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Lapponia: A descrição dos povos sámi e o projeto imperial sueco na obra de Johannes Schefferus (1648-1673)
Lapponia: A descrição dos povos sámi e o projeto imperial sueco na obra de Johannes Schefferus (1648-1673)
Lapponia: A descrição dos povos sámi e o projeto imperial sueco na obra de Johannes Schefferus (1648-1673)
E-book371 páginas4 horas

Lapponia: A descrição dos povos sámi e o projeto imperial sueco na obra de Johannes Schefferus (1648-1673)

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Sobre este e-book

A obra Lapponia: A descrição dos povos sámi e o projeto imperial sueco na obra de Johannes Schefferus (1648-1673), apresenta, a partir da perspectiva do humanista Johannes Schefferus, algumas considerações do autor a respeito dos modos e costumes da população sámi, habitantes do Norte, mal vistos pelos escandinavos do Sul.
Nessa obra o autor comprova a crença errática dos suecos de que "povo pacífico, mediador e periférico no processo de colonização".
Objetivo do autor é descrever como a obra de Schefferus ainda mostra força nos dias atuais, em relação a imagem que oferece sobre a força colonial dos suecos, narrativa desenvolvida a partir dos cânones humanísticos consagrados.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento6 de jul. de 2022
ISBN9786558407829
Lapponia: A descrição dos povos sámi e o projeto imperial sueco na obra de Johannes Schefferus (1648-1673)

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    Lapponia - Vitor Bianconi Menini

    PREFÁCIO

    Tive a honra de receber da parte de Vitor Menini o convite para apresentar sua obra, baseada em sua dissertação de mestrado defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Nossos primeiros contatos se deram no contexto acadêmico da Unicamp, iniciados por meio de um convergimento de interesses acadêmicos mútuos – inicialmente, os autores da Suécia cedo-moderna. Anos depois, ao campo dos interesses acadêmicos foram somados o respeito pela pessoa e acadêmico e a amizade. Embarquei na leitura de seu trabalho, residindo então nas margens do Báltico, com o interesse duplicado, e o resultado da pesquisa não me desapontou.

    No capítulo inicial Menini apresenta ao leitor os Saami ou Sámi, conhecidos por muitos pela terminologia depreciativa de lapões; a historiografia lida com eles e o autor principal a ser estudado, Johannes Schefferus.

    Esse primeiro capítulo é emblemático de toda a obra, apresentando as características marcantes de seu autor – seriedade acadêmica, bom diálogo e leitura das fontes primárias e competência na apresentação de um tema que, para o leitor de fala portuguesa, pode parecer distante e enigmático.

    Menini consegue, no entanto, demonstrar claramente como um contexto que cultural e geograficamente se apresente distante ao público mencionado pode revelar-se rico de significado para o leitor contemporâneo. Essa relevância não é demonstrada apenas de forma tangencial, ao mencionar o significado da obra de Scheferrus para autores portugueses e mesmo antes, o interesse de Damião de Góis em Johannes Magnus, mas se explicita na demonstração de temas fundamentais não apenas para a historiografia, mas para a totalidade das ciências humanas.

    Ao afirmar que a análise da obra de Schefferus esteve atrelada à análise de sua recepção, Menini apresenta um problema caro e de difícil solução com o qual se defronta a maioria dos historiadores que lida com períodos históricos mais recuados.

    Ao mesmo tempo, Menini traz à tona questões prementes para nossos tempos contemporâneos, como poder e colonialismo, centros e periferias, desenvolvimento de Estado e até mesmo lugar de fala, ao reconhecer a si mesmo e quase que a totalidade da historiografia que lida com os Sámi como "outsiders no mundo Sámi".

    No segundo capítulo, Menini apresenta uma balanceada – mas ao mesmo tempo erudita e compreensível – explanação referente à formação do Estado Sueco e sua transformação de um reino periférico medieval a uma das maiores potências europeias modernas. Os benefícios evidentes para o leitor vão além da compreensão do desenvolvimento de região da Europa pouco entendida no mundo lusófono, incluindo também uma discussão de profundidade e abrangência de questões teóricas de aplicação mais ampla, como o desenvolvimento dos Estados Modernos europeus, autoritarismo e centralização de poder, o papel da confecionalidade e o entrelaçamento entre Estado e Religião – repetimos, temas que se revestem de relevância nos desenvolvimentos recentes da geopolítica mundial, norte e sul americana.

    O mesmo capítulo apresenta exposições de eruditos da Suécia cedo-moderna como os irmãos Magnus, em meio aos processos de reforma e mudança religiosa que propiciaram a escrita de uma das obras mais interessantes e influentes da Idade Moderna, a História dos Povos setentrionais, de Olaus Magnus. O capítulo se encaminha para seu fechamento em um ponto elevado e caro à pesquisa, apresentando uma narrativa detalhada da inserção ou sujeição dos sámi ao Império Sueco e à cosmovisão luterana e a consolidação de sua posição de exótico ao restante do mundo europeu.

    Por fim, o leitor é informado, ainda que em menor extensão, da tão desconhecida quanto frustrada empreitada colonial sueca moderna na América do Norte, na qual o conhecimento e atitudes suecos em relação à Lapônia seriam espelhados no seu trato com os nativos norte-americanos.

    Por fim, no terceiro e último capítulo da obra, Menini se aprofunda em seu autor, Johannes Schefferus, e na descrição e versão que este faz da Lapônia, em diálogo com os temas já aprofundados anteriormente. Tal seção adiciona um colorido mais pessoal, ainda que similarmente acadêmico e consistente à pesquisa. Em sua análise da fonte primária, Menini apresenta não apenas os pensamentos de seu autor sobre o tema em questão, mas investiga, como de se esperar em um trabalho de solidez historiográfica, os diálogos de Schefferus com os que vieram antes dele – como o referido Olavus Magnus – e ao mesmo tempo, esclarece e elucida o texto com base na bibliografia atualizada sobre o tema e por meio de suas próprias análises.

    Essa seção apresenta aspectos adicionais relacionados ao tema da Lapônia, como a religião xamânica e o uso do tambor. Há um claro paralelo na estruturação e inserção de tal tema com o que é feito no capítulo anterior ao apresentar elementos da Nova Suécia, na iniciativa sueca moderna na América do Norte, e em seu trato com os locais.

    É evidente que tais aspectos de religião e mitologia setentrionais, popularizados na última década pelo lançamento de séries e filmes e pela proliferação de grupos acadêmicos e de reenactment de maior ou menor qualidade, compõem parte do interesse pessoal do autor. Cabe notar, no entanto, que Menini é capaz de apresentar tais características em sua obra não apenas de forma acessória, tampouco como um aglomerado de curiosidades. Antes, ele demonstra que o exotismo, tanto outrora como no momento presente, se presta para diversos propósitos que transcendem em muito seus significados originais e refletem anseios e representações contemporâneos. Nas palavras do autor, ao serem elogiados, os setentrionais eram considerados próximos e, quando se procurava descrever práticas mais problemáticas e inaceitáveis – em relação à sociedade sueca –, eram distanciados.

    Podemos afirmar, portanto, que um mérito adicional da obra de Menini é apresentar de forma sólida, não apenas ao leitor ocasional, mas também ao especialista, temas que receberam ressalvas por parte da historiografia consolidada como a religiosidade setentrional.

    Antes disso, no entanto, temos de mencionar o mérito central do trabalho, que é seu pioneirismo ao apresentar em língua lusófona um contexto praticamente ausente na análise historiográfica. O interesse na Europa Setentrional medieval aumentou exponencialmente nas últimas décadas, acompanhado de um similar crescimento na produção bibliográfica. O mesmo não se pode dizer, no entanto, da Europa Setentrional cedo-moderna. À parte trabalhos confessionais lidando com as Reformas Protestantes nas áreas de fala alemã e nossa própria produção relativa a Olaus Magnus, existe notável lacuna a ser preenchida no campo.

    A dificuldade do diálogo em expressão lusófona torna ainda mais relevante a consistência e a seriedade apresentadas na pesquisa, características que, sem sombra de dúvida, fazem o trabalho em questão imediata referência para investigações posteriores nos mesmos contexto e tema.

    É desnecessário reafirmarmos que recomendamos a obra sem ressalvas. Convidamos ao leitor que desfrute da jornada o quanto antes, com o mesmo interesse que o fizemos.

    Andris Mucenieks, dr Hist

    Rīga, verão de 2021

    INTRODUÇÃO

    Em recente levantamento acerca do Museu Histórico de Estocolmo (Historiska Museet), Marta Spagen identificou que os elementos sámi presentes nas exposições eram apresentados de forma a corroborar uma imagem desses povos como nômades. Na exposição Vikings, por exemplo, enquanto as atividades nórdicas são apresentadas de forma colorida e como povo hospitaleiro, os sámi são mostrados como uma população difusa, ocupante de um vazio geográfico praticamente inóspito e envolvida em atividades ininteligíveis. Assim, os nortistas são considerados como um povo da natureza, inserido em uma paisagem coberta por neve, congelada e fria: a irrevogável visão sulista sueca sobre o Norte³.

    Apesar da subsistência de mitos e estereótipos sobre os sámi, é inegável que a partir dos anos 1970 e 1980 houve considerável aumento na produção de estudos sobre essa população a partir de perspectivas não nórdicas. A este respeito, pelo menos três fatores simultâneos podem ser resgatados em novas discussões. No cenário escandinavo, o fortalecimento do movimento sámi culminou, entre outros aspectos, na criação dos diversos Parlamentos Sámi. No cenário mundial, a expansão das agendas pós-coloniais afro-asiáticas, somadas ao surgimento do debate historiográfico sobre a História dos excluídos, gerou material considerável para o questionamento de uma História nórdica hermética, tornando insustentável a obliteração da presença sámi nessas narrativas. No mesmo período, termos como arqueologia sámi, Idade do Ferro Sámi, "Sápmi e o próprio adjetivo sámi como substituto do termo depreciativo lapão" passaram a figurar o glossário acadêmico⁴.

    No entanto, precisamos assinalar que essa proposta, ainda recente, é fruto das transformações sociais e historiográficas que ocorreram nos países nórdicos a partir dos anos 1990. Johan Höglund e Linda Andersson Burnett atrelaram a demora dos escandinavos em tratar do passado colonial e presente pós-colonial à posição atual que os países nórdicos têm, atualmente, enquanto baluartes da equidade, justiça e dos direitos da minoria e sua autoimagem: como povo pacífico, mediador e periférico no processo de colonização. Além disso, a última década do século XX viu emergir revisões sobre o passado colonial sueco no Atlântico⁵ e na Sápmi⁶ que reavaliaram os impactos nas formas de conceber o mundo a partir da nova relação entre europeus e americanos. Dentre esses autores, Gunlög Fur é a historiadora de maior relevância no que se refere às formas de encontros coloniais e suas consequências para a história da Escandinávia⁷.

    Os contatos entre as diferentes populações da Fenoescândia – sejam germânicos (noruegueses, dinamarqueses e suecos), fínicos (finlandeses) ou sámi – têm antiga datação e foram cruciais para o futuro relacionamento desses povos vizinhos. No entanto, entre os séculos XVI e XVII, o aumento da presença e do controle estatal sueco sobre os territórios e populações sámi por meio de novas políticas de ocupação da região, e da missionação luterana, gerou novas mudanças sociais, econômicas e legais de forma definitiva e irreversível⁸.

    O caso específico da Suécia Moderna e sua relação com os sámi foi tema de um projeto temático da Universidade de Uppsala que buscou:

    […] examinar como, quando e porque o ato de coletar objetos Sámi ocorreu durante o período da primeira modernidade, além de acompanhar como esses objetos transitaram entre coleções e colecionadores nos países nórdicos e em outros locais. Outrossim, o objetivo é estudar as consequências e importância do colecionismo cedo-moderno da cultura material Sámi na sociedade contemporânea⁹.

    Para isso, o projeto intitulado Collecting Sápmi, busca explicar por que, e mediante quais condições, os objetos sámi foram coletados no período moderno. A partir daí busca estabelecer a relação dessas coleções com outras de outros povos também em contato com os europeus (como o caso de diversos grupos indígenas de toda América, assim como na África e na Ásia). Por fim, esse projeto histórico-arqueológico propõe mensurar como esses movimentos da Modernidade desembocaram nas noções de patrimônio e cultura sámi atuais¹⁰. Além disso, em 2019, foi realizado na Universidade de Estocolmo o congresso The Global North, que buscou fortalecer as discussões sobre o Norte pré-setecentista conectado às redes culturais, econômicas e políticas¹¹. Em 2020, a Society for the Advancement of Scandinavian Study (SASS) teria um congresso – o centésimo primeiro encontro do grupo – em que a perspectiva dos emaranhamentos pós-coloniais, ênfase das últimas décadas de pesquisa, seria tratada como o arcabouço teórico central de modo a escrutinar as relações de poder (passadas e presentes) e inserir os países escandinavos enquanto agentes do colonialismo. No entanto, a pandemia do covid-19 impossibilitou a realização do evento que foi reagendado para o ano de 2022¹².

    Desta maneira, a partir dessa nova postura historiográfica, buscamos relacionar a experiência política sueca durante o século XVII e o panorama histórico-cultural de coleta da vida material sámi – por meio do avanço sueco nas terras do Norte e da missionação luterana – à produção da Lapponia de Johannes Schefferus; figura proeminente da Universidade de Uppsala analisada por vasta bibliografia¹³. A partir da análise dos trabalhos sobre o professor na última década, é possível identificar que sua Lapponia recebeu atenção considerável. A principal característica sublinhada nas análises foi a proposição de Schefferus como um marco na forma de se tratar dos sámi: há um antes e um depois de Lapponia.

    O primeiro momento, anterior ao humanista, estaria marcado por referências pouco precisas e fantasiosas sobre os sámi que contribuíram para, conforme o estrasburguês, a necessidade de escrever um relato verídico sobre essas populações setentrionais. Já o segundo período, caracteriza-se pela lapologia, da qual a obra do professor é interpretada como a pioneira. Ou seja, a partir dos encontros culturais calcados nas propostas coloniais e missionárias (luteranas) na Suécia, os sámi passaram a interessar enquanto objeto antropológico. Assim, o texto de Schefferus teria sido escrito e impresso como forma de reivindicar o território da Sápmi e responder às ambições e curiosidades transnacionais do século XVII¹⁴.

    Publicada em folio pela primeira vez em 1673, na cidade de Frankfurt, Lapponia recebeu, ainda no século XVII, traduções para o inglês (1674), alemão (1675), francês (1678) e holandês (1682). No século XVIII, o texto recebeu outras três versões: duas inglesas (1704 e 1751) e uma holandesa (1716). Apesar dessas três novas edições, a maior parte das informações de Lapponia que circularam na Europa setecentista eram pequenos excertos aliados às imagens copiadas ou adaptadas (algumas coloridas) do texto. O estrasburguês foi, também, mencionado na famosa Encyclopédie editada por Denis Diderot e Jean d’Alembert, no entanto a citação não reforça seu status de autoridade no assunto. No artigo Laponie, o ilustrado Louis de Jacourt reconhece a existência do relato de Schefferus, mas o considera uma história mal digerida, especialmente se comparada com a versão de Voltaire sobre os povos do Norte¹⁵.

    Além dos eruditos enciclopedistas, alguns viajantes franceses, em expedições à Sápmi, buscaram confirmar ou desmentir Schefferus. No próprio território sueco, a publicação Lapônia ilustrada, de Olof Rudbeck Jr., no mesmo volume que a edição inglesa de 1704 de Lapponia, reavaliava a narrativa de Schefferus. Outro sueco que, baseado em Schefferus, produziu seu próprio relato foi Carl von Linné¹⁶. Seu Lachesis Lapponica, publicado no início do século XIX (1811) circulou, assim como a obra de Schefferus no início do século XVIII, em textos breves e acessíveis a um público maior¹⁷. Já no final do século XIX, Gustaf von Düben partiu da análise de Schefferus para escrever sua etnografia sobre os sámi suecos em Lappland and the Lapps (1873). No entanto, assim como o estrasburguês duzentos anos antes, a maioria das informações que von Düben dispunha eram de segunda mão, especialmente Petrus Laestedius e Anders Fjellner¹⁸.

    Restrito aos estudos etnológicos dos séculos XIX e XX, o relato de Schefferus foi recuperado por Björn Collinder. Professor do departamento de línguas fino-úgricas da Universidade de Uppsala, Collinder, em seu The Lapps (1949), escreveu:

    Além do notável Muittalus samid birra, escrito pelo caçador de lobos lapão e traduzido para o dinamarquês, sueco, inglês e alemão, nenhuma pesquisa ampla sobre esse assunto apareceu na língua inglesa desde 1674, quando a eruditao compilação de Johannes Schefferus Lapponia foi publicada […] sob o título The History of Lappland. O objetivo das páginas seguintes é preencher essa lacuna¹⁹.

    Collinder, que assinalara a necessidade de se produzir uma nova descrição detalhada dos sámi, pouco dialoga com a obra de Schefferus ao longo das 231 páginas de seu volume. No entanto, o professor sueco fez uma importante observação sobre o momento da produção de Lapponia:

    Schefferus escreveu Lapponia a pedido das autoridades suecas e todo o material disponível foi colocado à sua disposição. Clérigos que conheciam a Lapônia em detalhes foram ordenados a fornecer-lhe descrições sistemáticas precisas, e não é o menor dos méritos de Schefferus que ele citou seus informantes em todas as páginas de sua dissertação²⁰.

    Pouco tempo depois de Collinder e sua nova descrição dos lapões, foi publicada Lappland (1956)²¹, uma tradução sueca do trabalho de Schefferus, como oitavo volume da série Acta Lapponica, sob edição de Ernest Manker²². Já nos anos 1970, uma edição fac-símile da versão inglesa de 1674 foi publicada em Estocolmo²³. Ambas as edições, em seus respectivos comentários críticos, endossam a narrativa semelhante à de Collinder sobre a encomenda do chanceler Gabriel de la Gardie. No entanto, a relação entre ambas as personalidades não deveria soar como novidade alguma, visto que o próprio Schefferus sublinhou sua devoção ao governante sueco²⁴. Nesse sentido, o panorama político de Lapponia foi, durante o século XX, simplificado ao fato de ter sido um trabalho requisitado.

    Desse modo, percebemos que a ênfase conferida à obra esteve atrelada à análise de sua recepção e não, necessariamente, do texto, sendo que pouca atenção foi dada à dimensão retórica²⁵ e ao contexto histórico-linguístico do humanista. A partir dessa discussão e da proposta de que a obra do professor estrasburguês contribuiu de forma significativa para os debates sobre o progresso e destino dos indígenas e povos colonizados em todo o globo²⁶, propomos uma abordagem eclética, que sublinhe Schefferus como o construtor de uma nova camada conceitual sobre os sámi levando em consideração o contexto político (expansão e legitimação das ações suecas enquanto potência) e discursivo específico (referencial humanista e o discurso lapológico). Ao final dessa empreitada, esperamos contribuir com as reflexões sobre a formação e manutenção das estruturas políticas da Suécia setecentista (o chamado processo de formação do Estado) conectada à agência de personalidades como Johannes Schefferus e suas próprias fortunas.

    Do ponto de vista teórico, propusemos uma abordagem contextual-conceitual, isto é, uma junção de duas tradições metodológicas: o contextualismo linguístico – conhecido, principalmente, pelos trabalhos de Quentin Skinner e John Pocock – e a História dos conceitos, pensada e divulgada pelo alemão Reinhardt Koselleck. A partir dessa junção de ingleses e alemães, advogada por Melvin Richter, podemos examinar tanto os horizontes teóricos de Schefferus (a forma como ele interpretava e descrevia o mundo) quanto dos motivos – sejam eles os impulsos políticos ou a promoção, por parte do autor, de um estudo capaz de mover, informar e encantar o leitor – da escrita de Lapponia.

    Dos britânicos utilizamos suas indicações sobre o contexto linguístico de Schefferus, isto é, procuramos investigar o que o autor quis dizer ao escrever Lapponia, levando em consideração que, para isso, precisamos extrapolar a análise textual e buscarmos elementos exteriores à fonte principal para, no fim, fornecermos explicações plausíveis sobre o que o autor pretendeu ao escrever de determinado modo. Dos alemães, especialmente as contribuições de Reinhardt Koselleck, partiremos de sua definição de conceito²⁷ para, em uma análise sincrônica e diacrônica, compreendermos como Schefferus fundiu seus horizontes teóricos aos textos anteriores sobre o sámi para escrever Lapponia.

    Ao tratar das origens do povo lapão, o humanista expõe sua tese central:

    Negativamente, podemos sentenciar e concluir que eles não eram suecos, não havendo povo que fosse tão diferente, tanto na constituição do corpo e da mente, assim como na língua e nos hábitos ou o que quer que seja considerado como característica de semelhança ou tendo a mesma origem. Ninguém pode pensar, também, que eles eram russos ou moscovitas; dado que [os lapões] diferem tanto destes quanto dos suecos. (...) Eles devem, então, descender de seus vizinhos, sejam os noruegueses de um lado ou os finlandeses do outro²⁸.

    A passagem destacada é de extrema significância, pois nela, Schefferus fornece ao leitor os principais quesitos classificatórios que utilizou para descrever os sámi: suas formações físicas e psíquicas, hábitos e as línguas. A partir de uma descrição ambivalente desses habitantes, entre a diferença e a similaridade, Schefferus circunscreve os sámi à esfera de poder do rei sueco e especula sobre a origem dos lapões com o objetivo de separá-los dos suecos.

    No primeiro capítulo, iniciamos com um levantamento das visões do Norte anteriores ao texto de Schefferus. Enfatizamos as publicações do humanista sueco Olaus Magnus (Carta Marina e Historia de Gentibus septentrionalibus, 1555) e sua recepção em textos como Antonio de Torquemada (Jardín de las flores curiosas, 1570). Cem anos depois da publicação de Magnus, a Europa tratava de uma Lapônia conhecida por seus bruxos e feiticeiros que, segundo a propaganda católica, teria participado dos confrontos militares durante a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). Buscando afirmar sua posição enquanto reino luterano consolidado, era impensável a possibilidade de associação dos suecos à magia e feitiçaria proveniente do Norte. Foi a partir disso que o humanista Johannes Schefferus recebeu a incumbência de escrever um relato sobre os habitantes da Sápmi. O texto recebeu, em uma década, traduções para diversas línguas europeias e é considerado o primeiro a tratar exclusivamente da geografia e formas de viver dos povos setentrionais. Assim, em pouco tempo, Schefferus tornou-se fonte importante de consulta para os diversos viajantes que visitaram a região, como Regnard Outhier e Carl von Linné. Em seguida, para compreender as implicações políticas relacionadas ao projeto de construção e expansão de um potentado moderno em avanço, descrevi Johannes Schefferus como humano e humanista. Ou seja, buscamos inseri-lo em seu tempo e ambiente intelectual, estabelecendo, portanto, suas conexões e visões de mundo para, no final, relacionarmos sua figura ao processo de fortalecimento do Estado sueco.

    No capítulo dois promovemos um balanço das interpretações acerca do período, na História sueca, conhecido como Stormaktstiden. A partir daí evidenciamos alguns episódios – entre os séculos XVI e XVII – relacionados aos desafios e atritos internos enfrentados pela dinastia Vasa para a construção de instituições mais centralizadoras. Por fim, partimos para a investigação do momento expansionista sueco iniciado a partir da intervenção de Gustavo II Adolfo no conjunto de conflitos que denominamos Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). Em meados do século XVII, a Suécia buscou firmar sua posição em territórios como a Calota Norte²⁹, territórios bálticos (Estônia e Livônia) e para a costa do Atlântico Norte (bacia do rio Delaware). Desse modo, nossa proposta é a de que a formação e a expansão desse Estado moderno fazem parte de um mesmo processo. Podemos demonstrar essa tangência se, em nossa análise, considerarmos tanto as disputas políticas internas (responsáveis por forjar a base política e constitucional do reino) quanto o processo de expansão territorial e envolvimento sueco em conflitos no continente ao longo do século XVII.

    Propor um estudo que leve em consideração a construção do Estado da Suécia, assim como outros temas relativos à História escandinava, possui inúmeros desafios. O mais evidente é o idioma, visto que a maior parte da bibliografia se encontra em sueco. Mesmo com o crescente número de obras em língua inglesa, o material encontra-se majoritariamente no vernáculo escandinavo. Bibliografia de acesso restrito, pois normalmente está sob a guarda de bibliotecas europeias. Em português a produção é diminuta e a reflexão mais destacada sobre a temática é a de Perry Anderson em Linhagens do Estado Absolutista³⁰.

    Nesta perspectiva, precisamos olhar para a acuidade do estudo do caso sueco. Primeiro, pela importância geopolítica e histórica que o reino sueco teve no século XVII. Entre narrativas que enfatizam um início inexplicável e outras que preferem tratar de um fim inevitável, as investigações sobre as tramas desenroladas nesse reino do Norte apontam para o êxito dessa empreitada: a Suécia, após a Guerra dos Trinta Anos, passa a ser peça fundamental no tabuleiro europeu, inclusive como a maior força militar setentrional até o avanço russo em meados do século XVIII.

    O segundo motivo é sublinhar as circunstâncias desse processo e circunscrevê-lo numa

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