Rafa

De Miguel Vicentim

Passeando entre vidas vividas e vidas fingidas, mistura personas em histórias elípticas que se encontram ou se sucedem de forma não contínua. Obras de Miguel Anselmo.

• Idioma: Português
• Editora: Clube de Autores
• Data de lançamento: 25 de out. de 2013

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Rafa

Um romance heteronômico

Rafa

Um romance heteronômico

Miguel Vicentim

Obras de Miguel Anselmo

Revisão ortográfica de Patrícia Weiss.

© Miguel Tadeu Vicentim

Vicentim, Miguel Tadeu.

Rafa: um romance heteronômico.

Obras de Miguel Anselmo.

São Paulo: Editora do autor, 2013.

ISBN 978-85-915842-0-8

CDD B869.93

e-mail: [e-mail]

Tudo que se passa no onde vivemos

é em nós que se passa

Tudo que cessa no que vemos

é em nós que cessa

Tudo que foi, se o vimos quando era

é de nós que foi tirado quando partiu

(Fernando Pessoa)

Ele ouviu o disparo e teve uma sensação forte de calor em seu peito. Não era dor. Foi empurrado para trás e pode sentir quando suas costas bateram contra o tronco da árvore que o apoiava. Toda sua força desapareceu e seu corpo escorregou lentamente até o chão, com os olhos vidrados na imagem daquele senhor que o ajudara ao lado de seu filho, ainda com a arma na posição do disparo.

Tudo aconteceu muito rápido. Desde a primeira conversa até aquele momento em que tudo se apagou como em televisores antigos de válvulas onde a imagem na tela se fecha e um último ponto de luz permanece brilhando por um instante ínfimo.

Depois seu corpo inerte foi arrastado até um buraco que havia sido escavado previamente próximo à árvore, com uma pequena pá que o filho, sempre atento às pequenas necessidades, havia levado. Cobriram seu corpo totalmente com terra. Folhas e galhos que estavam espalhados ao redor da cena foram empurrados com os pés para disfarçar o sangue e decorar aquela cova improvisada. A partir deste momento o planeta se encarregaria de decompor aquele ser, não mais humano.

Este é um fato risível. Em uma conversa que teve com aquele senhor, animado pela terceira dose de Jack Daniel's, foi ele mesmo quem descrevera como gostaria que fosse seu túmulo: uma cova no meio da mata onde, seu corpo nu envolto em terra e coberto por folhas, se decomporia lentamente. Falou sobre vermes e minhocas que transformariam sua carne em húmus, deixando seus ossos como único resquício daquela pessoa que deixara a vida seguir seu rumo natural.

Ao menos este desejo fora atendido. Muito embora, ao conhecer aquele senhor, seus desejos fossem inumeráveis.

Estava sem emprego fixo, sem dinheiro, com fome. Naquela manhã acordou cedo e leu os anúncios de trabalho de jornais disponíveis na Biblioteca Municipal, e como aquela oferta estava próxima, foi eleita a primeira do dia.

Ele se sentiu com sorte. Era um bairro residencial na região central da cidade, muitas casas grandes resistiam aos edifícios que se erguiam a cada dia. Havia a entrada para a casa, um pequeno escritório e a garagem no térreo. Sobre esta instalação uma sala imensa com vários ambientes, uma varanda na frente, escadas davam acesso à área íntima da casa onde ficavam quartos no piso superior. Ao lado da sala imensa estava a cozinha e uma copa que também fazia o papel de sala de jantar. No fundo do terreno existia um quintal tão grande quanto a casa, com muitas plantas, piscina, churrasqueira, sauna, toda a estrutura de conforto e lazer necessária a um bom burguês. Os quartos tinham acesso direto àquele pequeno paraíso; para as visitas existiam corredores laterais que também serviam para separar aquela casa soberba das edificações vizinhas.

Todos estes detalhes da casa ele conheceria aos poucos, no dia a dia de seu trabalho. Naquela primeira manhã ele pode apenas sentir o aroma que vinha da cozinha onde o feijão estava sendo cozido para o almoço, pois não podemos nos esquecer, ele estava com fome.

A negociação foi rápida, um pequeno teste para comprovar conhecimento nos programas de edição de texto e planilhas de cálculo que seriam necessários para compor os relatórios que ele deveria digitar e diagramar. Mais alguma conversa sobre origem, vida, pretensões superficiais; nada que necessitasse de comprovações com firma autenticada ou documentos originais, muito menos alguma verdade universal. Estabeleceu-se um valor, que agradou muito a quem