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Narrativas de Vida de Antígona (Sófocles), Sor Juana e Olympe de Gouges: a Justiça no divã da Análise do Discurso
Narrativas de Vida de Antígona (Sófocles), Sor Juana e Olympe de Gouges: a Justiça no divã da Análise do Discurso
Narrativas de Vida de Antígona (Sófocles), Sor Juana e Olympe de Gouges: a Justiça no divã da Análise do Discurso
E-book519 páginas7 horas

Narrativas de Vida de Antígona (Sófocles), Sor Juana e Olympe de Gouges: a Justiça no divã da Análise do Discurso

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Sobre este e-book

Este livro é fruto de uma longa trajetória de pesquisas acadêmicas nas áreas de Linguística, Direito e Literatura que resultou na escrita da tese doutoral, premiada no Brasil e no exterior, sobre as narrativas de vida de Antígona (Sófocles) (442 a.C.), Sor Juana Inés de la Cruz (1648-1695) e Olympe de Gouges (1748-1793). Nessa obra, foram analisadas vozes enunciadoras que marcaram as origens do Direito, em sua complexidade que envolve as noções dos Direitos Humanos. O corpus é composto por epístolas, declarações, diálogos e cenas enunciativas das vozes supracitadas. Os referenciais teóricos concentram-se, especialmente, nas abordagens da pesquisadora Ida Lucia Machado sobre narrativas de vida, na Teoria Semiolinguística desenvolvida por Patrick Charaudeau, na Teoria da Ação Comunicativa, conforme propõe Jürgen Habermas, em conceitos que tocam as noções de ethos panfletário, discutidos por Ruth Amossy, e na dimensão do hiperenunciador, como indica Dominique Maingueneau. Para a revisão de literatura das fontes do Direito, a pesquisa buscou traçar um mapeamento do tema, conforme delineado pelas Ciências Jurídicas. Essa cartografia das fontes propiciou uma reflexão inicial acerca das noções de tradição, descontinuidade e ruptura. Como resultado da pesquisa, foi discutido em que medida essas vozes analisadas podem ser compreendidas como precursoras das bases valorativas das fontes do Direito pelos olhares femininos, em suas dimensões enunciativas, históricas e sociológicas.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento7 de abr. de 2022
ISBN9786525234113

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    Narrativas de Vida de Antígona (Sófocles), Sor Juana e Olympe de Gouges - Adriana do Carmo Figueiredo

    Capítulo 1 Percurso histórico das fontes do direito: Em busca de novas leituras pelas vias do texto e do discurso

    Antes de traçarmos um panorama da problemática relacionada à origem do Direito, gostaríamos de destacar que a Análise do Discurso (AD) é uma disciplina que se constituiu, especialmente, pelo diálogo com as Ciências Humanas e Sociais. Esse diálogo transdisciplinar cria condições favoráveis para pensarmos nas relações possíveis entre a AD e os diferentes objetos provenientes de outras disciplinas, no caso específico, o Direito. Como analistas do discurso, acreditamos que a AD nos permite buscar os procedimentos teórico-metodológicos para a composição do instrumental necessário à análise que faremos em nossa pesquisa.

    Em sua obra Langage et Discours, Patrick Charaudeau (1983) afirma que toda teoria nos leva a outra temática teórica, e todo ato de linguagem nos leva também a outro ato de linguagem. Essa relação interdiscursiva nos parece inerente ao discurso e se manifesta nos atos linguageiros dialógicos que nós, pesquisadores, buscamos manter com outras áreas do conhecimento.

    Nesse sentido, a nossa pesquisa é construída com a perspectiva de

    [...] um semiólogo, analista do discurso que, tendo atravessado as ciências da linguagem da época do estruturalismo até os dias de hoje, se confrontou com os pensamentos e os trabalhos de semanticistas em torno de Bernard Pottier, com os semioticistas em torno de Algirdas Greimas, de narratologistas em torno de Genette, se viu diante de uma certa filosofia em torno de Michael Foucault, de uma semiologia polivalente em torno de Roland Barthes, e que foi levado a colaborar com sociólogos e psicossociólogos em seus trabalhos sobre a mídia e sobre o discurso político (CHARAUDEAU, 2013, p. 20).

    A Teoria Semiolinguística, criada pelo autor supracitado, parece-nos, portanto, um campo fecundo para os estudos interdisciplinares relacionados à linguagem e ao Direito, pois essa teoria nos permite pensar numa abertura a metodologias e conceitos advindos de diferentes ramos do conhecimento.

    Além disso, conforme propõe a Filosofia de Michel Foucault (2002 [1969])¹⁷, as noções de descontinuidade e ruptura nos levarão a revisitar algumas das teorias que trouxeram os alicerces dos fundamentos da ciência jurídica. Por meio da visada foucaultiana, buscaremos problematizar questões procedimentais e teóricas relativas às fontes do Direito, tendo em vista as incertezas implicadas no emprego de certos conceitos propagados pela tradição jurídica.

    Nesse contexto e para melhor compreensão das diversas vozes que fazem brotar o Direito, acreditamos que as narrativas de vida, conforme propõe Machado (2009, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016, 2017 e 2018), nos ajudarão a trilhar o caminho em busca das origens do pensamento jurídico. Com as palavras da autora, explicitamos as nossas razões para a escolha desse componente teórico:

    A primeira [razão] é por acreditar que o sintagma narrativa de vida se enquadra bem com a Análise do Discurso (AD) e, em particular, com uma teoria de AD que muito apreciamos — a Semiolinguística, de Patrick Charaudeau. Como já dito (MACHADO, 2010) trata-se de uma teoria compósita que foi construída tendo por base principal conceitos da linguística discursiva, mas que também se abriu a outros, vindos de universos de saber tais como a Sociologia, a Antropologia, a Etnologia, a Psicologia social. Assim, narrativa de vida se encaixa mais às análises, ações e considerações de alguns analistas do discurso, já que o sintagma se refere a uma teoria que busca desvelar ou realizar pesquisas sobre o discurso, objeto multifacetado e estudado em tantas outras frentes de pesquisa tais como as supracitadas e também a Literatura, a História, a Psicanálise etc. (MACHADO, 2014b, p. 1131).

    Entendemos que as diversas narrativas deixadas como legado cultural para a história da humanidade também explicitam as lutas sociais que resultaram nos sistemas de direitos e garantias, tal como se mostram na contemporaneidade.

    Propomos, a seguir, um breve panorama teórico e histórico das fontes do Direito¹⁸, nosso objeto de pesquisa, conforme dispõe a hermenêutica jurídica¹⁹, para que possamos, posteriormente, analisar essas fontes pelas vias dos estudos discursivos.

    1.1 A teoria das fontes e sua problemática: de onde nasce o Direito?

    A teoria jurídica tem-se dedicado a definir as fontes do Direito em diferentes perspectivas. Essas fontes são empregadas nas práticas forenses quando há situações que implicam um poder de decidir ou um poder de optar por um dos diferentes caminhos possíveis para a solução de um caso concreto²⁰.

    O poder é um componente fundamental para analisarmos as origens do Direito. Por isso, juristas e pesquisadores têm apresentado diversificadas modalidades de classificações das fontes jurídicas. Essas classificações operam com base em um conjunto de experiências sociais. Vejamos:

    Miguel Reale entende que existem quatro fontes do Direito:

    A legal, resultante do poder estatal de legislar editando leis e seus corolários normativos; a consuetudinária, expressão do poder social inerente à vida coletiva e revelada através de sucessivas e constantes formas de comportamento; a jurisdicional, que se vincula ao Poder Judiciário, expressando-se através de sentenças de vários graus e extensão; e, finalmente, a fonte negocial, ligada ao poder que tem a vontade humana de instaurar vínculos reguladores do pactuado com outrem (REALE, 1994, p. 12, itálicos do autor).

    As fontes do Direito, segundo Reale (1994), não se referem apenas às normas de comportamento²¹, pois elas estão relacionadas também às normas de competência. E ainda, as fontes do Direito são produtoras das normas jurídicas, em geral, e, por isso, podem ser compreendidas como modelos dos quais derivam certas prescrições, tendo em vista o poder de obrigar. Os modelos jurídicos são compreendidos como aquilo que se refere ao conteúdo das fontes, e, por isso, eles "[...] representam a atualização ou projeção destas no espaço e no tempo sociais, no plano da eficácia, ou do procedimento" (REALE, 1994, p. 4).

    A ideia de modelo pode estar associada à noção de estrutura ou a uma espécie do gênero estrutura. Assim, a estrutura é compreendida como um conjunto de elementos que entre si se correlacionam e se implicam de modo a representar dado campo unitário de significações (REALE, 1994, p. 5). Desse modo, a estrutura proveniente da ideia de fontes do Direito implica a noção de pluralidade de certos enunciados que adquirem significação ou sentido quando se correlacionam ou se complementam.

    Para Miguel Reale (1994), portanto, as fontes do Direito pressupõem uma estrutura de poder. A lei é fruto do Poder Legislativo e o costume é uma forma de expressão do poder social. Há também os atos do Poder Judiciário, além das fontes negociais que são oriundas do poder negocial ou da autonomia da vontade.

    Paulo Nader (2014), por sua vez, assevera que o Direito, embora seja um produto cambiante que transita no tempo e no espaço, contém muitas questões (ideias) que são permanentes. Nesse sentido, a perspectiva evolutiva dos costumes e dos clamores sociais leva o legislador a implementar novas maneiras de elaboração das normas.

    Nader (2014, p. 141) entende que as [...] fontes históricas do Direito indicam a gênese das modernas instituições jurídicas [...], tendo em vista as noções de época, local, bem como as razões que são determinantes para a sua formação. Assim, as pesquisas sobre as fontes do Direito podem se limitar aos acontecimentos históricos mais recentes ou se aprofundar em eventos passados, inclusive discursivo-literários, que nos fazem pensar nas concepções atuais sobre os institutos jurídicos.

    Desse modo, a hermenêutica jurídica, numa tentativa de desvendar o conteúdo atual dos preceitos propostos pelo Direito, tem buscado dados relevantes nas fontes históricas. Isso ocorre nos processos de interpretação do Direito, em que se busca a finalidade basilar dos institutos jurídicos e os valores pressupostos por eles. Em razão da relevância das fontes históricas, ressaltamos a necessidade de se retornar ao Direito Romano e aos imaginários sociodiscursivos (CHARAUDEAU, 2015 [2005])²² que foram (são) fundamentais para a compreensão identitária do Direito.

    Charaudeau (2015a) afirma que os imaginários sociodiscursivos transitam em um espaço interdiscursivo que gera uma pluralidade de significações. Esses imaginários são relevantes para a Análise do Discurso e para a compreensão das origens do Direito, pois eles [...] dão testemunho das identidades coletivas, da percepção que os indivíduos e os grupos têm dos acontecimentos, dos julgamentos que fazem de suas atividades sociais (CHARAUDEAU, 2015a, p. 207).

    Essa relação dialógica entre os imaginários sociodiscursivos e os enunciados provenientes das fontes jurídicas é que, talvez, possibilite-nos pensar na origem do Direito pelo discurso e pelo uso social da linguagem. Sabemos que o discurso não se refere apenas a uma materialidade linguística, pois ele tem natureza social. Assim, acreditamos que analisar o discurso do Direito requer muito mais do que analisar os componentes textuais e teóricos que o sustentam, pois existe um universo de práticas sociais que integram a composição desse discurso.

    A noção dos imaginários proposta por Charaudeau (2015a), por exemplo, convida-nos a uma reflexão sobre o clamor social que também é produtor do Direito. Nesse sentido, concordamos com o jurista Nader (2014) quando afirma:

    O Direito não é um produto arbitrário da vontade do legislador, mas uma criação que se lastreia no querer social. É a sociedade, como centro de relações de vida, como sede de acontecimentos que envolvem o homem, que fornece ao legislador os elementos necessários à formação dos estatutos jurídicos (NADER, 2014, p. 142).

    Entretanto, questionamos como, de fato, esse querer social chega até as instâncias legitimadoras para que as vozes, especialmente aquelas provenientes dos grupos minoritários, sejam reconhecidas em suas demandas e ouvidas no Parlamento. Esse eco das vozes que supostamente geram o Direito se pauta, muitas vezes, nas lutas pela igualdade, tendo em vista a noção da diferença²³.

    Sem dúvida, trata-se de uma luta que, quase sempre, revela os imaginários socioculturais (CHARAUDEAU, 2015b) da sociedade que também é produtora do Direito, mas que, muitas vezes, é apartada dos processos de formação da lei positiva.

    Nesse contexto de busca das origens do Direito, conforme já afirmamos, acreditamos que as narrativas de vida em diferentes materialidades discursivas, segundo Machado (2009, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016, 2017 e 2018), nos ajudarão na composição da análise que faremos a respeito das formações discursivas que revelam as fontes jurídicas.

    Por isso, buscaremos compreender algumas das enunciações que estão por trás dos discursos formadores do Direito, pois, conforme afirma Machado, as narrativas podem surgir de uma prática discursiva, [...] quanto menos se espera, e não apenas de relatos a ela consagrados (MACHADO, 2014, p. 1132).

    Acreditamos que as origens do pensamento jurídico se deram por meio de uma multiplicidade de vozes discursivas que, em suas narrativas, revelam diferentes enunciadores²⁴. Alguns desses enunciadores foram mantidos pelos discursos legitimadores do Direito; outros foram silenciados nos Parlamentos²⁵.

    Assim, essas vozes transitam, muitas vezes, por caminhos com direções ambivalentes. Por um lado, fazem nascer nas fontes jurídicas certos valores que geram a noção de que somos [...] iguais, perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, conforme podemos extrair do art. 5º da CRFB/1988. Por outro lado, também existem certas vozes que se movimentam em um sentido contrário, representando a exclusão. Elas geram certos comandos normativos que, não raro, expressam outros interesses, opostos àqueles oriundos dos grupos minoritários²⁶. Essa mistura de vozes é fundamental para a compreensão das origens do pensamento jurídico.

    1.2 Classificações das fontes materiais e formais: notas sobre a herança discursivo-cultural que brota das origens do Direito

    Quando analisamos a Teoria da Fontes, percebemos que existem certas dificuldades surgidas das interpretações que os operadores do Direito fazem do próprio discurso jurídico. Muitas dessas leituras se confundem, em razão das classificações que os juristas fizeram sobre essas fontes e que foram incorporadas à Ciência Jurídica.

    Além da problemática da classificação das fontes pela tradição dogmática do Direito, entendemos que existem outras dificuldades interpretativas provenientes da tratativa que se dá à noção dos imaginários sociodiscursivos (CHARAUDEAU, 2015) que fizeram parte dos processos de formação do Direito e que, muitas vezes, foram ignorados durante os trabalhos legislativos de produção das normas²⁷.

    Acreditamos que os imaginários propostos pela Teoria Semiolinguística, conforme Charaudeau (2015a e 2015b), são relevantes para a compreensão das fontes materiais do Direito, especialmente quando analisamos a Teoria das Fontes com a perspectiva dos estudos discursivos. As fontes materiais são constituídas pela materialidade dos acontecimentos sociais e suas consequências na vida em sociedade.

    Paulo Nader (2014) afirma que as fontes materiais são as causas produtoras das normas jurídicas. Essas fontes são condicionadas pelos fatores do Direito, como a Moral, a Economia, a Geografia, entre outros (GALLO, 1966, p. 180, apud NADER, 2014, p. 142). Nader (2014) entende que existe uma divisão das fontes materiais em diretas e indiretas. As fontes materiais diretas são aquelas representadas pelos órgãos elaboradores do Direito Positivo: a sociedade, como instância criadora do Direito consuetudinário (costumes); o Poder Legislativo, responsável pela elaboração do Direito positivo (posto pelo Estado); e o Poder Judiciário, responsável pela produção do conjunto de decisões dos tribunais (jurisprudência). Por sua vez, as fontes materiais indiretas são indicadas como os fatores jurídicos supracitados desencadeadores do Direito.

    Conforme afirmamos, o estudo das fontes divide a opinião dos juristas e pesquisadores do Direito e geram posições completamente opostas e diversas. Para Miguel Reale (1994), por exemplo, o sintagma fonte material é impróprio, dado que não é outra coisa senão o estudo filosófico ou sociológico dos motivos éticos ou dos fatos que condicionam o aparecimento e as transformações das regras do Direito (REALE, 1994, p. 140). Por outro lado, o jurista Paulo Dourado de Gusmão destaca que "no sentido próprio de fontes, as únicas fontes do Direito são as materiais, pois fonte, como metáfora, significa de onde o Direito provém (GUSMÃO, 2018, p. 127).

    Na obra Introdução ao Estudo do Direito, Gusmão (2018) destaca:

    Fonte do direito, que Gurvitch (Théorie Pluraliste des Sources du Droit Positif) considera o problema crucial de toda reflexão jurídica, é uma metáfora tradicionalmente usada na ciência do direito, podendo, como metáfora, ser entendida, como diz Horvath (Les Sources du Droit Positif, trad. publicada na Revista de Direito do MPGB, vol. 9), por extensão do termo, as imediações do ponto de emergência de um curso d’água natural, o lugar onde ele passa de invisível a visível, onde sobe do subsolo à superfície, ou seja, a forma que o pré-jurídico toma no momento em que se torna jurídico (GUSMÃO, 2018, p. 109, aspas do autor).

    Concordamos com Gusmão (2018), quando afirma que as fontes materiais do Direito são aquelas

    [...] constituídas por fenômenos sociais e por dados extraídos da realidade social, das tradições e dos ideais dominantes, com as quais (referindo-se às fontes materiais) o legislador, resolvendo questões que dele exigem solução, dá conteúdo ou matéria às regras jurídicas (GUSMÃO, 2018, p. 103).

    Acrescentamos que essas fontes revelam também os fenômenos sociolinguageiros que se produziram nas narrativas de vida dos povos, deixando suas vozes nos atos de formação da materialidade discursiva que compõe o Direito, tendo em vista elementos de historicidade.

    Gusmão alerta que, muitas vezes, as fontes materiais do Direito são confundidas²⁸ com os fatores sociais do Direito, que trazem reflexos da realidade-histórico social²⁹. Esses fatores são constituídos de várias espécies (econômicas, geográficas, morais, religiosas, históricas, inclusive, valores predominantes em uma determinada época).

    Além das fontes históricas e materiais, há também aquelas definidas como fontes formais, que representam as formas de expressão do Direito Positivo aos seus destinatários. Segundo Nader (2014), as fontes formais são definidas pelas normas jurídicas e pelas formas como estas são exteriorizadas, tornando-se conhecidas no meio social. Desse modo, para que um procedimento jurídico se torne uma fonte formal, é necessário que haja o poder de criar o Direito. Esse poder criador pressupõe estabelecer, no ordenamento jurídico, novas normas que indicarão regras de conduta social.

    As disposições das fontes formais variam de acordo com os diferentes sistemas jurídicos e as distintas fases históricas. Tomando como referência o ordenamento jurídico brasileiro, podemos afirmar que o nosso Direito se ergue por meio de uma tradição romano-germânica. Por isso, a principal forma de expressão do nosso Direito é pela via da escrita, que se manifesta pelas leis, em geral. Os costumes, por sua vez, figuram no nosso ordenamento como fonte complementar³⁰.

    Segundo Gusmão (2018), podemos afirmar que as fontes formais do direito são estatais (direito escrito), e não estatais. Entre as fontes estatais, encontramos a lei, por exemplo. As fontes não estatais, por sua vez, são aquelas que não dependem da atividade legislativa do Estado: os costumes, os contratos coletivos de trabalho, as doutrinas jurídicas, os tratados internacionais e outras. Nessa perspectiva, as fontes formais do direito podem ser classificadas em três categorias:

    1ª, fontes estatais do direito (lei, regulamento, decreto-lei, medida provisória); 2ª, fontes infraestatais (costume, contrato coletivo do trabalho, jurisprudência, doutrina); 3ª, fontes supraestatais (tratados internacionais, costumes internacionais, princípios gerais do direito dos povos civilizados). Poderíamos dizer ainda que as fontes formais do direito podem ser: 1) de direito interno, isto é, de direito nacional (lei, regulamento, decreto-lei, jurisprudência dos tribunais estatais, direito interno consuetudinário, contrato coletivo de trabalho, doutrina; 2) de direito comunitário, como as do direito da União Europeia; 3) de direito internacional (tratado, costumes internacionais, princípios gerais do direito dos povos civilizados, jurisprudência da Corte Internacional de Justiça e a ciência do direito internacional) (Gusmão, 2018, p. 105-106).

    Importante comentar que existe uma hierarquia entre as fontes formais. Esse escalonamento é decorrente da superioridade ou supremacia de certas fontes que geram a subordinação de outras. No que se refere às fontes de igual valor, o entendimento é aquele que pressupõe a igualdade e coordenação entre elas³¹.

    A esse respeito, devemos distinguir a existência do sistema da Common Law (Estados Unidos, Inglaterra) do sistema continental, predominante na Europa continental e na América Latina. No primeiro, o costume e o precedente judicial são fontes principais do direito. Já no sistema continental, existe a predominância da lei.

    Em razão da hierarquia entre as normas legislativas, afirmamos que a lei constitucional (entendida aqui como a Constituição e suas emendas constitucionais) está acima de todas as normas legislativas existentes e das demais normais delas decorrentes.

    Nesse sentido, esclarece Gusmão (2018):

    No Estado moderno, a Constituição e as emendas constitucionais presidem a disposição orgânica das demais fontes formais do direito. Daí Kelsen organizá-las em pirâmide jurídica, em cujo vértice está a Constituição. Depois da lei constitucional vem a lei complementar, que não chega a ser norma constitucional, mas que a completa, e, abaixo dela, a lei ordinária (p. ex.: lei do divórcio, Código Penal etc.), que está subordinada à constitucional e à lei complementar (quando houver), não podendo, nas Constituições rígidas, violá-las, sob pena de ser inconstitucional (GUSMÃO, 2018, p. 106-107).³²

    A hierarquia das fontes é importante para as práticas jurídicas decorrentes, especialmente, das decisões dos tribunais. Isso significa que o juiz, quando decide um caso concreto, deve aplicar uma fonte quando não existir outra imediatamente superior. Desse modo, no direito continental (europeu continental e latino-americano), por exemplo, somente haverá a aplicação do costume se não houver legislação expressa que regulamente o caso em discussão. Além disso, em razão do princípio de hierarquia, poderá ocorrer a ineficácia jurídica, por inconstitucionalidade ou por ilegalidade, de norma hierarquicamente subordinada, quando esta for incompatível com a norma hierarquicamente superior.

    A teoria das fontes³³, portanto, tem como pressuposto fixar os elementos de fato e de direito que devem ser observados nos processos de produção e aplicação das normas para que elas possam ser consideradas válidas.

    Além disso, é importante inserir o estudo das fontes em uma necessária correlação que envolve a experiência jurídica compreendida em sua herança discursivo-cultural. Esse legado é marcado pelas diversas vozes sociais que deixaram os seus rastros nos processos de elaboração dos preceitos jurídicos que, por sua vez, desencadearam na noção do dever-ser.

    Assim, o dever-ser, conforme perpetuado pelo Direito, não pode ser compreendido apenas como uma típica estrutura normativa ou um mero enlace lógico-proposicional, como prescreveu Kelsen em sua Teoria Pura do Direito. Entendemos que "[...] o dever-ser no mundo do Direito envolve e representa sempre um momento volitivo da vida humana, com tudo o que nesta existe de intencional e funcional" (REALE, 1994, p. 7, itálicos do autor).

    Sem dúvida, existe uma relação entre as fontes do Direito e as condições de validade dos preceitos jurídicos impostos por essas fontes. Por isso, acreditamos que há também uma problemática no conteúdo de validade que configurou as origens do ordenamento jurídico, se considerarmos que o Direito tem sido escrito por mãos masculinas e por vozes patriarcais que se encarregaram de traçar os rumos das próprias origens do Direito positivo.

    As normas – entendidas como modelos normativos e as fontes apresentam, portanto, uma correlação entre si, que ocorre de maneira concreta e dinâmica, sugerindo uma noção dialética de complementariedade.

    A Teoria das Fontes do Direito está inserida nas complexas demandas que surgem da própria indagação sobre a experiência do Estado Democrático de Direito. As dúvidas são decorrentes, especialmente, das exigências que geram a legitimação do próprio Direito.

    Nas abordagens apresentadas em nossa pesquisa, o tema das fontes aparece circunscrito a questões sobre a lei, o costume, a jurisprudência, entre outras categorias. Há também as chamadas fontes históricas, materiais e formais do Direito, conforme destacamos. Entretanto, a forma de abordagem das fontes do Direito precisa ser revisitada, uma vez que o tema traz em seus fundamentos questões de natureza complexa e, por isso, demandam um maior aprofundamento que possa nos conduzir a uma visada mais dinâmica ou plural a respeito dessas fontes.

    Laronze (2012) afirma que o Direito está fundamentalmente próximo da realidade, ou do fato que o gera. É possível pensarmos em uma abordagem pluralista que nos permita restaurar a mecânica jurídica que foi paralisada por sua falta de reatividade. Assim:

    O direito é, de fato, lento, pesado e denso. No entanto, é possível conceber o Direito de tal forma que pareça fluido, adaptado e acessível. A noção de organização jurídica, que se inscreve no quadro das teorias relativas ao pluralismo jurídico, renova a concepção do Direito (LARONZE, 2012, p. 175, trad. nossa)³⁴.

    Nesse sentido, Laronze (2012) entende o termo organização jurídica como fonte plural dos direitos. Essa abordagem encontra respaldo nas divisões, nos obstáculos ou conflitos que se materializam entre as pessoas, gerando interesses diferentes ou discordâncias em relação às normas.

    Lênio Streck (2006) também argumenta que as conformações jurídicas atuais demandam uma nova Teoria das Fontes, uma nova Teoria da Norma e um novo modo de compreender o Direito. Essa revisão se torna necessária, pois ainda existe a crença, em certos núcleos jurídicos, de que a lei é a única fonte do Direito, ignorando a força da Constituição e de outros elementos que trazem os princípios que alicerçam a noção de justiça. Nesse sentido:

    Desde antes da Constituição de 1988, venho escrevendo sobre a crise de paradigmas que assola o Direito. [...] Com efeito, a crise possui uma dupla face: de um lado, uma crise de modelo de Direito (preparado para o enfrentamento de conflitos interindividuais, o Direito não tem condições de enfrentar/atender as demandas de uma sociedade repleta de conflitos supraindividuais); de outro, a crise dos paradigmas aristotélico-tomista e da filosofia da consciência, o que significa dizer, sem medo de errar, que ainda estamos reféns do esquema sujeito-objeto. [...] Explicando melhor: se, de um lado, parte considerável do Direito ainda sustenta posturas objetivistas (em que a objetividade do texto sobrepõe-se ao intérprete, ou seja, a lei vale tudo); de outro, há um conjunto de posições doutrinária-jurisprudenciais assentados no subjetivismo, segundo o qual o intérprete (sujeito) sobrepõe-se ao texto, [...] (STRECK, 2006)³⁵.

    A problemática a respeito das definições possíveis sobre as fontes jurídicas leva, inevitavelmente, à própria compreensão da natureza do Direito. Sabemos que o ordenamento jurídico se sustenta pelas suas fontes. Por isso, é preciso que haja um consenso a respeito de quais são as fontes do Direito e como classificá-las. Sem esse consenso, torna-se difícil a definição ou a identificação do próprio Direito. Além disso, várias das controvérsias jurídicas têm sido resolvidas por meio da busca de sentidos nas fontes do Direito em suas múltiplas interpretações.

    Tércio Sampaio Ferraz Júnior (2018) afirma que as dificuldades envolvendo a consistência (antinomias)³⁶ e a noção de completude (lacunas) presentes no ordenamento jurídico, entendido como sistema, levam-nos a pensar a respeito da problemática relacionada aos centros produtores de normas, bem como sua unidade ou pluralidade. Em suas palavras:

    Se, num sistema, podem surgir conflitos normativos, temos que admitir que as normas entram no sistema a partir de diferentes canais, que, com relativa independência, estabelecem suas prescrições. Se são admitidas lacunas, é porque se aceita que o sistema, a partir de um centro produtor unificado, não cobre o universo dos comportamentos, exigindo-se outros centros produtores. São essas suposições que estão por trás das discussões em torno das chamadas fontes do direito (FERRAZ JÚNIOR, 2018, p. 181).

    Portanto, na visão de Tércio Sampaio (2018), a questão central para a Teoria das Fontes perpassa pela descoberta de quais são os centros produtores dessas fontes, uma vez que o Direito é elaborado no interior da cultura humana. Vejamos:

    A teoria das fontes, em suas origens modernas, reporta-se à tomada de consciência de que o direito não é essencialmente um dado, mas uma construção elaborada no interior da cultura humana. Ela desenvolve-se, pois, desde o momento em que a ciência jurídica percebe seu objeto (o direito) como um produto cultural e não mais como um dado da natureza ou sagrado. Com isso se cria, porém, um problema teórico, pois o reconhecimento do direito como uma construção não exclui seu aspecto como dado, posto que, afinal, se o direito é feito, é obra humana, a matéria-prima não se confunde com a própria obra (FERRAZ JÚNIOR, 2018, p. 181).

    Importante comentar que essa abordagem sugerida por Tércio Sampaio já havia sido suscitada por Savigny (1840, v. 1:9), no início do século XIX. Esse pensador procurou distinguir o sentido da lei (como um ato do Estado) e seu valor semântico atrelado ao que chamou de Volksgeist, o espírito do povo. Para Savigny, esse espírito repousa nas convicções comuns de um povo. Conforme Ferraz Júnior, essa distinção possibilitou compreender a separação do [...] centro emanador dos atos formais de concretização ou realização do direito, sendo fonte o ‘espírito do povo’, e os atos estatais, o instrumento de realização (FERRAZ JÚNIOR, 2018, p. 182).

    A ideia de se pensar em fonte jurídica como espírito do povo foi decisiva para escolhermos as abordagens desenvolvidas por Machado (2009, 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016, 2017 e 2018) sobre narrativas de vida em nossa pesquisa. Acreditamos que, ao avaliarmos os discursos de quem fala, de onde fala e por que fala, as narrativas nos ajudam a verificar as fontes produtoras de direitos em processos de intersubjetividade que envolvem a linguagem, os sujeitos, o discurso e os imaginários, temas que serão tratados nas seções seguintes deste trabalho.

    A Teoria das Fontes revista pelo olhar epistemológico das narrativas de vida torna-se, então, essencial tanto para analistas do discurso, quanto para operadores do Direito e suas práticas profissionais. O esclarecimento do que é fonte do Direito influencia na própria concepção daquilo que é entendido como Direito. Essa compreensão, por sua vez, condiciona desde os fundamentos jurídicos que são formulados para as pretensões aduzidas, incluindo as possíveis contestações, até o próprio provimento jurisdicional (RIBEIRO; BRAGA, 2018, p. 3863)³⁷.

    Conforme explicitado por Chamon (2008), as Teorias do Direito pouco têm debatido a temática das fontes. Vejamos:

    Uma questão com a qual as discussões de Teoria do Direito contemporâneas pouco se têm preocupado reflexivamente é a referida a um resgate crítico reconstrutivo da chamada Teoria das Fontes do Direito, cujos desenvolvimentos mais elaborados, desde a Escola Histórica, passando pelo pandectismo, pelo positivismo clássico e pelo neo-positivismo, é (sic) muitas vezes assumido sem maiores e mais profundas problematizações – sobretudo em face do caráter moderno do Direito (CHAMON, 2008, p.1, aspas do autor).

    Apresentado esse panorama a respeito das controvérsias relacionadas ao debate sobre as fontes do Direito, enfatizamos o nosso espaço de fala nesta tese, em que buscaremos uma abordagem pelas vias dos estudos do Texto e do Discurso. Entendemos que as fontes do Direito são provenientes de uma formulação social que contém sentidos pluridimensionais e naturezas intersubjetivas que são inerentes ao fenômeno cultural-discursivo.

    Por isso, as fontes apresentam uma relação com a historicidade, dado que os seus elementos se referem a fatos e a narrativas que trazem as memórias dos povos, desde os primórdios da história da humanidade.

    As fontes também apresentam relação com a linguagem e com as formas discursivas que são constitutivas de sentidos. Estas, por sua vez, correlacionam-se também com os fenômenos culturais. Esses fenômenos revelam elementos linguísticos e simbólicos que caracterizam os modos de pensar o Direito, tomando-se como referência os lugares e os projetos de fala de onde brotam as normas jurídicas.

    Assim, a proposta da nossa tese é repensar as fontes do Direito, para além dos limites de uma dogmática normativista, indo ao encontro de uma Teoria das Fontes híbrida, que seja plural e tenha como eixo condutor a dimensão do discurso, atrelada ao fenômeno sociocultural linguageiro que define a noção de Justiça.

    1.3 As fontes do Direito e as noções de tradição e descontinuidade

    Conforme afirmamos, a teoria das fontes do Direito, quando analisada em suas origens, possibilita-nos reconhecer que "[...] o Direito não é essencialmente um dado, mas uma construção elaborada no interior da cultura humana" (FERRAZ JR. 2018, p. 181). Essa percepção resulta da compreensão de que a Ciência Jurídica reconhece o seu objeto (o Direito) como um produto cultural, e não mais como um dado da Natureza.

    O exame da dogmática jurídica³⁸, dentro de um panorama histórico, permite-nos identificar o papel desempenhado pelo Direito na vida social, bem como o modo como o pensamento jurídico se desenvolveu em nossa cultura.

    Na Antiguidade Clássica, o direito (jus) era visto como um fenômeno de ordem sagrada. Em Roma, [...] foi uma ocorrência imanente a sua fundação, ato considerado miticamente como decisivo e marcante na configuração de sua cultura, por tornar-se uma espécie de projeto a ser aumentado e engrandecido no tempo e no espaço (FERRAZ JR. 2018, p. 36). Essa ideia foi propagada, de geração em geração, por meio da tradição, que tratou de delinear a expansão romana na forma de um império.

    Segundo Ferraz Júnior (2018), os jurisconsultos romanos, a princípio, argumentavam pouco a respeito do uso concatenado e lógico de premissas e conclusões. Eles se limitavam a apoiar suas decisões no fato de serem reconhecidos por personalidades de mérito na sociedade romana. Então, eles se apoiavam em instrumentos técnicos, em geral aprendidos dos gregos, que contribuíam, na argumentatividade, por meio da gramática, filosofia e outros campos do saber.

    Embora a influência grega no nosso Direito seja algo discutível, ainda é uma posição defendida por juristas³⁹. Sem dúvida, essa influência nos permite pensar em um modo de teorizar o direito, característico dos romanos. Nesse sentido:

    Trata-se de uma forma de pensar que podemos denominar jurisprudencial. A palavra jurisprudência – (juris) prudentia, uma das expressões usadas pelos romanos, ao lado de disciplina, scientia, ars, notitia, para designar o saber jurídico – liga-se, nesse sentido, ao que a filosofia grega chamava de fronesis (discernimento). Tal palavra era entendida, entre os gregos, como uma virtude. Fronesis, uma espécie de sabedoria e capacidade de julgar, na verdade consistia numa virtude desenvolvida pelo homem prudente, capaz, então, de sopesar soluções, apreciar situações e tomar decisões. Para que a fronesis se exercesse, era necessário o desenvolvimento de uma arte (ars, techne) no trato e no confronto de opiniões, proposições e ideias que, contrapondo-se, permitiam uma explanação das situações. Essa arte ou disciplina corresponde aproximadamente ao que Aristóteles chamava de dialética. Dialéticos, segundo o filósofo, eram discursos somente verbais, mas suficientes para fundar um diálogo coerente – o discurso comum (FERRAZ JR., 2018, p. 33, itálicos do autor).

    Da cultura romana para a cultura medieval, houve uma trajetória importante a ser considerada. O surgimento do Cristianismo permitiu uma distinção fundamental entre a esfera da política e a da religião. Para os antigos, o ser humano distinguia-se dos outros animais por ser um animal político – um cidadão da polis. Na Idade Média, o homem passa a ser compreendido como um animal

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