A Tutela Jurídica Dos Animais
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A Tutela Jurídica Dos Animais - Edna Cardozo Dias
Edna Cardozo Dias
Advogada
Consultora jurídica e ex professora universitária Doutora em Direito pela UFMG
Belo Horizonte - Minas Gerais
2020
2
EDNA CARDOZO DIAS
© 2020
EDNA CARDOZO DIAS
Editor
Edna Cardozo Dias
Arte-final
Aderivaldo Sousa Santos
Revisão
Maria Celia Aun
Cardozo, Edna
A Tutela Jurídica dos Animais / — Edna Cardozo
Dias: Belo Horizonte/Minas Gerais - 2020 - 3ª edição.
346 p.
1. I.Título.
Pedidos desta obra
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amazon.com.br e pela amazon.com:
e-mail: ednacardozo@gmail.com
2020
Impresso no Brasil
Todos os direitos reservados
A TUTELA JURÍDICA DOS ANIMAIS
3
Dedico este livro
À mãe comum de todos os seres - a Terra-, que encerra a essência de tudo que vive, que nos alimenta de todas as alegrias, na expectativa de que este trabalho possa inaugurar uma época nova, marcada por um firme
propósito de restauração da dignidade dos
animais, e do compromisso do ser
humano com uma ética da vida.
4
EDNA CARDOZO DIAS
A gradeço
A o professor Arthur Diniz, orientador da minha tese de doutorado, defendia junto à Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, que foi a primeira tese sobre Direito Animal no Brasil, em fevereiro de 2000, introduzindo este novo ramo do Direito no mundo acadêmico e científico, dando início à elaboração de uma
Teoria dos Direitos dos Animais
.
A TUTELA JURÍDICA DOS ANIMAIS
5
Sumário
Capítulo 1 - FILOSOFIA E OS ANIMAIS ………………………….. 1 5
1.1 Os gregos
1.1.1 Os pré-socráticos
1.1.2 Os sofistas
1.1.3 A filosofia socrática
1.1.4 Platão
1.1.5 Peripatetismo
1.1.6 Epicurismo
1.1.7 A filosofia estóica
1.2 A visão bíblica - Os santos e os animais
1.2.1 São Tomás de Aquino
1.2.2 São Francisco de Assis
1.3 Filósofos liberais e os animais
1.3.1 Montaigne
1.3.2 Hobbes e o contrato social
1.3.3 Locke
1.3.4 Francis Bacon
1.3.5 René Descartes
1.3.6 Voltaire
1.3.7 Jean Jacques Rousseau
1.3.8 Contrato natural
Capítulo 2 - A PROTEÇÃO DA FAUNA NA COMUNIDADE
ECONÔMICA EUROPÉIA E ESTADOS UNIDOS …………….. 4 9
2.1 Proteção da fauna na Comunidade Econômica Européia.
2.1.1 Diretiva 92/43/CEE, de 21/5/1992
2.1.2.A primazia do direito europeu
2.2.2.Animais sujeitos de direitos, uma concepção nova que surgiu na Suprema Corte dos Estados Unidos.
Capítulo 3 - NASCE UMA TEORIA DO DIREITO DOS
ANIMAIS ………………………………………………………………………………. 6 1
3.1 Novas teorias e paradigmas científicos
3.2 Teoria dos direitos dos animais
3.3 Animais titulares de direitos fundamentais no Brasil e o Direito
6
EDNA CARDOZO DIAS
Animal como disciplina autônoma
3.4 O ensino do Direito Animal
3.5 Legitimidade dos direitos dos animais
Capítulo 4- DIREITO DA FAUNA NO BRASIL E NATUREZA JURÍDICA DOS ANIMAIS ………………………………………………….. 8 5
4 A fauna na Constituição Federal e nas Constituições dos Estados 4.1. Conceito de fauna
4.2.Natureza jurídica da fauna
4.3.Fauna silvestre na legislação brasileira
4.4 Criadouros conservacionistas da fauna nativa 4.5 Criadouros conservacionistas da fauna exótica 4.6. Criadouros comerciais da fauna brasileira e exótica 4.7. Criadouros científicos
4.8. Fiscalização dos criadouros
4.9. Importação e exportação da fauna silvestre brasileira e da fauna exótica
4.10. Da caça
4.11. Sanções administrativas
4.12. Divisão de competências
4.13 Ação Civil Pública
4.14 Ação Popular
4.5. A NATUREZA JURÍDICA DOS ANIMAIS NO BRASIL E
OUTROS PAISES
4.5.1. Código Civil brasileiro
4.5.2.1 Das pessoas
4. 5.2.2 Dos bens
4. 5.2.3. Bens e coisas e a vantagem dos animais de deixarem de ser coisas
4. 5.3 Legislação europeia
4. 5.3.1 Legislação da Áustria
4. 5.3.2 Legislação da Alemanha
4. 5.3.3 Legislação da Suíça
4. 5.3.4 Legislação da França, uma proteção afirmativa 4. 5.3.5 Legislação de Portugal
4. 6 Legislação do Brasil
A TUTELA JURÍDICA DOS ANIMAIS
7
Capítulo 5 - CRUELDADE CONTRA OS ANIMAIS …………. 131
5.1 Códigos morais e a sacralização dos animais 5.2 As primeiras legislações protetoras para os animais 5.3 Crueldade contra os animais na legislação brasileira 5.3.1 Experiência dolorosa em animal
5.3.2 Métodos alternativos
5.3.3 Inquérito policial
5.3.4 Ação penal
5.4 HISTÓRICO DATIPIFICAÇÃO DA CRUELDADE CONTRA OS ANIMAIS COMO CRIME
5.5 CRIMES DO SÉCULO XX
5.5.1 A crueldade nas brigas de galos e de canários 5.5.2 A crueldade nos rodeios e nas vaquejadas
5.5.3 A Farra do Boi
5.5.4 Touradas no Brasil?
5.5.5 A crueldade nas corridas de cães
5.5.6 Crueldade nas brigas de cães
5.5.6 Crueldade na produção de soro e o caso do cavalo 814
Capítulo 6 - COMÉRCIO E OS ANIMAIS E FAUNA
SELVAGENS EM PERIGO DE EXTINÇÃO (CITES) ……….. 245
6.1.1 Princípios fundamentais da Convenção
6.1.2 Regulamento do comércio de espécimes incluídos no Anexo I 6.1.3 Regulamento do comércio de espécimes incluídas no Anexo II 6.1.4 Regulamento do comércio de espécimes incluídos no Anexo III 6.1.5 Licenças e certificados
6.1.6 Isenções e disposições comerciais
6.1.7 Obrigações das partes
6.1.8 Comércio com Estados que não são partes da Convenção 6.1.9 Outras disposições
6.2 O comércio da fauna na comunidade econômica européia 6.2.1 Espécimes nascidos e criados em cativeiro ou reproduzidos artificialmente
6.2.3 Circulação de espécimes vivos
6.2.4 As sanções
6.2.5 A União Européia e as convenções firmadas no Conselho Europeu e o bem estar animal
6.3 Eco-label, o selo verde, CEE sai na frente
8
EDNA CARDOZO DIAS
6.4 O ESQUEMA BATTERY CAGE E O MERCADO DE OVOS, CEE SAI NA VANGUARDA
6.4.1 O estresse e as enfermidades
6.5. Indústria de peles
6.6.INDÚSTRIA DE PELES E AS ARMADILHAS LEG-HOLD
6.7 Cruelty free products
6.7.1 Cosméticos
6.8 O MERCADO DE CARNE NA EUROPA
6.8.1 A agropecuária e os animais de fazenda
6.8.2 O comércio da carne de porco e os métodos usualmente adotados pela criação intensiva nos países em que não há legislação de proteção aos animais e ao consumidor
6.9 O COMÉRCIO DA CARNE DE BOI NAS AMÉRICA
CENTRAL E NA AMÉRICA DO SUL
6.10 Métodos de abate utilizados no brasil - histórico 6.11 O mercosul e a alteração o decreto 30.691/52
6.12 O que é abate humanitário, segundo a ORGANIZAÇÃO
MUNDIAL DE SAÚDE?
6.13 FAZENDAS DE PELES
Capítulo 7 - OS ANIMAIS E O MERCOSUL …………………….. 277
7. 1 O MERCOSUL
7. 1 Programa de Integração e Cooperação Econômica Brasil X
Argentina
7.2. MERCOSUL
7.2.1. Estrutura do MERCOSUL segundo o POP
7.2.2. O meio ambiente no MERCOSUL
7.3. Princípios
7.3.2. Objetivo
7.3.3. As áreas temáticas estabelecidas pelo Acordo são 7.3.4. Fontes jurídicas
7.4. A controvérsia e suas soluções
7.4.1 Agenda externa do MERCOSUL
7.4.2. Conflito entre MERCOSUL e terceiros países 7.4.3. Organismos financeiros
7.5. Comitê MERCOSUL de Normalização - CMN
A TUTELA JURÍDICA DOS ANIMAIS
9
Capítulo 8 - O ESTADO ECOLÓGICO ………………………………. 291
8.1 Os princípios do Estado Ecológico.
8.2 Solidariedade como princípio de Direito
8.3 O princípio da inter-relacionalidade, o Direito das outras espécies Capítulo 9 - CONCLUSÃO. …………………………………………………. 319
9.1 Buscando um novo paradigma
9.2 A nova ética
9.3 O enigma cósmico
9.4 A rede que tudo envolve
9.5 O reconhecimento dos direitos dos animais
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ………………………………… 327
10
EDNA CARDOZO DIAS
A TUTELA JURÍDICA DOS ANIMAIS
11
Prefácio
C onheci a Professora Edna em 1986, quando eu dirigia um grupo de estudos em um curso de formação de professores de Yoga.
Ao saber de sua disponibilidade para palestras voltadas à conscientização do ser em relação aos animais, convidei-a, por intermédio da organização que ela havia fundado alguns anos antes, a Liga de Prevenção contra a Crueldade Animal, para fazer uma palestrar para nosso grupo. Nos encontros desse grupo, conforme expliquei para a Professora Edna na ocasião, discutíamos assuntos que contribuíssem para o equilíbrio e o crescimento do ser nos seus aspectos humanos e transcendentais. Livre para escolher seu tema, ela nos brindou com uma palestra que ampliou os horizontes de formandos e convidados, que se abriram ao conhecimento de que o amor e o respeito aos animais é parte que jamais pode ser excluída do caminho evolutivo das pessoas. Gravamos a palestra (ainda em fitas cassete), que foi passada aos alunos e multiplicada para ampla distribuição.
Inúmeros são os eventos que a Professora Edna liderou ou dos quais participou palestrando em defesa dos animais. Longe, entretanto, de limitar-se a agir na esfera acadêmica, a Professora Edna, desde o início de suas atividades, priorizou a ação. Exemplo disso foi a criação da Liga de Prevenção já mencionada, destinada a receber denúncias de agressões a animais e dar-lhes tratamento jurídico. Ela também trabalha constantemente para que a vivissecção seja substituída por métodos alternativos em todo o Brasil, para conscientizar sobre a destruição dos ecossistemas e sobre a crueldade exercida para com os animais, procurando, ainda, divulgar as vantagens do vegetarianismo para a saúde dos homens
12
EDNA CARDOZO DIAS
e a preservação da natureza.
A Professora Edna tem sido uma fonte de inspiração para muitos, entre os quais me incluo com gratidão. Como fruto da convivência com ela, nossos artigos e livros de bioética passaram a mostrar também o animal como parte de uma bioética de uma visão mais abrangente. E, ainda, a seu convite, é que passei a integrar a Comissão de Direito dos Animais da OAB-MG, da qual ela era presidente.
Publicou a primeira edição do livro A tutela jurídica dos animais, baseado em sua tese de doutorado na Faculdade de Direito da UFMG. É importante assinalar que foi a primeira tese escrita no Brasil defendendo a existência de um direito dos animais, sendo, portanto, uma verdadeira ponta de lança a quebrar velhos paradigmas e conceitos em relação ao tratamento dos animais, tendo aberto as portas para uma enxurrada de monografias, dissertações, teses e livros sobre o assunto. Suas ideias e ideais, já em formato de livro, puderam ser mais bem divulgadas e o livro tem sido, desde então, uma referência no campo da proteção jurídica aos animais.
É por essas e outras inúmeras razões que posso dizer da grande satisfação de ver seu livro agora em nova edição, uma preciosa oportunidade para que outras pessoas vivenciem uma percepção mais profunda sobre as questões de amor e respeito para com os animais e para com a necessidade do reconhecimento de seus direitos. Sinto-me honrado pelo convite de prefaciar esta obra valiosa. Muito obrigado.
Alvaro Angelo Salles
Belo Horizonte, agosto de 2018
A TUTELA JURÍDICA DOS ANIMAIS
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A presentação
E ste livro, A tutela jurídica dos animais, é a reedição da primeira tese de doutorado no Brasil sobre direito dos animais, publicada em 2000 e agora atualizada. Esta tese foi defendida junto à Universidade Federal de Minas Gerais em fevereiro de 2000 e teve como orientador o Professor Arthur Diniz.
O objetivo do trabalho foi trazer à reflexão a percepção do mundo como um macrocosmo orgânico, e levar o homem a reintegrar-se ao meio natural e compreender sua relação com toda vida, o que requer a introdução dos animais no universo jurídico, fazendo emergir novos princípios em nosso direito, como o respeito, a solidariedade e a cooperação.
Requer um novo paradigma jurídico que leve em consideração a realidade circundante e um Estado, que seja produto das relações sociobiológicas, que reconheça a imprescritibilidade do direito á vida e ao livre desenvolvimento das espécies. O desenvolvimento sustentável foi o paradigma do século XX. Não poderá haver desenvolvimento sustentável sem solidariedade e responsabilidade em relação a tudo que vive. Os reinos animal humano e não humano, os vegetais e os minerais são partes de um todo. Agora precisamos de um paradigma jurídico que conceda aos animais um status jurídico de acordo com sua natureza de ser vivo senciente e como sujeito de direitos constitucionais, legais e naturais. A Declaração de Cambridge sobre a Consciência em Animais Humanos e Não Humanos, foi proclamada publicamente no Reino Unido, no dia 7 de julho de 2012, na Conference on Consciousness in Human and non-Human Animals.
Todas as ciências necessitam se adequar a esta realidade. Os animais possuem senciência e precisam ser protegidos com os mesmos
14
EDNA CARDOZO DIAS
princípios que protegem os seres humanos.
Diante dos notórios massacres dos animais no transcorrer da história mundial, tornou-se imperiosa a substituição, de forma progressiva, de normas jurídicas insuficientes, superadas e contraditórias por uma legislação suficiente e compatível com a realidade atual sobre a situação dos animais.
Esta obra pretende, ainda, demonstrar que a proteção dos animais constituiu relevante questão jurídica, de natureza notadamente legal, ambiental, social e cultural, inseparável ou interdependente do permanente processo civilizatório. A crise de valores deixa as suas marcas não apenas na destruição da natureza, mas nas estruturas sociais. Por isso, o empenho ético não pode estar desvinculado da justiça. Estudos demonstram que a crueldade contra os animais é um passo inicial de um potencial criminoso. Portanto, a restauração da justiça e a proteção dos animais terão que vir juntas.
O reconhecimento dos direitos dos animais é uma responsabilidade a ser compartilhada por todos. Neste livro, procuramos enfatizar as razões que nos obrigam a reavaliar a maneira como pensamos e interagimos com tudo que vive no mundo, e a necessidade de redefinirmos nossas prioridades, tomando como base novos valores Nosso destino comum nos convida a buscar um novo começo e a inaugurar uma era de solidariedade e esperança.
A autora
A TUTELA JURÍDICA DOS ANIMAIS
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Cápitulo 1
A FILOSOFIA E OS ANIMAIS
A s relações do homem com o animal e a natureza na civilização ocidental têm sido regidas pelo domínio. As atitudes generalizadas de maus-tratos aos animais nasceram, sobretudo da crença bíblica de que Deus outorgou ao homem o domínio sobre todas as criaturas e do um pensamento filosófico que se desenvolveu assentado numa dualidade ontológica —, o qual vem legitimando toda sorte de exploração dos animais. Assim seguiram o romantismo, o humanismo e o racionalismo, que colocaram o homem no centro do Universo.
1.1 OS GREGOS
Os pensadores gregos lecionavam que o caos é a força primordial criadora e motriz do Universo. Foi do caos que surgiram a Sombra, sob a forma de Érebo, e a Noite. E foi da Sombra que surgiu a Luz, sob a forma de Éter; e da Luz, o Dia. Quando Érebo se separou da Noite, surgiu Eros — o Amor, criador de toda vida. Eros envolveu a Terra, e esta deu a luz ao Céu, ao Mar e às Montanhas. Da descendência da Terra surgiu Têmis — personificação da lei e da ordem universal, imanente à natureza de todas as coisas. Têmis se casou com Zeus, deus do Olimpo,
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EDNA CARDOZO DIAS
e deu nascimento às três Horas: Eirene, a paz; Eunomia, a disciplina; e Dike, a justiça. Eis a primeira visão ontológica do Direito.
Na obra poética do filósofo grego Hesíodo podemos ler a genealogia dos deuses, um esboço de um pensamento racional que abriu caminho para as cosmogonias filosóficas. Em sua Teogonia, Hesíodo já falava de separatividade entre uma natureza racional e uma natureza irracional na ordem universal protegida por Zeus. Para ele a natureza irracional carece de direito, e os seres irracionais podem, portanto, devorar uns aos outros. Esta é a sua lei. Mas aos homens é concedido o direito — Dike —, a que devem obediência, e que ao mesmo tempo é o maior dos bens. Assim, há uma ordem para os homens e outra para os animais irracionais. Enquanto para o reino irracional prevalece a necessidade vital, para o reino humano prevalece a justiça, sendo o direito uma das forças basilares do Universo.
Este foi, talvez, o primeiro passo que, séculos mais tarde, viria excluir os animais de uma proteção legal criada só para os homens.
1.1.1 Os pré-socráticos
Ensina o eco historiador Arthur Soffiati1 que os primeiros helênicos, chamados pré-socráticos ou físicos, viam a natureza abarcar tudo, inclusive os deuses, relativizando a importância do ser humano.
Para eles, dentre outros, que constituíam as escolas Jônica, Itálica, Eleática e Atomística, a concepção de justiça natural dimana da ordem cósmica.
Os primeiros pensadores jônicos conceberam um universo estático. Depois essa visão evolui para uma cosmovisão, passando o cosmo a assumir uma alma, cuja essência é o devir como essência das coisas. Logos, o princípio universal, é considerado a alma do mundo.
Heráclito, de Éfeso (540-497 a.C.), pode ser considerado um símbolo paradigmático dos pré-socráticos. Ele sustentava que o ser é um; o segundo é o vir-a-ser, o princípio fundamental. Tudo flui, nada persiste nem permanece o mesmo. Afirmou a natureza como infinita, a 1SOFFIATI, Aristides Arthur. A natureza no pensamento liberal clássico.
Campos dos Goitacazes: Datil, 1992, inédito.
A TUTELA JURÍDICA DOS ANIMAIS
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que jamais repousa, e definiu o fogo como o símbolo do eterno movimento.
Da luta entre os opostos nasce todo o devir. A diferença faz parte da harmonia. (Nota nossa: diferença, inclusive, entre os sexos, as raças e as espécies de animais e de vegetais). Heráclito ligou o todo e o não todo (a parte). Este é o principio da unidade entre todo o universo.
Fundada por Pitágoras de Samos (580-497 a.C.), a Escola Itálica pressupõe uma identidade fundamental, de natureza divina. Essa similitude profunda entre os vários existentes era sentida pelo homem, sob a forma de um acordo com a natureza, que, sobretudo depois do pitagórico Filolau, será qualificada como harmonia, garantida pela presença do divino em tudo. É natural que, dentro de tal concepção, o mal seja sempre entendido como desarmonia.
Nesta Escola encontramos, pois, a concepção de um universo único e harmonioso e a presença do divino em tudo, e não apenas no ser humano.
Nessa época o Tribunal dos Anfictiões (assembléia de grandes iniciados e parlamento supremo e arbitral), que se reunia em Delfos, já reconhecia a importância do meio ambiente para a vida da cidade. Isso é o que depreendemos de seu juramento, segundo o qual se comprometiam a não destruir nunca as cidades anfictiônicas e a não desviar, seja durante a paz seja durante a guerra, as nascentes d’água necessárias às suas necessidades.
Esta era a Grécia do pensador Orfeu, que já começava a periclitar com a violação das ordens de Delfos. Percebeu-se a necessidade de dividir o ensino em dois setores, um público e outro secreto. Pitágoras surgiu como o mestre da Grécia leiga. Nos princípios basilares de seus ensinamentos já pregava que o Universo é uno e que havia, portanto, interdependência de todos os seres, justificando as máximas da ecologia hodierna: a evolução é lei da vida; o número é a lei do Universo; e a unidade é a lei de Deus.
No seu ensinamento hermético, demonstrou que os números contêm os segredos de todas as coisas e que são a harmonia universal.
As sete notas musicais correspondem às sete cores, aos sete planetas e aos sete modos de vida. Essa melodia deveria acordar a alma e torná-la
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EDNA CARDOZO DIAS
harmoniosa. (Nota nossa: em paz com tudo que vive, para vibrar em uníssono com o sopro da verdade).
Pitágoras, ao pregar aos jovens o amor à família, comparava a mãe à natureza generosa e benfazeja. Ele dizia que a Cibele celeste produz os astros; Deméter, os frutos e as flores da terra. Assim também, como a mãe alimenta o filho de todas as alegrias. Aqui se percebe que ele via a Terra como uma grande mãe. E para ele essa Natureza viva, eterna, essa grande Esposa de Deus, não é somente a natureza terrestre, mas também a natureza invisível aos nossos olhos da carne — a Alma do Mundo, a Luz primordial, alternadamente Maia, Isis ou Cibele, que, sendo a primeira a vibrar sob a impulsão divina, encerra as essências de todas as almas, os tipos espirituais de todos os seres. É, em seguida, Demeter, a terra viva e todas as terras, com os corpos que contêm, em que suas almas vêm encarnar: depois é a mulher, companheira do homem.
2
A recente teoria de GAIA, a Terra viva, do bioquímico inglês James Lovelock, teve seu nome sugerido por Goulding, por ver nela semelhança com a concepção dos gregos de GEA.
Pitágoras acreditava na reencarnação e na metempsicose. Em relação aos animais, dizia que as espécies se transformavam não apenas pela seleção, mas pela percussão de forças invisíveis. Para ele, logo que uma espécie desaparecia do globo era sinal de que uma raça superior estava encarnando na descendência da espécie velha. E, segundo ele, foi assim que surgiu o próprio homem. E tudo isso supõe, evidentemente, um reino anterior de uma humanidade celeste. Assim, transitava Pitágoras da cosmogonia física para a cosmogonia espiritual. Tratava da evolução da Terra e da evolução das almas, doutrina conhecida como transmigração das almas. A alma humana nada mais era que uma parcela da alma do grande mundo. A doutrina ascensional da alma coloca, sem dúvida, os animais na condição de nossos irmãos evolucionários:
"O espírito que trabalha os mundos e condensa a matéria cósmica em massas enormes manifesta-se com uma intensidade diversa e 2SHURÉ, Edouard. Os grandes iniciados. São Paulo: Martin Claret, 1986, p. 68.
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uma concentração cada vez maior nos reinos sucessivos da natureza. Força cega e indistinta no mineral, individualizada na planta, polarizada na sensibilidade e no instinto dos animais, tende sempre, na sua lenta elaboração, para a mônada consciente; e a mônada elementar é visível no animal mais inferior".3
Conta-se que Pitágoras era vegetariano e que o repasto frugal dele e de seus discípulos constava geralmente de pão, mel e azeitonas.
Na Escola Atomística encontramos o apogeu da ciência natural pré-socrática. Para esta escola o elemento básico do universo é o átomo.
Com Demócrito de Abddera (460-370 a.C.), nasce a cosmovisão atomística, sendo ele, talvez, um dos primeiros representantes do materialismo. Segundo sua teoria, a realidade é composta de átomos e de vazio, e a combinação dos átomos explicaria a formação de todos os fenômenos. O homem é um microcosmo. São dele esses ensinamentos:
"Escritos não classificados, causas relativas aos animais, I, II, III
— A boa natureza dos animais é à força do corpo; a dos homens, a excelência do caráter. E ressalta a boa qualidade dos animais: Talvez sejamos ridículos quando nos vangloriamos de ensinar os animais. Deles somos discípulos nas coisas mais importantes -
da aranha no tecer e remendar, da andorinha no construir casas, das aves canoras, cisne e rouxinol no cantar, por meio da imitação". 4
Ao examinarmos os pré-socráticos podemos concluir que no pensamento grego antigo o homem fazia parte do universo, mas sem qualquer autonomia. A justiça do Estado se confundia com as leis da natureza, uma vez que o homem, imerso na totalidade do cosmo, obedecia às leis físicas ou religiosas que o regiam. Essa concepção é um 3SHURÉ, Edouard. Op. cit. , p. 80.
4OS PRÉ-SOCRÁTICOS - vida e obra. São Paulo: Abril, 2ª ed., 1978, p. 317.
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jusnaturalismo cosmológico.
1.1.2 Os sofistas
Com a crise ética e moral do século V a.C., desenvolveu-se o sofismo. Sofista é aquele que sabe, aquele que possui uma técnica que o habilita a tirar proveito de sua aplicação. Com os sofistas as indagações sobre a ordem cósmica cedem lugar às indagações sobre a ordem humana.
Os sofistas eram professores ambulantes.
O mundo helênico nos séculos VI e V a.C. viceja essa interessante concepção da natureza. Embora discordem em alguns princípios que constituem e regem o universo, Tales, Anaximandro, Anaxímenes, Xenofanes, Heráclito, Pitágoras, Almeão, Parmênides, Zenon, Melisso, Empédocles, Filolau, Arquitas, Anaxágoras, Leucipo e Demócrito compartilham a visão de que tudo integra a natureza: o ser humano, a sociedade por ele construída, o mundo exterior e até os deuses.
Enfim, de Tales a Demócrito, os pré-socráticos, que eram ao mesmo tempo filósofos, cientistas, poetas, artistas e místicos, afirmaram o tema essencial da unidade. A tendência à mundialização e a defesa do planeta retomam essa perspectiva, com uma nova fundamentação.
1.1.3 A filosofia socrática
É a partir de Sócrates (470-399 a.C.), com a máxima conhece-te a ti mesmo 5 que começa o antropocentrismo.
Sócrates tem o mérito de ser o fundador da ética. Para ele, embora a felicidade seja um bem a atingir, deve ser concebida como o prazer que deflui do equilíbrio espiritual, a partir do qual a razão liberta o homem da escuridão das paixões. O que ele quis mostrar é que as leis morais têm origem na estrutura do indivíduo. Ele também dizia que a razão conduz à unidade e à universalidade, idêntica a todos os homens. Existe uma 5COELHO, Luiz Fernando. Introdução histórica à filosofia do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1977. Pg. 59.
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universalidade do homem.
Lamentavelmente, o que não foi lembrado é que os valores éticos devem ser concebidos não para o homem isolado, mas em sua universalidade, inclusive no ambiente que o cerca. Nesse sentido podemos dizer que o meio ambiente exige de nossa parte uma ética que consiste em respeitar as leis da biodiversidade, a integralidade da matéria e a programação da natureza. Se, como dizia Sócrates, obedecer às leis do Estado é dessarte exigência da própria natureza humana, também é da natureza humana obedecer às leis da Terra e do Universo.
1.1.4 Platão
Platão (428-348 a.C.) recebeu de Sócrates o grande impulso, o princípio ativo de sua vida: fé na justiça e na verdade. Impressionou-o sobremaneira o fato de Sócrates morrer pela verdade. (Sócrates morreu em 399 a.C.).
Platão rejeitou completamente a concepção dos atomista de um universo com uma pluralidade indeterminada de mundos criados por acaso. Elaborou uma teoria que fez do espírito divino a causa primordial do mundo natural e pôs os valores espirituais no âmago da criação. Os céus, em sua opinião, proclamam propósitos racionais de seu criador, cuja obra constituiu um cosmo, um todo único, ordenado e belo, impregnado de vida e inteligência. O mundo de Platão é uma unidade orgânica, cujas partes são inteligíveis, em virtude de sua estrutura matemática. Há uma alma do mundo, que é a causa do movimento regular, e o corpo do mundo consiste nos quatro primeiros corpos: fogo, ar, água e terra. A alma do mundo está inserida no centro da esfera e a impregna completamente, dotando-a de movimento, vida e pensamento.
Platão deu grande importância à política, revelada em suas obras A República e as Leis, nas quais se ocupou do homem político e das cidades ideais. Em A República ele termina com o mito de Er, quando fala da transmigração das almas:
"Er dizia ter visto a alma que foi um dia a de Orfeu escolher a
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vida de um cisne, porque, por ódio ao sexo que lhe dera a morte, não queria nascer de uma mulher. Tinha visto a alma de Tâmiras escolher a vida de um rouxinol, um cisne trocar a sua condição pela alma do homem e outros animais canoros fazerem o mesmo.
A alma chamada em vigésimo lugar a escolher optou pela vida de um leão: era a de Ajax, filho de Télamon, que não queria voltar a nascer no estado de homem, pois não tinha esquecido o julgamento das armas. A seguinte era a alma de Agamenon. Tendo também aversão pelo gênero humano, por causa das desgraças passadas, trocou a sua condição pela de uma águia […] a do bobo Tersites revestir-se da forma de um macaco […] De igual modo os animais passavam à condição humana ou à de outros animais, os injustos nas espécies ferozes, os justos nas espécies domesticadas; faziam-se assim cruzamentos de todas as espécies."6
No diálogo das Leis, livro X, Platão também fala da alma, definindo-a alma como uma substância que se move, e declara que o mundo e os astros são animados e que a revolução divina é dirigida pela alma suprema, princípio de ordem do Cosmo. Ele acredita na imortalidade da alma, sujeita a recompensas ou castigos, e na sua elevação ou rebaixamento na escala dos seres vivos. Ou seja, para ele todos os seres vivos são dotados de alma.
Platão inclui entre os principais privilégios do homem o de se comunicar com os animais. Assim, questionando-os e estudando-os, conhecia exatamente as faculdades de cada um, bem como as diferenças, o que tornava mais agudo seu raciocínio, mais perfeita sua prudência e mais eficiente sua conduta na vida. Ele perguntava: Haverá maior insensatez do homem em querer julgar os animais?
Ele acreditava que a forma corporal com que a natureza dotou os animais atendeu ao prognóstico da época.
1.1.5. Peripatetismo
6 PLATÃO. A república. Fundação Calouste Gulbenkian, 1949. Pg.. 477, 496-498, 620.
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A filosofia de Aristóteles (384-322 a.C.) é denominada Peripatética, em razão do hábito ambulatório que o mestre propagou entre os seus discípulos, ensinando-os em amáveis palestras, passeando pelos caminhos do Ginásio de Apolo.
Em A Política Aristóteles argumenta que da dupla união do homem com a mulher e do senhor com o escravo constitui-se, antes de tudo, a família. E lembra que Hesíodo disse, com razão que a primeira família formou-se da mulher e do boi feito para a lavra. Com efeito, o boi serve de escravo aos pobres.7 Assim, a família, constituída para prover as necessidades quotidianas, é formada pelo ser humano e pelo animal domesticado. Para ele muitas famílias formam os burgos, e muitos burgos uma cidade completa. Para Aristóteles toda cidade se integra na natureza, pois foi a própria natureza que formou as primeiras sociedades. E os diferentes seres se integram na natureza quando atingem todo desenvolvimento que lhes é peculiar. Para ele é evidente que a cidade faz parte da natureza e que o homem é naturalmente um animal político. Um indivíduo que deixa de fazer parte da cidade é ávido de combates e, como as aves de rapina, incapaz de submeter-se a qualquer obediência.
A obediência e submissão são para ele regras naturais.8
Aristóteles considera o homem um animal sociável em grau mais elevado que outros animais que vivem em sociedade, como as abelhas.
Ele considera os animais diferentes pela sua forma de viver, suas ações, seus costumes e suas moradias. E vê no fato de o homem ter o dom da palavra uma forma de elevação, ao ser comparado com os outros animais, que só tem a voz para expressar prazer e dor. Os animais se comunicam, mas só os humanos podem discutir o que é justo ou injusto. Para ele a natureza deu aos animais os órgãos para exprimir sua voz, mas nós temos conhecimento do bem e do mal, do útil e do inútil, do justo e do injusto, e manifestamos isso através da palavra. É o comércio da palavra o liame 7ARISTÓTELES. A política. Julian Marias y Maria Araújo. Madrid: Instituto de Estudos Políticos, 1951. XLV e 12.
8VERNANT, Jean Pierre. Los origenes del pensamento grego. Trad. de Mariano Ayerra. Buenos Aires: Eudeba, 1965. Pg.. 105.
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de toda sociedade doméstica ou civil.
De certa forma, ao refletirmos sobre essas palavras do filósofo, temos de assumir nossa responsabilidade diante dos seres que não usam a linguagem para se expressar e reivindicar sua libertação, bem como diante do destino do planeta. Entretanto, Aristóteles vê como natural o domínio do homem sobre o animal. Da mesma forma, para ele é natural o domínio do homem que tem idéias sobre aquele que só tem a força.
Também, postula que a alma dirige o corpo. Considera mesmo até um privilégio para o animal viver sob o domínio do homem, defendendo que a situação do animal dominado é melhor do que daquele que vive em liberdade, ao qual ele denomina fera selvagem.