Estado e Mercado: da dicotomia ao diálogo
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Texto de contracapa: O Estado nacional, sob os influxos da globalização e do neoliberalismo, apesar de remodelado, permanece importante nos âmbitos interno e internacional, exercendo novos papéis, ligados à compensação das desigualdades sociais e à regulação, inclusive da economia. Por conseguinte, no contexto de sociedades complexas, plurais e globalizadas, o direito, editado e aplicado de acordo com a concepção procedimentalista, revela-se como instrumento para construção de uma coesão interna entre Estado nacional, mercado e sociedade civil, atuando como medium dessas relações. Destarte, é possível superar a dicotomia entre Estado e mercado e criar um ambiente de diálogo, inclusive, e sobretudo, com a sociedade civil. Essa é uma possibilidade para o caso brasileiro, em que, na edição e aplicação das leis, o Estado deve estar aberto às pretensões do mercado, mas sem subserviência, superando-se o capitalismo de laços, e sempre atento aos anseios da sociedade. O direito, assim, é meio de integração social e instrumento para o alcance dos objetivos fundamentais previstos no vigente texto constitucional.
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Estado e Mercado - Tarcisio Vieira Gonçalves
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A TENSÃO ENTRE MERCADO E ESTADO NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO E DO NEOLIBERALISMO
A globalização e o neoliberalismo influenciaram – e muito – a economia e, também, o Estado nacional. Aquela conformação de Estado conhecido no início da modernidade de fato não se observa mais hodiernamente. E os impactos se fizeram sentir mais nitidamente na soberania nacional, mas sem se desprezar aqueles percebidos sobre os elementos povo e território. Por conseguinte, também no direito estatal, atrelado ao monismo jurídico, foram observadas aquelas influências. Cabe já aqui anotar que
enquanto J. Habermas propõe que a utopia democrática de nossos tempos deva ser buscada pelo resgate do político, através da comunicação entre os sujeitos sociais (da sociedade como um todo), com a finalidade de reconstruir os objetivos práticos
da vida e da modernidade, o neoliberalismo aparece reconstruindo a utopia liberal, que se centra nas relações de mercado e nas relações de produção; através de uma revolução passiva
que apenas procura adequar a sociedade ao mercado e limita a promoção das transformações mais avançadas e democráticas das sociedades contemporâneas (SCHENKEL, 1993, p. 74).
O objetivo neste capítulo, portanto, é problematizar a tensão entre mercado e Estado, no contexto da globalização e do neoliberalismo, inclusive no cenário brasileiro. Fica esclarecido que não se pretende esgotar os temas, mas ao menos fixar premissas conceituais, características, revisar os principais fenômenos dentro dos movimentos da globalização e do neoliberalismo neste início de século XXI, tudo como partida para aprofundamento nas demais seções e capítulos do que, em fato, é central nesta obra: a relação entre Estado e mercado e o papel do direito. A preocupação aqui é mais descritiva, sendo que a crítica estará no último capítulo.
Assim, este capítulo conta com as contribuições de diversos pensadores, inclusive pós-modernistas, naquilo que possam apresentar de convergente e útil para o recorte adotado. Ademais, esclarece-se que as leituras habermasianas sobre globalização e neoliberalismo serão melhor analisadas na seção Capitalismo e Democracia
do capítulo 2. E no capítulo 3 será estudado o direito na perspectiva do paradigma procedimentalista, buscando-se dar uma resposta às questões inauguradas no presente capítulo.
1.1 A DICOTOMIA ENTRE ESTADO E MERCADO
A questão, portanto, não é quem deve liderar e guiar a economia, o Estado ou o mercado (setor privado). Ambos são cruciais. A questão é como promover essas parcerias sinérgicas
(MAZZUCATO; PENNA, Estado vs. Mercados: uma falsa dicotomia, 2015, p. 14).
Esta seção necessita, de proêmio, de uma definição do que se possa entender por dicotomia, o que vale também para este livro como uma totalidade. Para tanto, serve-se da contribuição de Bobbio (2007) na obra Estado, Governo, Sociedade: para uma teoria geral da política
, publicada originalmente em 1985. Para o autor, primeiramente é preciso distinguir as grandes dicotomias, que são aquelas que têm a capacidade de dividir em dois grupos conjuntamente exaustivos e reciprocamente exclusivos (por conter ali todos os elementos pertencentes ao bloco e pelo fato de que ali não estão presentes elementos verificados em outro conjunto) e de promover uma divisão total e principal (no sentido de que reúne todos os entes que se referem a determinado bloco e porque a ela convergem outras dicotomias, que se tornam secundárias, portanto).
Bobbio (2007) considera, ainda, que os dois termos de uma dicotomia condicionam-se e delimitam-se reciprocamente, além de que um termo da dicotomia pode ser definido por oposição ao outro (termo forte versus termo fraco) e um bloco pode ser maior que o outro. Prossegue tratando de diversas dicotomias: a) sociedade de iguais e sociedade de desiguais, como as relações entre governantes e governados, a dicotomia entre relações econômicas e relações políticas, entre estado de natureza e estado civil, entre sociedade civil e estado político; b) justiça comutativa (baseada na igualdade de valor, com enfoque nas partes, relacionada à esfera privada) e justiça distributiva (que se baseia em dar a cada um conforme determinado critério, considerando a relação todo/partes e relacionada à esfera pública); e c) lei e contrato, distinguindo-se o direito privado do público por suas fontes, lembrando que, para Kant, o primeiro refere-se ao estado de natureza, ao contrato, e o segundo é posto pelo Estado, garantido coercitivamente por ele, revelado pela lei, pelo direito positivo.
Bobbio considera que a dicotomia público versus privado em direito está enraizada porque reflete o estado de certo grupo social em que já houve a diferenciação entre o que é da coletividade e o que é individual. Lembra que essa dicotomia tem um significado axiológico. Quanto ao primado do privado, registra que o direito privado se difunde pelo Ocidente através da afirmação do direito privado romano, que se torna o valor de direito da razão; e que tal primado representa a resistência em face do soberano (por todos, vale o exemplo da propriedade). Já quanto ao primado do público, destaca que as formas variam de acordo com cada modelo de Estado; há supremacia do público sobre o privado, contraposição e até eventual supressão; o Estado regulando coativamente os indivíduos; e verifica-se limitação da emancipação da sociedade civil.
Pois bem. Postas essas premissas, a dicotomia revela-se como a diferenciação e a oposição entre duas grandezas, como, no caso desta obra, Estado e mercado. Daí já se pode prosseguir para o enfrentamento da questão posta a desate nesta seção: a dicotomia entre Estado e mercado, discutindo-se em que consiste, qual sua origem, se é real ou fictícia e a quem isso interessa.
A dicotomia entre Estado e mercado, para ser adequadamente compreendida, não pode se limitar a uma mera relação de oposição entre tais elementos. Isso porque a análise deve ao menos ser ampliada para a relação entre Estado, mercado e sociedade civil. De outro lado, a simples oposição é perigosa, porque simplista e errônea. Quem sustenta essa dicotomia advoga que enquanto a sociedade e o mercado seriam os ambientes da liberdade e da criatividade, o Estado seria responsável pela normatização e limitação da iniciativa, emperrando a dinâmica das relações privadas (REIS, 2011).
Referido autor destaca que em uma visão liberal, o mercado é despolitizado e moralmente neutro. O Estado, por sua vez, funda-se na contratualidade, em que os indivíduos delegam ao referido ente a autoridade para lhes garantir prevenção e vigilância. Em que pese essa visão tenha sido revista, manteve-se a dicotomia e a ideia de um Estado ocupado por agentes que se apropriam do público, enriquecendo-se com vantagens indevidas. Contudo, para ele, a economia, limitada ao estudo dos mercados, é insuficiente para a compreensão destes na dinâmica social. E a aplicação das regras puras de mercado acabou por não entregar o bem-estar e o crescimento prometidos. Destarte, sobretudo nas economias periféricas, urge superar a dicotomia Estado/mercado. Isso exige o reconhecimento de que inexiste antinomia entre Estado e mercado. Ao contrário, essas entidades se relacionam intrinsecamente. Como lembra Bagnoli (2006), a relação entre o público e privado na esfera do poder econômico, ocorre por meio de troca de interesses
.
Assim, por meio de uma análise relacional e institucional, o autor propõe considerar que o mercado deve ser abordado também em uma perspectiva política e enxergar a economia como um sistema institucional. Já o Estado, em seu papel institucional, não há de se limitar a ente com funções políticas e jurídicas. Daí a utilidade de uma visão ‘indisciplinar’ que se aproxime da globalidade e da complexidade dos fenômenos e dos processos sociais
(REIS, 2011, s.p).
Dito isso, é possível afirmar que a dicotomia Estado versus mercado é reflexo, na verdade, da dicotomia entre público e privado. Esta se faz representar também no direito, com a dicotomia entre direito público e direito privado, reiterada nos manuais e nas faculdades. Com raízes privatistas no direito romano e finalidade didática, essa dicotomia se configura, porém, como expediente obsoleto, reproduzido de modo acrítico. Hodiernamente essa classificação dos ramos do direito passa pelo fenômeno da fundamentação, ou da invasão: do privado pelo público – em que as constituições ocuparam a centralidade do direito em detrimento aos códigos e os direitos fundamentais passaram a incidir sobre todas as esferas da vida, inclusive nas relações privadas – e do público pelo privado – com os agentes econômicos buscando soluções fora da jurisdição estatal, havendo aí equívoca confusão entre o público e o estatal (OLIVEIRA, 2013).
No entanto, apesar de arraigado na cultura jurídica, sobretudo dos países de tradição romano-germânica, defronte de tantas alterações, direito privado e direito público tiveram modificados seus significados originários: o direito privado deixou de ser o âmbito da vontade individual e o direito público não mais se inspira na subordinação do cidadão
(MORAES, 1993, p. 26).
Nohara (2015), a seu turno, fala em dissolução das fronteiras entre público e privado, sobretudo em um contexto de iminência de crise e escassez
, analisando dois movimentos: a publicização do privado e, em contrapartida, a privatização do público. Aquela é estudada pela perspectiva de uma regulação do mercado para além do que recomenda a Constituição, ou seja, para além do planejamento apenas indicativo do setor, bem como da disseminação dos valores de participação e de legitimação
(NOHARA, 2015, p. 30). Já a privatização do público é enfocada desde a preocupação das agências reguladoras em propiciarem lucros aos investidores privados que atuam na prestação de serviços públicos até a investida pela flexibilização do regime público. Portanto,
não mais se mostra possível continuar reproduzindo e propagando acriticamente o dogma da supremacia do interesse público no direito administrativo. A par das dificuldades para seu enquadramento teórico [...], operou-se uma substancial mudança no quadro político-jurídico que ensejou a sua formulação. Os novos rumos tomados pela filosofia jurídico-política contemporânea, alicerçados na jurisprudência dos princípios e na teoria do discurso, apontam para uma revisão daquele axioma (BATISTA, 2001, p. 191).
A dicotomia entre Estado e mercado tem uma correspondente corrente de defensores, cada qual em seu polo, a seu modo, defendendo a necessidade de prevalência de um ou de outro. No contexto em que se valoriza a dicotomia Estado versus mercado há uma corrente que se esforça para apresentar uma superioridade deste sobre aquele. O debate público no Brasil, sobretudo pela voz de segmentos mais privilegiados na sociedade, pretende fazer crer que o crescimento econômico necessitaria mesmo de uma contensão do Estado. No entanto, quando colocada em prática, nos anos 1980 e 1990, essa proposta não se confirmou (IPEA, 2010).
Nos anos 1980, o Banco Mundial propunha uma agenda de ajustes fiscais que atendia às exigências do neoliberalismo. O Estado deveria reduzir seus gastos e seu tamanho, até porque se defendia a separação entre política econômica e política social. Era nítida, portanto, a dicotomia entre Estado e mercado. Todavia, já na primeira metade da década de 1990 o Banco Mundial passou a advogar uma relação de complementaridade (PEREIRA, 2018).
Mas é preciso ver a dicotomia proposta também por quem critica o mercado, apontando-o como algo nocivo ao público, ao coletivo, a tudo que o Estado tutela, como o meio ambiente, o emprego e a renda, a emancipação, os direitos sociais. Para essa corrente, é preciso um Estado forte para fazer frente às insinuações do mercado, que reiteradamente apresenta pretensões ou realiza ações que não correspondem ao interesse público de que o Estado é