percepção de que, nas peladas, jogando na linha, se não era o primeiro a ser escolhido, também não era dos últimos; tudo isso, enfim, mais uma certa habilidade, alguma velocidade e nenhum senso crítico fizeram-me acreditar que poderia tentar a carreira profissional. E como um tolo só precisa de algum incentivo para fazer tolices, achei no meu vizinho e amigo I Fe (ou Ivo, na versão brasileira, um chinês -preciso fazer uma correção, ou o Ivo me mata. Chinês, não: taiwanês. Taiwan, ou Formosa, como se sabe, separou-se da República Popular da China em 1949. Chamar um taiwanês de chinês constitui ofensa tão grave quanto chamar um tucano de petista, ou um vascaíno de flamenguista. Ou vice-versa - inteligentíssimo, porém igualmente iludido em relação aos seus dotes futebolísticos), o parceiro ideal para meus desvarios.
Torcedor fanático do Santos (de onde este chinês -perdão, Ivo. Taiwanês- maluco havia tirado essa ideia? Torcer pelo Santos?! Em plenos anos oitenta?!), Ivo era dono de um chute forte e sempre fazia alguns gols em nossas peladas, e como não precisava estudar nunca, pois sempre tirava dez em tudo, tinha todo o tempo livre do mundo para jogar pelada. Nós jogávamos bola sempre: no campo oficial do Marista, onde estudávamos; na quadra do Libanês, depois no campo de society; na velha e esburacada quadra de cimento do Sesiminas, descalços sob o sol escaldante de dez, onze da manhã; à tarde, até a chegada dos adultos que nos expulsavam; na chuva, escorregando, caindo e abrindo a cabeça; na praia...
Até que, convencidos de nosso potencial, resolvemos fazer um teste em um dos times de futebol da cidade, que, naqueles tempos, ainda desfrutavam de algum prestígio junto à população capixaba. Descobrimos o horário do treino e, chuteiras a tiracolo, dinheiro da passagem contadinho no bolso e sonhos mirabolantes na cabeça, despencamos da Praia da Costa para Jardim América, para encarar a peneira
da Desportiva.
Chegando ao clube, ansiosos, fomos à procura do treinador no vestiário, no momento em que ele fazia a preleção para o começo do treino. Lá, outros garotos, como Ivo e eu, novatos inexperientes, misturavam-se aos boleiros, ouvindo as orientações do técnico.
Esperei que o homem terminasse de falar e dirigi-me a ele, resoluto: eu era o próximo Zé Sérgio em pessoa (para quem nunca ouviu falar, Zé Sérgio era um ponta esquerda - de novo, para quem nunca ouviu falar, ponta era um cara que jogava, com o perdão da redundância, pelas pontas - rápido, driblador, um craque!).
Toquei em seu ombro, pois ele estava de costas para mim, e comecei:
- Bicho, como é que eu faço para entrar no time...
Quando chamei o sujeito de bicho, despertei sua fera interior. O barbudo atarracado virou-se para mim furioso, como se eu tivesse acabado de xingar sua mãe, irmãs e tias, e vociferou:
- Bicho?! Que bicho, moleque?! Eu não sou nenhum bicho, eu sou é gente! E pode sumir da minha frente, porque no meu time quem fala gíria não joga!
Acho que foram essas as suas palavras, obviamente temperadas com alguns delicados palavrões. O Ivo, coitado, não abriu a boca, só olhava para o homem com os olhinhos orientais esbugalhados. Saímos dali enxotados, envergonhados, sob os olhares de espanto e deboche dos outros garotos. Saímos sem nem olhar para trás e voltamos para casa sem dizer palavra.
Deixa estar que a história tem lá sua ironia: eu, que desde pequeno sempre me preocupei em falar bem, me expressar corretamente, fui barrado em um time de futebol, não pela falta de talento, mas por um deslize idiomático. Isso foi acontecer logo, repito, em um time de futebol, onde fluência verbal e formação acadêmica não são exatamente os requisitos mais exigidos para se alcançar o sucesso.
Ao invés de ser examinado pelo domínio de bola, fui barrado por não dominar o vernáculo...
De qualquer maneira, foi assim que se encerrou minha promissora carreira de jogador de futebol profissional; antes mesmo de começar!
Lembrei-me desta história toda por causa da melancólica participação do Brasil na Copa do Mundo de 2006. O escrete canarinho chegou à Alemanha com honras de superfavorito, mas em nenhum momento justificou a fama ou correspondeu às expectativas, sendo derrotado com toda justiça pela França (brasileiros, conformem-se: já somos, oficialmente, fregueses de les bleus em Copas do Mundo!) nas oitavas-de-final, adiando o sonho nacional de acrescentar mais uma estrela às outras cinco já colecionadas.
O time brasileiro jogou um futebolzinho burocrático, medíocre, sem sal, desinteressado, como se fôssemos nós os franceses, a desfilar nos gramados o nosso ar blasé. Entretanto, não temos o charme dos habitantes da Riviera, que visitam o Louvre em qualquer fim-de-semana, carregam suas baguetes debaixo do sovaco, fazem biquinho para falar e não precisam tomar banho porque há em cada praça uma fonte jorrando Channel nº 5; não, esta atitude não combina com nossa tradição terceiro-mundista de quem precisa, como dizia o Amaral, correr atrás da bola como quem corre atrás de um prato de comida.
Não vou falar da decepção com a perda da taça, nem da teimosia do Parreira (excelente pintor!) em escalar como titulares jogadores que estavam em condições técnicas e físicas visivelmente inferiores à dos reservas; um ou dois dias depois da catástrofe, que já se anunciava desde os primeiros jogos do Brasil, eu já havia esquecido a Copa do mundo.
Todo esse turbilhão de memórias e emoções da infância veio à tona por um único e simples motivo: Cafu, o capitão da Seleção, regula idade comigo. Ele era um dos medalhões intocáveis do time, o homem de confiança do técnico, o cara que estava ali para quebrar o recorde de participações de um jogador em Copas do mundo. Ele havia sido o protagonista de uma das mais belas imagens da Copa anterior, quando levantou triunfalmente a Taça, ostentando uma camisa que reportava à sua origem humilde, e mandou um Regina eu te amo
, bela declaração endereçada à sua esposa. Confesso que até eu, que desde a Copa de 98 já nutria uma grande birra contra ele, senti naquele momento uma certa simpatia pelo cabra. Também se consagrou como o único jogador de todos os tempos a disputar três finais consecutivas de Copa do Mundo.
Pois bem. Voltemos ao presente, ou seja, Copa de 2006. Quando queria defender a permanência de Cafu no time, Parreira destacava a experiência do jogador e, principalmente, seu condicionamento físico, invejável apesar da idade, já um tanto avançada para um desportista profissional. Sua forma era melhor até do que a de muitos jogadores da equipe, apesar de alguns quase terem idade para ser filhos do veterano lateral. Ninguém elogiava Cafu pelos cruzamentos perfeitos (que eu me lembre, desde a Copa de 94, Cafu não acertava um cruzamento), lançamentos em profundidade, dribles desconcertantes, tabelinhas magistrais, pelos seus belos gols ou por sua capacidade de marcação; ao invés disso, Cafu era elogiado pela forma física.
Ora bolas, mas espere um pouco; o mínimo que se exige de um atleta profissional é que ele esteja em excelente forma física! Aliás, em determinados esportes, é somente isso o necessário: que o atleta esteja em excelente condicionamento físico, no auge da boa forma, acima do cidadão comum e acima de seus adversários. Se Cafu fosse um maratonista, ou um triatleta, tudo bem; Se fosse um piloto de Fórmula Um então, poderia correr até os setenta anos de idade. Mas ele era um jogador de futebol.
Destes, exige-se algo mais. Aliás, exige-se muito mais. Estar em plena forma física, por imprescindível que seja, é somente o primeiro dos itens da lista; e nem chega a ser dos mais importantes. Só para estabelecer um termo de comparação, Romário (e para deixar bem claro, eu não sou fã de Romário) é ainda mais velho do que Cafu, e nunca foi o atleta disciplinado e aplicado que é o amoroso companheiro de Dona Regina. Atualmente, Romário