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Americanidade: passaporte para a integração (Mercosur - Ñemby Ñemuha)
Americanidade: passaporte para a integração (Mercosur - Ñemby Ñemuha)
Americanidade: passaporte para a integração (Mercosur - Ñemby Ñemuha)
E-book895 páginas11 horas

Americanidade: passaporte para a integração (Mercosur - Ñemby Ñemuha)

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Sobre este e-book

O Mercosul conduz uma forte tendência integracionista regional. Este trabalho tenta identificar matrizes e matizes culturais, econômicos e políticos configuradores de um sentimento patronímico - nem sempre explícito - que permeia as relações entre os povos e países da América (...). Com o nome de ""americanidade"" procura-se caracterizar uma representação comum, potencializada por meio de suas diferentes expressões: trocas comerciais, modelos políticos, artes e culturas regionais. Propõe-se a dar uma resposta efetiva ao processo da integração continental. Trata-se de uma questão identitária, que revela, às vezes, nas relações cotidianas, uma face centrípeta, convergente; em outras, atua de maneira centrífuga. Essas vertentes do imaginário da América, performatizadas em reuniões presidenciais e em relações entre os povos, vão se confundindo, fundindo e ganhando materialidade própria em direção à identidade regional.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento5 de abr. de 2022
ISBN9786525229539

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    Americanidade - Aylê-Salassié Filgueiras Quintão

    CAPÍTULO I - A INVENÇÃO DO MERCOSUL

    A ideia da união dos povos da América encontrou sempre um embaraço fundamental: a questão da identidade, devido à configuração, envolvendo uma multiplicidade de raças, etnias, práticas culturais e, não raro, atitudes políticas intempestivas, que contribuíram para fragmentar o continente em pequenos espaços de autonomia regional, atravessados todos, ao longo da história, por quatro concepções paradoxais da América: a dos norte-americanos, da Doutrina Monroe (1823), que preconizou a América para os americanos; o sonho bolivariano de se estabelecer uma confederação entre países recém-constituídos, por força das armas, nas lutas pela independência da América(1814); a dos poetas e políticos românticos criolos; e a dos europeus imigrantes, incorporada por Boris Fausto(1999), na expressão Fazer a América, cunhada pelos que chegavam .

    São vieses ideológicos que tentam iluminar a reflexão e o entendimento do que aparece entre os diversos os olhares sobre a América. Da perspectiva deste trabalho entende-se assim as dezenas de iniciativas e práticas sociais de inspiração político-ideológicas que vieram marcando de maneira dispersa as representações da história da região. O imaginário erigido fez com que países fronteiriços mantivessem entre si relações apenas comerciais nas sub-regiões limítrofes; alguns se isolassem; e outros tantos ainda fossem considerados inimigos potenciais dos vizinhos. O Brasil, na condição de Império, era enquadrado nas três perspectivas. Essa foi a América herdada pelo século XX: longe dos portugueses, abandonada pela Espanha e dominada pelos ingleses. Nesse cenário, apenas um país se destacava: os Estados Unidos.

    A introdução do regime republicano no Brasil – com dez fronteiras na América do Sul – ajudou muito a desanuviar o clima de desconfiança mútua que permeava o próprio continente, evidentemente que alimentado pelos países e elites hegemônicas sub-regionais. Mas a América, na sua extensão territorial total já aparecia definitivamente dividida, pelo menos, em três (do Norte, Central e do Sul), distinguindo-se delas ainda o Caribe¹.

    Na América do Sul as elites não se relacionavam e os países não se entendiam, vivendo internamente ebulições políticas próprias e, externamente, posicionando-se segundo a sua conveniência ou a do país hegemônico com o qual se alinhavam, no caso, já os Estados Unidos. Criou-se a União Pan-americana no início do século XX, mas a ideia de um espaço comum para os povos americanos só foi mesmo institucionalizada após a Segunda Guerra, com a Organização dos Estados Americanos (OEA) com sede em Washington (EUA), que não conseguiu, desde que surgiu, autoridade adequada para marcar uma presença efetiva no continente.

    A contribuição mais concreta para a compreensão dos problemas regionais veio na década de 50, dos estudos da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), pela identificação de um primeiro traço identitário comum entre os povos de colonização ibérica: a pobreza generalizada. Convivia-se na América com uma ambiguidade básica: a superprodução de alimentos e, concomitantemente, com a fome. Como solução, recomendou-se, entre outras alternativas, a necessidade de um maior intercâmbio comercial dentro da própria região. Logo a seguir os países estariam reunidos para a criação da Associação Latino-americana de Livre Comércio (Alalc) que, sobreviveu por algum tempo, mas que, por não conseguir operacionalizar as relações entre as economias sub-regionais, foi substituída pela Associação Latino-Americana da Integração (Aladi).

    O processo de intercâmbio comercial entre os países continuava, mesmo assim, excessivamente lento. A falta de infraestrutura comum, o protecionismo, a multiplicidade de tarifas e alíquotas e até velhas desconfianças mútuas inviabilizavam praticamente a maioria das transações. Para agravar, os países da América caíram na armadilha da liquidez internacional, do modelo liberal na década 70/80, provocada pelo reajuste dos preços internacionais do petróleo e, incompetentemente, as elites governantes civis e militares geraram um endividamento externo que, praticamente, inviabilizava qualquer modelo de desenvolvimento interno.

    Sob o tacão do garrote vil da dívida, estrangulados e desarvorados, cada governo procurava safar-se como podia. A Bolívia chegou a obter o perdão dos credores. Os países localizados na região dos Andes tentaram criar uma unidade comercial mais próxima, instituindo o Pacto Andino, chamado mais tarde de Comunidade Andina. Na América Central, surgiu o Mercado Comum Centro-Americano (MCCA). Os países do Sul congregaram-se retoricamente no chamado ABC (Argentina, Brasil e Chile) e procuraram algumas aproximações, mas ficaram restritas ao campo da política e da diplomacia, sem também nenhum grande efeito prático.

    A convicção de que a formação de blocos econômicos poderia dar certo só começou a efetivar-se quando a Europa conseguiu se reunir na Comunidade Econômica Europeia, (CEE), já no final dos anos 80 e início dos anos 90 do século XX. Assim, por analogia, diante dos olhos surpresos dos analistas diplomáticos dos países que operavam hegemonicamente na América do Sul, Brasil e Argentina vão sentar-se à mesa para assinar os primeiros acordos de cooperação efetiva, depois de anos de convivência distante na condição de inimigos cordiais. Rapidamente, o comércio entre os dois países vai dar sinais positivos e reaquecer a ideia da integração no Cone Sul, o que resultará na criação do Mercosul: um bloco econômico destinado a reunir os segmentos produtivos da sub-região, de forma a instrumentá-los para competir no espaço liberalizante da globalização.

    Assim, o Mercosul, antes de se expressar como fruto de uma realidade social ou cultural sub-regional, aparece como uma ideia estratégica que privilegia a lógica da integração pela construção de um espaço comum de estabilidade econômica e democrática, em que são compartilhados recursos e mercados, gerando um lugar de fala para os povos dos países membros nas negociações internacionais. O sucesso do empreendimento, que se desejava viesse a ser longevo, não podia prescindir, entretanto, da força e do reconhecimento das populações da região, assentadas sobre valores e práticas culturais representacionais, cujas marcas teriam de ser capazes de sobreviver às forças centrífugas da globalização.

    As diretrizes políticas da integração e da busca de uma identidade sub-regional vão ser explicitadas pelos presidentes José Sarney, do Brasil e Raul Alfonsin, da Argentina, em 29 de novembro de 1988, no ato de assinatura do Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento, entre a Argentina e o Brasil, cujos propósitos Alfonsin historiou sumariamente da seguinte maneira:

    {...} quando começamos o processo de integração... estava muito claro o sentido político do projeto. Em todos os momentos tentamos incorporar a sociedade e os seus representantes políticos, econômicos e sociais [...]. Este passo decisivo da década de oitenta produziu uma mudança geométrica na natureza das relações entre a Argentina e o Brasil. Sepultava frustrações estéreis, afirmava a possibilidade de um crescimento conjunto e abria caminho para o desenvolvimento de um novo processo conceitual de integração à região do Cone Sul do Continente com a imediata incorporação do Uruguai, o que permitiu o inteligente impulso do Presidente Júlio Sanguinetti, e o posterior do Paraguai, uma vez recuperada a sua democracia" (CINTRA e CARDIM, 2002, p.36).

    Surpreendentemente, de acordo com o próprio Alfonsin, ao ser assinado o Tratado de Assunção em 1991, o fio condutor político foi diluído com a discreta exclusão dos seus agentes, tanto no campo político quanto social. "[... ] concebido, fundamentalmente, como um meio para aprofundar a integração econômica regional, com a finalidade de melhorar a inserção dos países membros na economia mundial, o Mercosul vai se desenvolver sob a percepção de vantagens econômicas concretas, segundo o Presidente argentino.

    O Mercosul configurou-se, então, como um subsistema da economia internacional, enquanto um acordo regional, englobando os espaços da política, como instrumento operacional do sistema, e só de maneira indireta e rarefeita também da cultura. O Acordo expressava-se, desde a sua implantação em 1991, por percepções integracionistas na área do comércio, a partir de comportamentos governamentais, empresariais e, eventualmente, dos trabalhadores, fundamentando-se num território contínuo. Era restrito ao grupo de países do Cone Sul, sem a presença do Chile.

    Apesar da continuidade territorial, os demais países da América do Sul não teriam no Mercosul qualquer privilégio fora daqueles fluxos comerciais de investimentos e redes de integração que ocorriam ao abrigo dos acordos da Associação Latino-Americana de Integração (Aladi). Argentina e Brasil apareciam como o núcleo duro do processo de integração sub-regional. Junto com o Paraguai e o Uruguai tinham parte de sua história compartilhada, ora por sucessos e insucessos nos diálogos, ora por conflitos ou atitudes solidárias, ora por iniciativas ambíguas dos respectivos governos.

    A grande virtude do Mercosul, registrada no Tratado de Assunção e que deu origem à sua criação, é que estava implícita a aspiração da impossibilidade histórica, da irreversibilidade do pacto que formalizou o vínculo associativo, o que não assegurava, entretanto, um processo linear de desenvolvimento comum nem individualizado. A experiência, inclusive a da União Europeia, demonstrava um caminho sinuoso, marcado por momentos de inflexão, fomentadores de crises ou retrocessos, mas que, na visão otimista do ex-embaixador argentino Félix Peña (2001, p.18), não tinham expressão suficiente para interromper o instituto da integração desabrochado na região.

    Para o ex-embaixador argentino no Brasil nesse período, o Mercosul devia ser visto de quatro maneiras: como uma realidade regional; como uma ideia estratégica; como um processo formal; e como portador de uma imagem da região. Como uma realidade regional, ele via diferentes redes de interação social no espaço do território contínuo e, inclusive, uma história compartilhada. Como uma ideia estratégica, a par a questão da globalização, pontuava que a integração teve, em passado recente, muito a ver também com a necessidade da afirmação da restauração democrática, já que o Cone Sul chegou a institucionalizar um modelo de representação política nacional autoritário e ditatorial que apresentava, não apenas traços comuns, mas também políticas e atividades repressivas conjuntas, como foi a Operação Condor (Argentina/Brasil/Chile/Uruguai). O Mercosul foi descrito também por ele como um processo formal constituído a partir de uma união alfandegária, e que se propunha a caminhar em direção a um mercado comum,

    [...] para somar forças para as negociações comerciais internacionais, para conseguir uma harmonização dinâmica dos interesses nacionais e para formular princípios, critérios e regras de jogo comuns [...] cuja finalidade é pautar comportamentos dos protagonistas governamentais e privados, assim como resolver as controvérsias comerciais (PEÑA,2001 p. 7).

    A legitimidade do Tratado assentava-se em direitos e obrigações entre os sócios, que asseguravam acesso irrestrito ao mercado integrado e ao tratamento preferencial em relação aos bens e serviços originados dos países membros, cujo vínculo associativo consistia no compromisso para o desenvolvimento de um mercado comum de longo prazo, representado, logo no seu início, por cerca de 200 milhões de consumidores.

    O êxito da experiência foi muito discutido em termos das previsibilidades que ofereciam aos investidores e do bem-estar futuro para as populações. O Mercosul começaria a operar como um lugar de fala comum de um grupo de países preocupados com a inserção global e como um locus de realização do capital por um número reduzido de empreendedores, em grande parte estrangeiros localizados na sub-região. As populações desconheciam praticamente o conteúdo do Acordo e os cidadãos mais informados se surpreendiam com o diálogo Argentina x Brasil, cujas relações históricas eram emuladas por um discurso de origem geopolítica de desconfiança mútua.

    Pragmático, Félix Peña afirmava que a imagem pública do Tratado, ou seja, a percepção que os cidadãos, investidores e terceiros países teriam do Mercosul estava atrelada à qualidade e à eficácia dos instrumentos legais e burocráticos que vinham tornando factível o processo de integração.

    É a tradução de tal capacitação em expectativas e comportamentos concretos. Quanto mais débeis, imprecisos e voláteis forem estes sinais - ou quanto pior for sua capacidade - menos impacto terá em seus destinatários, afetando, dessa forma, sua eficácia, ou seja, os resultados esperados. {...}. A imagem não pode ser resultado somente do pronunciamento retórico, do discurso {...}. O olho clínico, especialmente o do investidor e o dos terceiros países, com quem se pretende negociar, parará para analisar a qualidade dos compromissos assumidos, sua solidez, sua exigibilidade e o potencial para penetrar na realidade, sua projeção e sua permanência no tempo. (PEÑA, 2001, p. 8)

    Para o embaixador da Argentina, os discursos de governos e governantes na América Latina sempre soaram como sonhos e intenções. Até são capazes de mobilizar multidões, mas o que sempre sustentaria a imagem institucional do Mercosul seriam, salientou, as respostas satisfatórias às propostas operacionais, como a de uma coordenação macroeconômica regional capaz de neutralizar nos demais associados um ciclo político ou econômico negativo que afetasse um dos membros. As incertezas decorrentes das respostas mal articuladas, as soluções incompletas tornariam públicas as debilidades do bloco e alimentariam forças centrífugas dentro da própria instituição, concluiu.

    Ao falar da imagem do Mercosul, Peña mostrava alguns dos pilares que deveriam ser levantados para a formatação da imagem do Mercosul. Seus paradigmas liberais não agregavam valores sociais e culturais regionais identitários que, no mínimo, representariam um diferencial no processo de integração perante outros grupos associados. A visão pragmática do representante argentino encontrou abrigo na fala do historiador chileno Eduardo Valdés², que sempre viu nos processos de integração na América Latina "muita retórica e pouca consistência". É assim que, segundo ele, percebe-se a contribuição, por exemplo, de filósofos, sociólogos, historiadores, políticos latino-americanos e diplomatas nas iniciativas integracionistas no continente.

    Em que pese o reconhecimento dos esforços de alguns líderes regionais na busca da integração na América do Sul, o intelectual chileno defendia, entretanto, algo mais modesto, "restrito inicialmente ao Cone Sul, como uma forma de viabilizá-la mais rapidamente; bem como a criação de redes regionais integradas na área acadêmica, empresarial, militar, social devidamente amparadas por sistemas de comunicação". Lembrou que a América de hoje era pior do que aquela projetada para o futuro, na passagem do século XIX para o século XX. Segundo ele, havia uma expectativa de que superaríamos em desenvolvimento, inclusive a Europa, "mas hoje estamos entre as regiões mais pobres do mundo".

    Professor da Universidade de Santiago, no Chile, onde se ocupa de questões da América Latina, Valdés insistiu no fato de que a integração dos povos da América foi sendo adiada no continente por sucessivos governos medíocres e outros equivocados, incapazes de encaminhar o processo; e até sanguinários, determinados a defender interesses fisiológicos das elites nacionais e internacionais. Por outro lado, observou que, toda vez que havia um golpe de Estado ou fracassava um governante, os intelectuais encontravam os culpados entre militares, empresários ou multinacionais.

    Os intelectuais sempre se colocaram como inocentes: nunca assumiram a sua própria responsabilidade nesse processo{...} um grande número deles sempre se beneficiou de recursos de instituições nacionais e internacionais para estudar os problemas da América Latina e propor soluções, mas é praticamente pífia a sua participação no processo. Para ele, isso é também fisiologismo, um tipo de corrupção.

    Valdés afirmou, ainda na mesma conferência, que "A intelectualidade da América fala de integração para ser simpática ou politicamente correta, mas falta qualidade e densidade cultural para defendê-la. Elogiado pelos êxitos alcançados, entende ele que o Mercosul se ressente de uma política de integração científica que possa gerar tecnologias próprias e, sobretudo, fundamentos identitários comuns". Segundo o escritor chileno, os intelectuais e cientistas da América Latina participam com apenas 3% da produção científica no mundo e – comparando- informou que a contribuição dos Estados Unidos chega a 35 %. "Temos de pensar na própria geração de tecnologias e até mesmo num sistema jurídico que dê a ela sustentação", enfatizou.

    Afirmou também o intelectual chileno que a América Latina padece do vício de esperar que o Estado realize a integração, herança da colonização. Nesse sentido, destacou que o Mercosul tem contribuído com um modelo diferenciado ao promover o processo, reunindo empresários, sindicatos e, em alguns casos, também representações da sociedade civil. "Precisamos pensar em termos de colaboração uns com os outros e não ficar esperando as soluções provenientes dos Estados".

    Embora a sede do Mercosul esteja localizada em Montevidéu, no Uruguai, e o Tribunal de Solução das Controvérsias fique em Assunção, no Paraguai, os indicadores econômicos mostram o peso das relações comerciais, políticas e até sociais do Mercosul concentradas no Brasil e na Argentina. As discordâncias estiveram, quase sempre aí, e as concordâncias também. Como "players dentro do Mercosul, Uruguai e Paraguai, cujas economias se apresentam assimétricas dentro do grupo, sempre ocuparam um plano distinto e sensível, por isso, qualquer crise nos dois países do chamado núcleo duro" afeta vigorosamente os dois últimos, que nem sempre são consultados no caso de iniciativas políticas nacionais, como ocorreu com a desvalorização cambial no Brasil: somente os argentinos tomaram conhecimento prévio.

    Por outro lado, alcançar a concordância entre Brasil e Argentina sempre foi muito difícil. Os dois países apresentam interesses comuns no campo da economia, mas expectativas hegemônicas e culturais diferenciadas dentro do bloco e na própria região sul da América. De qualquer maneira, reconhece-se que as discordâncias políticas entre os membros do bloco vão sendo superadas a cada crise, como foi o caso da tentativa de golpe de Estado no Paraguai ou da queda do governo na Argentina. No passado, a intervenção de outros países da região em questões internas servia para alimentar as desconfianças dos nacionais. A Guerra do Paraguai, a presença brasileira no Uruguai ou mesmo em Buenos Aires deixaram esses ranços. A experiência do Mercosul parece ter neutralizado, contudo, essa possibilidade para assegurar a integração pacífica na região.

    A problemática cultural entranhada no modo de vida das populações é tratada, entretanto, sem qualquer prioridade. Existe uma Comissão de Integração Cultural, cujo funcionamento fica à mercê dos acordos e negociações centrados prioritariamente nas soluções de questões econômicas e, eventualmente, no campo político, sempre no viés da Indústria Cultural e na rede de conexões que a compõe.

    As diferenças culturais mais acentuadas dentro do bloco começam pela origem, vínculos ibéricos e pelo idioma. Inflexões históricas entre Argentina e Brasil no campo da política ou dos ideais nacionais, traduzidas para o imaginário popular, refletem-se em práticas sociais e culturais que, ao longo do tempo, contribuíram para alargar a distância entre as populações dos dois países que, na realidade, não se comunicavam, senão pelos fluxos turísticos sazonais ou nas batalhas futebolísticas, momentos em que afloravam e ainda afloram, estimuladas pelo sensacionalismo jornalístico, as rivalidades de ambas as partes. Essas diferenças emergem, às vezes, interdiscursivamente, nas negociações dentro do Mercosul. A instituição vem se transformando num lugar de fala³ do bloco, quase sempre emulado por uma crise externa ou nacional, alimentada por terceiros, e que, às vezes, tem reflexos sobre os demais países membros e associados.

    O segundo aspecto problemático, e que envolve a instituição na sua dimensão regional, é uma questão de confiança, de autoimagem, que chamaria de uma insegurança identitária. É o fato de os analistas qualificados do Mercosul, sobretudo da imprensa, com seus jornalistas correspondentes, enviados especiais e editores internacionais, mas também dos empresários, parlamentares, de diplomatas ou segmentos com a responsabilidade de conduzir os entendimentos para o funcionamento da instituição insistirem sempre na concepção metafórica de que o Mercosul, desde o início, foi sempre uma união alfandegária imperfeita, formulação que significa o alcance parcial da aplicação das tarifas comuns ou os desequilíbrios tarifários entre os países, tão naturais na história de outros acordos, como o da Comunidade Europeia e do próprio North American Free Trade Agreement (Nafta), e que, nem assim, são chamados de imperfeitos. Esses desajustes são parte intrínseca do processo de aperfeiçoamento dos acordos. Isso alimentou durante muito tempo uma insegurança em relação à possibilidade de êxito na formação do bloco.

    Assim, ao se colocar em dúvida a imagem institucional da integração, num lugar de fala dos próprios protagonistas, os investimentos são afetados devido às imprevisibilidades de que são tomados os investidores e empresários. Tão grave quanto tudo isso, mas que ninguém chegou a testar a sua efetividade, tem sido o papel da imprensa dos países membros ao trazer essa questão de caráter técnico duvidoso para discussão pública, abrindo o debate, a partir de questões casuísticas, em diversas ocasiões, por exemplo, indagando abstratamente (para o público leitor dos jornais) se não seria mais prudente recuar, antes de se pensar em um mercado comum, estabelecendo simplesmente uma zona de livre comércio ou promovendo um um aprofundamento da união alfandegária.

    Do seu lugar de fala, a imprensa veiculou, ao longo desses 15 anos de Mercosul, parafrástica e sistematicamente, discursos de fontes, nem sempre insuspeitas, ou fez interpretações particulares, insinuando, em diferentes ocasiões, a possibilidade de se "dar uma pausa nos compromissos comuns", gerando uma inconsequência discursiva, precarizando o ambiente da integração econômica e instalando a insegurança para o investidor e a incerteza para os leitores, audiências ou telespectadores.

    Desse modo, os momentos de inflexão dentro do bloco, amparados no discurso insistente da imprensa, que tem explorado, sobretudo, as contradições internas, a paciência dos diplomatas e a pouca informação dos parlamentares, contribuíram, em determinados momentos, para desestabilizar o mundo das representações comuns, contidas no espaço do Mercosul. Mas, aos poucos, no embate dos discursos, a integração vai tomando forma, a partir de novas ressignificações, e caminhando em direção às populações nacionais, gestando vagarosamente um imaginário próprio e uma confiança mútua cada vez maior.

    1.1 MARCAS FUNDACIONAIS DA AMÉRICA

    A historiografia da América tem vacilado todo o tempo na descrição de marcos culturais fundacionais da americanidade, enquanto uma identidade continental, a começar pelo relato do próprio descobrimento, cuja precedência não encontrou ainda um consenso, a partir do qual os historiadores descrevem o processo de ocupação e desenvolvimento da região. Os registros marcantes da história continental estão excessivamente concentrados no momento do desembarque europeu no território, particularmente a partir de Cristóvão Colombo, legando à antropologia a responsabilidade de contar a história regional, antes da presença desses descobridores e conquistadores. Coube, portanto, aos antropólogos, nas suas diferentes ramificações, desvendar os caminhos do homem na América e suas grandes civilizações - incas, araucanos, guaranis, etc. – identificadas pelos estudos etnográficos como fontes da História Pré-Colombiana (CÁCERES,1992, p.13-34).

    Assim, a história da experiência humana no continente foi, inicialmente, confundindo-se com os relatos oficiais, os valores, os costumes e as práticas trazidas pelos europeus, seja na forma da conquista militar ou pacífica; seja na forma religiosa doutrinária ou seja na convivência quotidiana com as populações originais. Coube de fato à antropologia tentar reparar equívocos e fornecer os meios para auxiliar as tentativas de recuperação de raízes identitárias das culturas nativas. Ao longo do processo de ocupação territorial, perderam-se, contudo, matrizes e traços que fundamentavam o imaginário, a coesão, as diferenças tribais, ou as representações que tornavam evidente a ritualização da vida social dessas civilizações (BAUDIN,1970), concentrando a historiografia da América nas suas vertentes latina, inglesa ou holandesa.

    É curioso como cada autor contemporâneo procura classificar e indexar a partir dos seus lugares de fala a história da América, traçando-a de forma pretensiosamente verídica de maneira temática ou instituindo etapas superpostas para mostrar os caminhos do continente e seus povos em direção ao futuro. A história oficial da região foi contada por diversos autores, entre eles Pierre Chaunu (CHAUNU: 1969) que sistematizou uma periodização temporal, definindo o curso dos acontecimentos no continente como iniciados com o descobrimento, destacando o momento da "conquista, o período colonial", a independência e a república. Essa periodização da História da América ganhou praticamente todas as esferas dos estudos históricos sobre a região. Arciniegas (1951), um autor de reputação invejável no campo historiográfico, apresenta uma visão um pouco diferente, dizendo que não existe propriamente uma história da América, mas hay quatro historias de quatro Américas", que ele chama: a primeira, de América Indoespanhola e as demais, de América Portuguesa, América Inglesa e América Francoinglesa, sem qualquer destaque que demonstre a importância de uma sobre a outra.

    A América Indoespanhola, diz Arciniegas (1951) "[...] en donde la lengua más común es el español, pero cuya historia se remonta siglos atrás de la llegada de Colón". Na sua compreensão, essa América, povoada de civilizações pré-colombianas, só era considerada um Novo Mundo na visão dos europeus, que se surpreenderam ao tomar conhecimento de que a América apresentava traços culturais e modelos civilizatórios próprios, diferentes das sociedades até então conhecidas. Cunhada nos relatórios e notícias do quotidiano pelo desconhecimento e o encantamento dos colonizadores, a expressão Novo Mundo gerou nos governos, comerciantes, cientistas e cidadãos europeus, interpretações etnocêntricas em torno de expectativas, deslumbramentos e curiosidades que alimentaram um intenso fluxo de viagens, relações ultramarinas e ideias. Com elas, um imaginário sem quaisquer vínculos com as representações de mundo das populações originais que, na medida em que perdiam seus bens materiais, seus símbolos, deuses e líderes eram destituídas também da própria identidade.

    A América Portuguesa seria a vertente seguinte da análise de Arciniegas que a descreve a partir da sua exuberância natural e que se caracteriza, no seu entender, pela ocupação territorial desenvolvida por cidadãos comuns, em estágio civilizatório recém-saído de um estado medieval, quase primitivo e que se sentem atraídos por um território paradisíaco de riquezas desconhecidas. A sua descoberta e apropriação viria fortalecer o prestígio da presença portuguesa em plena expansão no mundo. Como gente do mar, os portugueses percorrem e se instalam na costa oceânica do leste continental, pulverizando-a de pequenas vilas de modo a tornar presente a sua marca nos territórios. Ao contrário dos espanhóis, preocupados na apropriação do ouro da América, independente da forma violenta ou pacífica , o que leva os conquistadores a promoverem um confronto destrutivo de culturas e civilizações originais , os portugueses procuravam atraí-las para o seu convívio (ANCHIETA, 1989), introduzindo , formas de cooptação, ao invés de armas, valores e costumes em direção a um processo civilizatório peninsular, fundado nas práticas religiosas e, por outro lado, também absorvendo práticas quotidianas das populações nativas.

    Os ingleses teriam chegado atrasados no que Arciniegas chama de América Inglesa. Iniciam sua aproximação com o continente recém contatado, primeiro com a pilhagem de navios espanhóis e, em seguida, com a instalação, a exemplo dos portugueses, de colônias comerciais ao longo da costa, a partir da região onde se localiza hoje a cidade de Boston, descendo em direção à Flórida. Apresentam, contudo, um traço diferenciado das outras experiências americanas: trazem consigo o espírito da autonomia. Antes de partir para a América, os peregrinos já estavam discutindo a ocupação da terra, a questão da mão de obra livre e escrava, a desvinculação dos novos territórios da monarquia inglesa, a adoção de modelo republicano de governo (ARRUDA E PILETTI, 1995), e o distanciamento intencional da igreja oficial. Espanhóis e portugueses seguirão, por mais três séculos, estreitamente dependentes das respectivas coroas e dividindo a administração dos novos territórios com a Igreja.

    A quarta é a América Francoinglesa, fruto da penetração dos franceses na região dos lagos canadenses que vai se estender por todo o território anterior ao das treze colônias inglesas até o Mississipi. A França recusava-se a reconhecer a hegemonia espanhola, portuguesa ou inglesa sobre o continente americano. E assim, foi ocupando diversos pontos do continente. Ao descobrir o rio São Lourenço, penetrou pelo território do atual Canadá, indo fundar suas colônias na região dos grandes lagos. Terminou por ver grande parte das terras conquistadas sendo transferidas (1756-1763) definitivamente aos ingleses (CÁRCERES, 84), transformando-se num território inglês com matizes franceses, vindo a integrar, em definitivo, a área dos Estados Unidos após a independência (1803). Estiveram também nas Antilhas e na América do Sul, ficando suas bases no território que ficou conhecido como a Guiana francesa. Os ingleses vão avançar também pelo rio da Prata e aí estabelecer suas feitorias em Buenos Aires e em Assunção. A presença do colonialismo europeu no continente americano, ocupando-o de maneiras diversas e em diferentes pontos, vai gerar um equilíbrio de forças entre os países, marcando uma nova etapa na história dos povos da América, até então desconhecida, convertendo-a num grande experimento de hibridismo racial e étnico.

    O Novo Mundo ganharia em definitivo seu nome próprio, com o impressor das cartas de Américo Vespúcio, o cônego (de origem hoje belga), Martin Waldseemuller (1480-1521), que o chamou de "Amerige" – as terras de Americus – referindo-se ao navegador italiano Américo Vespúcio, num livro com 103 páginas, no qual fala da descoberta de Vespúcio da "quarta orbis pars". Era o Universalis Cosmographia Secundum Ptholomei Traditionem e Et Americi Vespucci Aliorum Lustrationes (1507). A partir da leitura das cartas, Waldseemuller produziu um mapa em 12 blocos de madeira, com tiragem de mil exemplares (1507), dos quais resta uma cópia na Biblioteca do Congresso nos Estados Unidos. As cartas do navegador genovês foram traduzidas e interpretadas, no Brasil, por Eduardo Bueno (2005). Ironia ou curiosidade, o certo é que o Certificado de Nascimento da América (America´s Birth Certificate) tenha sido emitido pela imprensa. Waldseemuller era um impressor e teria editado diversos pequenos jornais na sua região de origem. Outro aspecto intrigante é que o mapa de Waldseemuller já reconhecia geograficamente quatro áreas distintas no continente: Américas do Norte, Central, do Sul, e o Caribe.

    Cada uma dessas unidades territoriais foram se subdividindo, ao longo da ocupação, em Departamentos Ultramarinos, segundo a capacidade das cinco principais metrópoles colonizadoras do continente, incluindo-se aí também a Holanda, e depois em regiões e países independentes, autônomos e soberanos.

    A conquista da autonomia política regional chegou, porém, somente três séculos depois do desembarque, no continente, dos primeiros conquistadores. As lutas pela independência e pela divisão territorial, organizada pelos nascidos na América, embora descendentes dos europeus, com a frágil participação dos nativos originais, fragmentou também etnias e culturas. A civilização Asteca, por exemplo, que se estendia até quase a península do Yucatã, teve seus traços remanescentes e valores culturais repartidos territorialmente e depois, desqualificados culturalmente por força da espada dos conquistadores, das disputas comerciais, da religião, da língua, dos costumes e valores dos colonizadores. O mesmo se deu com os Incas, cujo espaço geográfico original transformou-se em território de seis países: Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Chile e até uma parte do território da Argentina de hoje.

    Flagelado pela colonização que usurpou suas riquezas materiais, fragmentou os territórios e esfacelou suas expressões culturais, o continente teve ainda agravadas suas marcas identitárias pela ação privada da caudilhagem (ANDRADE, 1998.), constituída inicialmente por bandos de espanhóis que se espalharam pelo continente apropriando-se de terras e riquezas, a partir de guerras entre rivais, na disputa de despojos da conquista (COE, 1984, p.22). A Coroa tentou controlar a ação desses conquistadores e seus descendentes ávidos de poder e de riqueza por meio da instituição de um sistema de encomiendas, recomendando, contudo, a preservação da natureza comunal das populações indígenas. Mas, contraditoriamente, atribuiu aos encomenderos autoridade, poder e direito de usar o trabalho indígena e de cobrar tributos, gerando, ao mesmo tempo, um regime de escravidão e de violência contra os nativos, denunciado pelo padre Bartolomé de las Casas (1484-1566), e que ficou conhecida como a Lenda Negra da América (COE, 1984, p.22).

    Os modelos das encomiendas (MARIÁTEGUI, 1894-1930) selou a ansiedade de poder dos espanhóis e descendentes que, enraizados local ou regionalmente na relação secular da convivência cotidiana com as populações primitivas, fundiram-se com eles, assimilando parcialmente costumes e práticas sociais locais e regionais, gerando uma cultura e uma etnia híbridas, que os caracterizaram como criolos, descendentes de europeus nascidos e domiciliados na América. A dominação criola conduziu a práticas culturais sincréticas, contribuindo para a desfiguração gradual das culturas e valores nativos, ao introduzir no cotidiano um ritual de representações de progresso e de qualidade de vida transmigrado de maneira precária do continente europeu, distante das expectativas das populações nativas do continente americano. Esses criolos vão ter seu perfil construído simbolicamente na figura, especialmente do caudilho, que começa pela desobediência aos recolhimentos de impostos promovidos pelas corrigidorias, passa pela autonomia da política local, pela indisciplina em relação às ordens da Coroa e vai até a conquista de uma patente militar nas lutas pela emancipação.

    1.2 PAN-AMERICANISMO E INDEPENDÊNCIAS

    As lutas pela independência na América Indoespanhola produziram massacres de populações inteiras, personalizaram mártires indígenas, como Tupac Amaru (VALCARCEL, 1965), e, sobretudo, generais, atribuindo um caráter cívico ao imaginário das batalhas, a partir de um inimigo comum, que seriam as metrópoles, combatidas pelas lideranças regionais, entre as quais estão Simon Bolívar, San Martin, Miranda, O’Higgins. Isso alimentou o poder entre os caudilhos de várias regiões, dando um caráter solidário fundacional para a América que será conformado em ideais e manifestações de esperança em relação à criação de uma comunidade de nações ou estados confederados entre os antigos territórios ibéricos na América, conforme preconizaram O’Higgins e Simon Bolívar (Carta da Jamaica, 1815).

    O registro da primeira tentativa de um projeto comum para a América não começa, entretanto, com os caudilhos da América, mas com os próprios colonizadores. Teria sido o momento da discussão do Tratado de Madrid, em 1750 (COE, 1990, p.154) com o texto de conciliação entre portugueses e espanhóis proposto pelo padre Alexandre de Gusmão, nascido no Brasil e que servia à corte de D. João V, em Portugal. Nele, os soberanos concordavam em não fazer e nem alimentar guerras entre colonos na América. O Tratado falava da Paz Perpétua entre as duas Coroas.

    Por sua vez, na Espanha, o peruano Pablo Olavide, sob a influência do Iluminismo, promoveu em Madrid, em 1795, uma Junta das Cidades e Províncias da América, com finalidades libertárias, mas para ser realizada em conjunto na América Meridional, ou seja, apenas na América do Sul. No Chile, Juan Martinez de Rosas, autor da Declaração de Direito do Povo Chileno, fez uma apologia à solidariedade do Chile com as demais sociedades hispano-americanas e veiculou a ideia de uma confederação para garantir a independência em relação à Europa e evitar conflitos interamericanos, propostas que vão encontrar ecos em Bernardo O’Higgins.

    Francisco de Miranda já antevira a possibilidade da união continental quando, em 1790, apresentou um plano de solidariedade continental. Os argentinos San Martin e Bernardo Montegudo, que participaram das guerras de libertação no Chile, no Peru e na própria Argentina, defenderam a ideia de um congresso panamericano. O venezuelano Simon Bolívar havia exposto também suas ideias em Londres, num artigo escrito para a edição do jornal Morning Cronicle, de 5 de setembro de 1810, no qual afirmava que se os venezuelanos tivessem de lutar contra a Espanha, ele convidaria todos os povos da América para se unirem numa confederação. Suas proposições começaram a ser difundidas rapidamente: em 1812 (Manifesto de Cartagena) e depois, em 1814, numa circular, conclamou a união de toda a América do Sul em um único corpo.

    A necessidade de defesa contra as ameaças de intromissão e invasão de potências europeias e de livrar-se da tutela espanhola, das raízes da colonização e da cultura híbrida dela decorrente terminaram por forjar um ideal panamericano, entendido como um movimento de solidariedade continental, a fim de manter a paz nas Américas, preservar a independência dos Estados e estimular seu inter-relacionamento. A solidariedade continental vai ganhar então dois formatos: um por meio dos ideais do venezuelano Simon Bolívar (1783-1830), que participou de lutas de libertação na Colômbia, Peru, Bolívia, Equador e na Venezuela, e que foi chamado de Bolivarismo:

    É uma idéia grandiosa pretender formar de todo o Novo Mundo uma única nação em que todas as partes sejam unidas entre si e em conjunto por um mesmo elo. A origem é comum, assim como a língua, os costumes e a religião, por conseguinte, deveria ter um só governo que confederasse os diversos Estados que hão de se formar, mas não é possível porque climas distintos, diversidade de situações, interesses opostos, a dessemelhança de caracteres dividem a América.

    Em 1824, Bolívar enviou uma carta aos governos americanos convidando-os para a reunião de organização da Confederação dos Estados Americanos. O Congresso do Panamá, no qual a questão seria discutida, reuniu-se entre 22 de junho e 15 de julho de 1826, e contou com representantes do México, da Grã-Colômbia, do Peru e das Províncias Unidas de Centro-América e, como observador, os Estados Unidos.

    A Conferência fracassou nas suas propostas devido à resistência do Brasil e dos Estados Unidos à ideia e às manobras da Inglaterra para evitar um sistema americano forte. Os ideais panamericanistas continuaram vivos, mas os EUA e o Brasil foram excluídos das discussões: o primeiro, por causa da invasão do México e pretensões territoriais nas Antilhas, e o Brasil, devido não apenas ao regime monárquico contrário ao republicanismo americano, mas também às intervenções constantes no Prata.

    A outra marca do panamericanismo surgiu com a Mensagem do presidente James Monroe ao Congresso dos Estados Unidos em 1823, na qual, imbuídos de espírito protestante fundamentalista, incorporaram no seu imaginário fundacional a ideia de uma missão - destino manifesto, e assim contestaram o direito dos europeus de intervirem na América, sob a alegação de que a América era para os americanos. Foi a chamada Doutrina Monroe, pela qual os EUA manifestavam preocupação com sua própria segurança, diante da presença sistemática de estrangeiros em territórios americanos. O panamericanismo norte-americano apresentava-se, entretanto, bem distinto da proposta comunitária bolivariana, ao estender sua preocupação particular com a segurança comunitária para todo o Continente.

    Os Estados Unidos fechavam-se para a Europa, procurando expandir seu território, entretanto, dentro do próprio continente, comprando, anexando ocupando terras e até pilhando riquezas na terra e no mar (VASCONCELOS, 1882-1959). O futuro reservava a surpresa do isolamento territorial dos povos americanos, na medida em que, na disputa pelo Poder, os caudilhos foram definindo os limites espaciais de cada um.

    A preocupação com a segurança trouxe a independência, relações comerciais sub-regionais diretas com as metrópoles e o comércio externo amparado, às vezes, por um único produto tornando, a cada dia, os novos países distantes uns dos outros e dependentes cada vez mais dos comerciantes ingleses, espanhóis e franceses. Isolado pela cordilheira dos Andes, pela floresta Amazônica, e pelo regime monárquico, o Brasil, que faz limites com dez dos doze países da América do Sul, localizado no leste do continente, ficou de costas para os seus vizinhos, relacionando-se diretamente com a Europa, mantendo sua indiferença para com os problemas dos demais países e culturas continentais, ao que se somou o receio das conturbações republicanas das lutas pela independência. Por sua vez, as lideranças republicanas da América, incluindo-se o próprio Simon Bolívar, viam com desconfiança o regime monárquico no Brasil e com antipatia a escravidão, o que deixava o Brasil quase sempre fora dos projetos unionistas no continente.

    [...] na hora da independência, nem o Brasil – nem nenhum desses novos Estados ibero-americanos – dispunham de governos e economias nacionais efetivas, nem tampouco um sistema político e econômico regional. Como conseqüência, na primeira metade do século XIX, o Brasil e a América Latina foram colocados numa posição periférica, dentro da geopolítica mundial, liderada pelas grandes potências européias. E foram transformados, durante todo o século XIX, em tratados infames. (FIORI, 2006).

    No início do século XIX o que se conhecia como América (Indo) Espanhola era, na verdade, inglesa. A indústria e o comércio se apresentaram como uma opção nova para os colonizadores. A Inglaterra dominava praticamente o comércio mundial e, com a sua produção fabril e o comércio de escravos tornou cativos os mercados consumidores na condição de exportador de produtos industrializados e importador de matérias primas. Da América saía o cobre do Chile; do Peru, o guano e o nitrato; de Cuba, o açúcar; dos países do Prata, o couro; do Brasil, a borracha e o açúcar. Com a presença dos ingleses na América, Buenos Aires, que era uma das regiões mais atrasadas do continente, tornou-se o que Coe (1991, p.162-163) chamou de "o centro de gravidade da vida econômica" da região do Prata, sendo o ponto de contato direto com Liverpool, Glasgow ou Manchester. Inglaterra e França não apenas controlavam o comércio como sentiam-se à vontade para dar opinião e até intervir nos assuntos políticos dos platinos.

    Sob a ameaça de invasão pelas forças napoleônicas que já ocupavam o Poder na Espanha, a Família Real portuguesa fugiu para o Brasil apoiada pelos ingleses. O apoio dos ingleses a Portugal, a ocupação francesa e a baixa qualidade dos produtos consumidos pelos brasileiros vão inspirar D. João VI a abrir os portos do Brasil às nações amigas, beneficiando essencialmente os ingleses. Instituiu-se então, em 1810, o Tratado de Comércio e Navegação, no qual ficou estabelecida a primeira tarifa aduaneira diferenciada. Fixava-se uma taxa alfandegária de 24% sobre as importações, sendo que aquelas originadas de Portugal pagariam 16%. Para os produtos ingleses foi criada uma tarifa especial de 15% (COTRIM, 1995, p.146). Os privilégios ingleses no Brasil e, particularmente, na região platina, passavam a ter o selo Real. E assim foi durante todo o Império, estendendo-se para a República, até a chegada definitiva dos norte-americanos no início do século XX.

    Nesse ínterim, seguiram-se outras reuniões de caráter integracionistas entre Peru e Chile, Chile e Argentina, Peru e Colômbia, sem grandes resultados. Mas, de qualquer maneira, o Brasil continuava sempre distante. Em abril de 1890, terminou em Washington a Primeira Conferência Internacional Americana, da qual participaram 18 países. Nela foram aprovadas resoluções de condenação a guerras fraticidas no continente, criou-se um mecanismo de arbitramento para solução de eventuais divergências interamericanas e aprovou-se a criação da União Pan-Americana, batizada inicialmente como Escritório Comercial das Repúblicas Americanas, com sede em Washington⁵. Significava no fundo uma opção pela hegemonia ideológica e comercial norte-americana sobre o Continente, em detrimento da presença e das relações com os europeus. O projeto fracassou devido, sobretudo, à intervenção contrária da Argentina, representada por Sáenz-Peña. Contudo, a assembleia tornaria mais evidente a percepção da solidariedade continental, que resultaria na criação da Organização dos Estados Americanos (OEA), logo após a Segunda Guerra, para ajuda e cooperação técnica, mas também com poderes de intervenção nos Estados-membros. A Organização começou a perder prestígio, quando, por pressão dos Estados Unidos, aprovou a expulsão de Cuba.

    1.3 INTEGRAÇÃO NA AMÉRICA DO SUL

    A Proclamação da República no Brasil foi recebida com júbilo praticamente em toda a América Latina e, particularmente pelos vizinhos (QUINTÃO, 2003). A monarquia brasileira com suas intervenções territoriais em vários pontos do continente e, particularmente, a partir da Guerra do Paraguai, era vista como um obstáculo à integração continental já desde o Congresso do Panamá. O isolamento brasileiro na América jamais foi tão completo como em 1862, quando o Império reconheceu precipitadamente a coroação de Maximiliano, no México. A Guerra com o Paraguai contribuiu para prolongar essa desconfortável situação. (MAGNOLI, 1997, p.196)

    A queda da monarquia no Brasil tornava a América toda republicana. Mas, internamente, o Estado brasileiro mantinha pequena a sua capacidade mobilizadora e de incorporação social. Aparentemente, houvera apenas uma mudança de forma de governo. Surgiram algumas indústrias, mas incipientes, e chegaram empresas estrangeiras, que começaram, inclusive, a se interessar pelo mercado interno brasileiro, instalando-se aqui. A economia da Velha República continuava, contudo, agrário-exportadora.

    No Brasil, mesmo depois da Proclamação da República, e pelo menos até a crise de 1930, o Estado seguiu sendo uma organização com baixa capacidade de incorporação social e de mobilização política nacional,, e sem nenhum tipo de pretensão expansiva [...] em 1938, o Brasil já havia se alinhado ao lado da nova liderança mundial norte-americana [...] colocado na condição de principal sócio econômico dos Estados Unidos, dentro da sua periferia sul-americana, [...]nem o Brasil foi incluído na categoria de países com acesso privilegiado aos mercados norte-americanos [...] (FIORI, 2006).

    O modelo econômico passara a sofrer a influência da modernização e do desenvolvimento dos Estados Unidos, apologizado por muitos intelectuais brasileiros, entre os quais destacava-se o escritor Monteiro Lobato. Concomitantemente, vai aparecer também uma outra corrente de intelectuais contrários à opção brasileira pelo modelo norte-americano. José Vasconcelos (1982-1989), Oliveira Vianna (1883-1951), Manuel Bonfim (1868- 1932) e outros vão questionar a tendência norte-americanista. Em 1909, à semelhança do que já se cogitava entre os centro-americanos, começou, entretanto, a emergir a ideia da integração do Sul, envolvendo os países da região da América Meridional, que ficou conhecida como o Cone Sul. Políticos e empresários do Chile, Argentina, Paraguai e do Uruguai chegaram a propor a criação da União Aduaneira do Sul que, embora não tenha vingado, acabou induzindo outras regiões a seguir aquele caminho.

    De 1909 para cá, a integração da América Latina continuou a ser lembrada no plano político, inicialmente com a União Pan-americana (1890) e depois com a Organização dos Estados Americanos (1948), mas nunca conseguira efeitos de caráter prático, nem mesmo a OEA, com sede em Washington, nos Estados Unidos. Em 1947, surge o Tratado Interamericano de Ajuda Recíproca (TIAR); em 1960 aparece a Associação Latino-Americana de Livre Comércio - Alalc; em 1961, a Assistência Recíproca Petroleira Estatal Latino-Americana; em 1968, a Associação Latino - América de Instituições Financeiras para o Desenvolvimento; em 1969, o Grupo Andino’; em 1975, o Sistema Econômico Latino-Americano - SELA; em 1980, a Associação Latino - América de Integração - Aladi e, a partir de 1991, o Mercosul.

    A grande contribuição para o desenvolvimento comum da maioria dos países da América Latina veio do modelo da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Alalc), e que tinha como base a substituição das importações, apoiada num Estado centralizador e indutor do processo de produção e industrialização. Mas, o modelo também se esvaziou a partir dos anos 80, em meio aos problemas da dívida externa e do impacto crescente da globalização dos mercados, e das novas tecnologias.

    O Pacto Andino, instituído em 1969, e que reunia Bolívia, Colômbia, Peru, Equador e Venezuela, depois de passar por vários estágios, decidiu trocar a substituição de importações, que caracterizou o modelo de desenvolvimento da América Latina, por um mercado livre regional (1995), adotando uma tarifa externa comum (TEC). E ainda, dentro do espírito puramente comercial, o Grupo tornou-se numa Comunidade Andina (1997), uma organização sub-regional Sul-americana e registrou algumas conquistas comuns no campo econômico A Comunidade Andina reúne uma população de 120 milhões de pessoas, uma área de 4,700,000 quilômetros quadrados e um produto interno bruto nominal de 280 bilhões de dólares.

    A superação do período autoritário na América do Sul e a redemocratização regional contribuíram para que velhas rivalidades, chamadas pelo ex-presidente da Argentina, Raúl Alfonsin, de "frustrações estéreis" no campo da política, fossem dando lugar a um processo de aproximação mais produtivo, levando países como a Argentina e o Brasil a desenvolverem acordos de entendimento comum e a defenderem a integração da América do Sul, consideradas as questões de interesse compartilhado da região, já identificadas pela Cepal, ao destacar a proximidade geográfica e as afinidades culturais.

    Relações comerciais crescentemente globalizadas começaram a sinalizar, a partir da metade dos anos 80, para a importância da formação de blocos de países ou regiões como forma de se proteger contra a velocidade, pouco comum, dos fluxos de capital que sugeriam a necessidade da abertura total dos mercados ao capital estrangeiro, com uma conformação desterritorializada, e que, ao financiar o comércio internacional, forçava a liberação das barreiras alfandegárias e fiscais.

    A discussão do processo de integração regional, gerado formalmente com a criação do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Organização das Nações Unidas, intensificou-se. Na década de 90 tornando-se já não mais uma evidência, mas uma necessidade a segmentação da economia mundial em blocos regionais, fazendo obsoletas as tradicionais negociações multilaterais entre os países agrupados pelo grau de industrialização ao redor de um ou mais países centrais. O endividamento externo inviabilizava as economias regionais. A criação da Comunidade Econômica Europeia alertou a América para a importância de se posicionar no novo cenário. Superando suas diferenças, Brasil, Argentina e, em seguida, Paraguai e Uruguai, iniciaram imediatamente os entendimentos para um processo de integração intrarregional, a partir de uma liberalização comercial.

    A iniciativa recebeu o apoio duvidoso do governo dos Estados Unidos, cujo presidente, George Bush, antecipou-se, contudo, emitindo uma declaração em 7 de junho de 1990, instituindo a Iniciativa para as Américas, numa tentativa de promover uma união continental a partir de três áreas: Investimentos, Comércio e Reestruturação e Redução das Dívidas , reforçando a importância do crescimento e da estabilidade da América Latina, mas sem oferecer diretamente qualquer solução para a questão da dívida externa, que sufocava todos os países do continente..

    A proposta do Mercosul adquire, a partir daí, uma relevância particular devido à tendência para a globalização e para a formação de blocos econômicos que tomava conta da economia mundial nesse momento. As respostas dos países do Cone Sul foram rápidas, alinhadas e compatíveis com a aplicação de políticas de abertura e privatização que já podiam ser observadas desde meados de 1988 na região. Saídos de uma década de recessão, estancamento e impossibilidade de aplicar suas políticas econômicas destinadas à recuperação do crescimento e do controle inflacionário, os novos dirigentes políticos, amparados em burocracias mais profissionalizadas seguem apostando que a região poderá incorporar-se de maneira honrosa e competitiva na reorganização da economia mundial.

    Bush parecia acenar com um apelo para a formação de um grande bloco continental de livre comércio entre sócios iguais. Ficava, entretanto, a pergunta: que condições reais existiriam para que a América Latina se integrasse num plano de igualdade, dadas as enormes diferenças de sistemas produtivos e tecnológicas e, por último, que apoio real significaria a iniciativa em relação às inversões e às modernizações que implicariam um projeto dessa natureza?

    Considerações dessa ordem redundaram em alguns frutos, servindo para despertar os países da região para as transformações que estavam ocorrendo no campo da economia. Cada país procurou reavaliar suas relações internacionais, do que emergiram novas ideias, planos e propostas de integração regional e sub-regional. Surgiu o Mercosul. A resposta veio rápida. A América Latina tornou-se um atrativo para os investimentos estrangeiros, absorvendo, em 1990, cerca de 80% do total desses recursos destinados a países em desenvolvimento. Em 1991, o sistema financeiro internacional tinha aplicado na região US$ 36 bilhões, o que expressava a confiança despertada para a região.

    Os blocos regionais de comércio tornaram-se ativos. O Tratado de Assunção, assinado em 1991, batizou o Mercosul, bloco que se tornou referência para a economia da região, de forma a atrair para o seu espaço, em 2004, até mesmo a Comunidade Andina, num acordo de blocos. Da mesma forma que ocorreu com o Congresso do Panamá, que instituía a ideia do panamericanismo, em que os Estados Unidos saíram na frente com a Doutrina Monroe, a criação do Mercosul fez com que os norte-americanos buscassem antecipar-se na formação de seu bloco regional, juntando-se ao Canadá, e depois ao México, no Nafta. Em seguida, visando a proteção de seus interesses continentais contra o assédio comercial da Europa e a autonomia crescente dos blocos da América, os norte-americanos iniciaram uma discussão sobre a integração continental, que veio a ser chamado de Acordo da Alca, que reunia 34 países do hemisfério, exceto Cuba.

    Um grupo de países menos pacientes com os Estados Unidos, como Cuba, Venezuela e, recentemente, a Bolívia, responderam à tentativa dos norte-americanos de juntar a América Latina dentro de sua área de influência e criaram a Alba – Alternativa Boliviana das Américas, cuja proposta apresentava, pelo menos teoricamente, uma forte conotação social e cultural. Outros, como o presidente do Brasil, Itamar Franco - ainda que no seu curto período presidencial - ansiosos, talvez, pela integração da América do Sul, começaram a discutir, paralelamente ao Mercosul, uma proposta de criação da Alcsa - Área de Livre Comércio Sul-Americana, não como um projeto geopolítico, explicou o embaixador brasileiro Rubem Barbosa - talvez numa contraposição ao projeto de Fidel Castro e Hugo Chávez - mas como uma iniciativa econômico-comercial, nos moldes do Mercosul, que refletisse o crescente dinamismo do comércio regional e o desejo de aprofundar os laços de toda natureza entre os países da América do Sul. Era uma alternativa para não acirrar os ânimos dos Estados Unidos, cujo governo dava sinais de preocupação com o processo de integração na América do Sul.

    A proposta de criação da Alcsa ganhou o apoio dos parceiros do Mercosul quando, no dia 10 de março de 1994, em Buenos Aires, através de um Comunicado Conjunto, os quatro governos assinaram o documento com o seguinte teor: Os Ministros do Exterior e das Finanças do MERCOSUL confirmaram o seu apoio completo à liberalização comercial entre todos os países da América do Sul, como um fim em si mesmo, para facilitar a entrada da região na economia do Hemisfério e do mundo. Posteriormente, a ideia da Alcsa foi adotada formalmente no âmbito do próprio Mercosul, em decisão tomada pelo Grupo do Mercado Comum, nos dias 23 e 24 de maio de 1994, em Montevidéu, sem que chegasse a afetar o funcionamento do bloco, num estágio de consolidação já bastante avançado.

    A Alcsa refletia, pois, segundo Barbosa, o regionalismo aberto constituindo-se numa proposta adicional e complementar ao Mercosul, como instrumento para a convergência negociada dos esforços de integração regional e hemisférica. Sua negociação, informou, vem sendo efetivada em estreita coordenação com parceiros no Mercosul e tem como objetivos fundamentais:

    • promover o desenvolvimento econômico e social, acelerando a liberalização comercial entre os países da América do Sul;

    • estreitar as relações entre o Grupo Andino e o Mercosul, aumentar a participação do Chile no processo de integração sul-americana e encorajar relações mais estreitas entre o Mercosul e outros países sul-americanos;

    • fortalecer a Associação Latino-Americana de Integração (Aladi) como fórum para negociação da liberalização do comércio regional;

    • encorajar a expansão do comércio dentro da região sul-americana, que já representa um mercado significativo para os países do Mercosul, especialmente o Brasil; e

    • fortalecer o processo de integração sul-americana e criar condições que facilitem a participação dos países da América do Sul em um sistema multilateral de comércio.

    Alcsa, Alba, Americosul, CAN, Mercosul e outros em gestação refletiam novas tentativas e novos caminhos para o integracionismo, sem a responsabilidade de submeter-se à hegemonia de nenhum país dentro ou fora do continente. Voltadas para o comércio regional, essas organizações começaram a posicionar a região em relação à economia mundial. A proximidade física, a superação das rivalidades historicamente frágeis e os traços culturais comuns sinalizaria para um papel importante das tentativas integracionistas. O Mercosul passou a funcionar como uma mola propulsora desse encadeamento, que promove também dentro do Mercosul inflexões, às vezes fortes, a partir dos acenos individualizados em favor de um espaço para a região no mundo globalizado. O Mercosul parece ter transformado os países da região em "players" internacionais, com personalidade própria, um lugar de fala da região.

    A irreversibilidade do Mercosul, como pretendiam originalmente os países membros, iria exigir, contudo, um projeto comunitário claro, dotado de vitalidade social e cultural, para ajudar a configurar os valores fundacionais da integração regional e da própria americanidade, cujas matrizes foram se perdendo, na medida em que os países ou regiões viam-se introduzidos, tardiamente, no chamado processo civilizatório (Darcy Ribeiro, 1968).

    1.4 MERCOSUL – MERCADO COMUM DO SUL

    Ligados territorialmente, vizinhos e com alguns traços identitários próximos, Argentina e Brasil procuraram desde o início do século passado alternativas para um estreitamento de relações e incremento dos entendimentos comerciais. Dentro de um quadro de expectativas comuns, em 29 de julho de 1986, em Buenos Aires, materializou-se a possibilidade de uma primeira experiência concreta, com a assinatura do Programa de Integração e Cooperação Econômica entre a Argentina e Brasil (PICAB), pelos então presidentes Raúl Alfonsin e José Sarney, aos quais vai se juntar também Júlio Sanguinetti, do Uruguai, em 6 de abril de 1988, por meio da Ata do Alvorada. Os protocolos assinados tinham como fundamentos os princípios da gradualidade, flexibilidade, simetria, equilíbrio e tratamento preferencial frente a outros mercados. Abria-se a perspectiva de um espaço econômico comum, liberando-se, seletivamente, os respectivos mercados e, postulando, desde já, políticas de incentivo à complementação econômica em segmentos específicos dos dois países.

    Embora ainda modestos, os resultados dos protocolos do Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento (1988), com validade de dez anos, sinalizaram positivamente em direção ao diálogo que se iniciava. Os dois países manifestaram o desejo de constituir um espaço econômico comum. Desse Tratado, nasceram 24 protocolos específicos, envolvendo áreas como a de produtos alimentícios, industrializados e bens de capital.

    A 6 de julho de 1990, o Tratado de 1988 teve um impulso decisivo com a assinatura, pelos presidentes Fernando Collor e Carlos Menem, da Ata de Buenos Aires, na qual se estabelecia o dia 31 de dezembro de 1994 como a data de instituição definitiva do mercado comum Brasil e Argentina. O ato inaugural do Mercado Comum do Sul ocorreu, entretanto, com a assinatura do Tratado de Assunção, no dia 26 de março de 1991, por meio do qual se previa

    Criar um mercado comum com livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos (eliminando-se os direitos alfandegários e tarifas (alíquota do imposto de importação = zero); adotar uma política externa comum, coordenar posições conjuntas em foros internacionais; coordenar políticas macroeconômicas e setoriais; e harmonizar legislações nacional, com vistas a uma maior integração.

    Nessa data, os governos do Uruguai e Paraguai, que já haviam manifestado interesse de participação, até então formalmente bilateral, concretizaram sua adesão ao processo em curso. O bloco alimentava-se da ambiciosa proposta de transformar-se num mercado comum, com a eliminação de todas as barreiras comerciais a partir de janeiro de 1995. A personalidade jurídica de direito internacional definitiva veio com o Protocolo de Ouro Preto, em 17 de dezembro de 1994, no qual foi reconhecida a "competência do bloco para negociar, em nome próprio, acordos com terceiros países, grupos de países e organismos internacionais. Reafirmava-se que, a partir de janeiro de 1995, qualquer mercadoria e serviço originado dos países membros teriam acesso comercial livre aos seus mercados, ressalvados alguns itens. Estabelecia ainda que, até o final do ano 2005, chegar-se-ia à harmonização com a integração definitiva das economias regionais. Em Ouro Preto institucionalizou-se a estrutura básica para o funcionamento do Mercosul. Parecia complicada, mas procurava contemplar aspectos amplos e delicados que podiam emperrar o funcionamento do Acordo, caso não tivessem abrigo nos fóruns do organismo.

    Estrutura do Mercosul

    Estrutura aprovada na reunião de Ouro Preto. MRE: site na internet, acessado em dezembro de 2004.

    Pelos termos do Tratado de Assunção, os países membros comprometiam-se a coordenar a adoção de políticas macroeconômicas e setoriais, envolvendo as de comércio exterior (agrícola, industrial, fiscal, monetária e cambial) e de capitais (de serviços alfandegários, transportes e comunicações). Era a forma de viabilizar a implementação de um programa de liberação de comércio e de assegurar as condições de concorrência entre os países membros.

    No Brasil, a iniciativa do Mercosul passou por duras críticas dos setores mais conservadores e defensores da relação privilegiada de comércio com os Estados Unidos, que, depois da Iniciativa das Américas, acenava com o acordo do Nafta. Paralelamente, a Organização Mundial do Comércio divulgou uma análise altamente positiva, na qual mostrava que a iniciativa

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