Café Turco
De Guto Castro
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Café Turco - Guto Castro
Capítulo 1
A Noite Anterior
Londres
Quando ele tocou o cartão pré-pago na
catraca do metrô já passava da meia-noite. O
cartaz afixado próximo às escadas rolantes
mostrava que o último trem em direção a
Kings Cross passaria em 2 minutos. Ele
apressou o passo, desceu os dois lances de
escadas rolantes correndo, junto a ele vários
outros corriam tentando chegar até a
plataforma antes do trem. Pareciam fugir de
algo, pareciam tentar escapar de uma
catástrofe ou coisa do gênero.
O trem chegou e estava lotado de pessoas
barulhentas e cambaleantes, algumas
vestidas em roupas de festa e muitas delas
bêbadas. "Cuidado com o vão, cuidado com o
vão" – dizia uma voz pelo alto falante. Ele
entrou no vagão, pulando o vão – como se
fosse uma distância quase intransponível, o
trem fechou suas portas e partiu. A pequena
porta que ligava um vagão ao outro foi aberta
espalhafatosamente. Um homem alto, magro,
com barba por fazer, sujo, bem sujo e
carregando nas mãos uma mochila mais
imunda começou a falar em um inglês bem
pronunciado e pausado, porém com um forte
sotaque irlandês:
- Senhoras e senhores, desculpem-me mas eu
estou aqui perturbando porque não tenho
outra opção. É melhor pedir do que roubar.
Preciso juntar quatro libras pra conseguir
pagar o albergue e até o momento não tenho
nada mais do que vinte e cinco pences...
É melhor pedir do que roubar
, ao ouvir isso
imediatamente sua mente viajou vinte e cinco
anos no tempo, parecia ouvir o pedinte
entrando no ônibus da TCB que trafegava
pela via W3, na época a principal via da
capital do Brasil. "Pobres são iguais em todo
o mundo" - pensou ele enquanto buscava
uma moeda no bolso. "E, esse precisa de um
banho, fede mais a álcool que todos os outros
passageiros." – concluiu o pensamento
esboçando um leve sorriso enquanto
depositava uma moeda nas mãos do pedinte.
Ele havia conseguido sair de West End, mas
ainda teria de conseguir chegar a Kings Cross
a tempo de trocar de linha e pegar o outro
trem que o levaria para casa. Quando
finalmente o trem parou em Kings Cross,
muita gente desceu e muita gente queria
subir. Organizadamente, mesmo com o alto
teor etílico, e a aflição para não perder os
últimos trens da noite, todos os que estavam
na plataforma esperaram os passageiros que
ali desceriam desembarcarem para depois
começarem a embarcar no trem. A
organização do caos era surpreendente
naquele lugar.
Mind the gap. Cuidado com o vão
, dizia
novamente a voz no alto falante. "Este é o
último trem de hoje da Linha Picadil y. Os
últimos trens das Linha do Norte e da Linha
Vitória partirão em um minuto".
Ele ainda tinha um minuto para chegar até a
plataforma da Linha do Norte. Era tanta gente
lenta e cambaleante à sua frente que foi
preciso empurrar alguns e abrir espaço para
conseguir chegar até as escadas rolantes,
descer mais dois níveis correndo, e finalmente
chegar até a plataforma correta. O metrô já
estava anunciando a partida. Ele correu,
entrou e as portas do trem se fecharam atrás
dele.
Yes! – Disse ele em voz alta – feliz e contente
por ter conseguido fazer a baldeação.
Enquanto o trem partia era possível ver
alguns outros usuários chegando à
plataforma, xingando, chutando o ar e
chorando por terem perdido o último trem.
Três minutos depois ele chegou à estação
Angel. Saiu do trem, venceu a multidão que
tentava embarcar, andou em direção à saída,
andou, andou e andou. As estações do
tube
, como chamavam o metrô por ali,
eram, em alguns casos, muito profundas e
distantes das entradas e saídas para a rua,
muitas vezes demorava-se mais para entrar e
sair de uma estação do que a viagem de trem
propriamente dita. Subiu escadas, andou
mais um pouco, subiu outras escadas, e
deparou-se com aquela que era a mais longa
de todas as escadas rolantes da Europa - e
ela estava desligada. Respirou fundo e
começou a subir a longa escalada de quase
30 metros de altura. Uns dez andares
,
pensou ele olhando para as outras escadas e
notando que ninguém descia. A estação já
devia estar fechada.
Tocou o cartão pré-pago na catraca e ela
abriu-se magicamente, debitando mais
algumas libras de seu cartão. Apenas uma das
portas da estação estava aberta para saída, e
na frente desta um guardinha impedindo as
pessoas de entrarem. Ele saiu e deparou-se
com uma pequena multidão do lado de fora.
Algumas pessoas desconsoladas choravam
por terem perdido o último trem, outras riam
e a maioria apenas bebia. Alguns
desorientados procuravam rotas de ônibus e
outros simplesmente ficavam lá olhando pro
antonti
. Ele passou por entre elas, passou
em frente ao Pub Angel Inn
, que dava nome
à estação - já estava fechado àquela hora, e
desceu a City Road. À medida em que ele se
afastava da estação, a rua ia ficando mais
calma e mais vazia, passou pelo canal, virou
à esquerda numa rua pequena e buscou a
chave no bolso do paletó.
Abriu o portão do prédio, verificou a caixa de
correspondência – só contas e propagandas.
Colocou tudo de volta na caixa, – outro dia eu
pego – pensou ele, cansado e ainda um pouco
tonto. Subiu as escadas, e abriu a porta do
apartamento, largou o paletó do terno em
cima do sofá, tirou a gravata jogando-a sobre
a mesa e foi para o quarto.
Olhou para a cama macia e quentinha. "Como
seria bom dormir agora", pensou. Porém
sabia que o melhor era não dormir aquela
noite, pois correria o risco de não acordar às
3h30 da madrugada. Aquele vazio e aquele
silêncio da casa eram um convite para dormir,
mas ele ainda teria de arrumar malas e tomar
banho antes de viajar.
Viajar. Viajar. Viajar.
Pensou ele
alegremente. E não havia sido essa a principal
razão dele ter escolhido Londres como base
para suas aventuras? Para ele viajar era como
viver, só que melhor. E se havia algo que ele
sabia fazer, era viver intensamente.
Morar em Londres podia ser caro e
complicado, mas tinha suas vantagens,
acreditava ele, era o centro do mundo
moderno. Dos seus cinco aeroportos partiam
voos para toda e qualquer parte do globo,
nenhuma outra cidade no mundo tinha o
movimento que os aeroportos de Londres
proporcionavam à capital inglesa. Com um
pouco de tempo e pouco dinheiro era possível
ir para qualquer canto da Europa, com um
pouco mais de tempo e um pouco mais de
dinheiro, o mundo todo estava ali, ao alcance
dos voos. Dos aeroportos de Londres para o
mundo é fácil, sorria ele enquanto colocava
uma mala azul vazia sobre a cama, o
problema era sair de Londres e chegar aos
aeroportos.
"Eu prometi a mim mesmo que não mais
pegaria o primeiro voo da manhã. Mas
sempre o faço", reclamou em voz alta para si
mesmo enquanto olhava para uma calça
jeans e decidia se ela iria para dentro da mala
ou voltaria para o armário. Dobrou a calça e
deixou-a de lado, ali na cama, adiando a
decisão – duas calças já seriam mais que
suficientes, jogou algumas meias e cuecas
dentro da mala, uma para cada dia, pegou
uma outra camisa, dobrou-a e colocou-a na
mesma mala, olhou pra calça que havia
rejeitado e colocou-a na mala também.
Contou mais uma vez o número de peças de
roupa e deu-se por satisfeito. Fechou a mala
com orgulho pois pela primeira vez
conseguira fazer apenas uma mala com
razoavelmente pouca roupa – pelo menos
para ele três calças, três camisas, quatro
camisetas, um casaco, quatro cuecas, uma
bermuda, quatro meias, um tênis e um sapato
era pouca coisa para uma viagem de quatro
dias.
Separou o os tíquetes de voo, o passaporte e
as liras turcas que havia comprado naquela
mesma tarde, colocou tudo ao lado da cama
em um lugar bem visível para não esquecer.
Pegou alguns dólares, algumas libras
esterlinas e alguns euros e colocou junto das
liras. Seguro morreu de velho
, pensou ele
lembrando da frase que seu pai dizia sempre.
Olhou para a mala mais uma vez satisfeito.
Separou mais uma roupa para usar durante o
voo, tomou um banho demorado e colocou a
roupa escolhida. Tudo pronto e não eram três
horas da manhã ainda.
Apagou a luz do quarto, acendeu a luz da
cozinha, ligou a chaleira elétrica, conectou o
iPod nas caixas de som, escolheu o novo
álbum do Balaio que havia baixado e colocou-
o para tocar. Sentou-se esperando a água
ferver. O frio lá fora parecia realmente forte.
O verão havia até sido generoso aquele ano,
houve pelo menos duas semanas de calor, e
uns quatro ou cinco fins-de-semana com um
sol, mas agora que o outono chegava, tudo
mudava. Escurecia mais cedo, as pessoas se
recolhiam junto com o sol, o mundo voltava a
ser frio.
Da sua janela conseguia ver a rua principal lá
no fundo, e tanto a sua própria rua, como a
outra acolá pareciam vazias e geladas. Um ou
outro carro passava pela City Road, táxis
pretos e ônibus vermelhos quebravam o
silêncio e o vazio, mas desapareciam tão
rápido que o vazio e o silêncio pareciam ainda
maior que antes. Vez ou outra um pedestre
passava, cambaleando e equilibrando-se,
normalmente com uma garrafa de cerveja ou
um copo na mão. A metrópole agitada e
palpitante de algumas horas atrás dava lugar
a uma cidade pacata e silenciosa. Londres era
assim, diferentemente de São Paulo e Nova
Iorque, a cidade parecia descansar durante a
noite.
A chaleira desligou-se sozinha, anunciando
que a água estava quente. Ele levantou-se,
pegou uma caneca, um saquinho de chá,
colocou o saquinho dentro da caneca e
derramou a água sobre o chá na caneca. O
chá espalhava sua cor pela água quente bem
lentamente, uma pressionada no saquinho
com uma colher, fez a água ficar
completamente escura. "Preferiria tomar um
café, pensou ele,
mas dá muito trabalho".
Retirou o saquinho, deixou-o ao lado da pia e
pôs alguns pingos de leite no chá. Pegou a
caneca e sentindo o calor que vinha dela,
segurou-a também com a outra mão,
carregando-a com as duas mãos até a mesa
sob a janela como se fosse algo muito
precioso e frágil. Sentou-se novamente
assistindo passivamente o movimento de
táxis, ônibus e bêbados enquanto lentamente
apreciava o chá ouvindo a música ao fundo.
O tempo voou, já passavam das 3 da manhã.
Levantou-se rapidamente. Lavou a caneca,
jogou o saquinho de chá usado no lixo,
desligou a música que tocava, colocou o iPod
no bolso da camisa, vestiu o sobretudo,
pegou a mala, as chaves de casa e saiu.
Desceu as escadas que conduziam até a rua
e já quando alcançara o lado de fora, na porta
de casa, verificou pela última vez se estava
com tudo que era necessário em uma viagem
internacional: tíquetes, dinheiro, passaporte.
- tickets, Money, passport
disse em voz alta,
relembrando o que tinha visto num seriado de
televisão. Riu de si mesmo, abriu a porta
novamente, subiu as escadas, voltou ao
quarto e pegou o dinheiro, os tíquetes e o
passaporte. Pôs tudo no bolso do sobretudo,
abriu a porta novamente, olhou pra dentro de
casa por alguns segundos, como quem olhava
para um lugar pela última vez, e, despedindo-
se da casa vazia saiu novamente.
Enquanto caminhava pela rua escura e gelada
em direção à rua principal ia rezando
mecanicamente o Santo Anjo do Senhor
ao
mesmo tempo em que pensava na jornada
que faria até o aeroporto de Heathrow. Um
ônibus e dois trens depois e estaria lá no
infame Terminal 5, recém-inaugurado e cujo
primeiro mês de funcionamento havia sido
simplesmente um caos. Milhares e milhares
de bagagens desaparecidas, voos cancelados,
sistemas inoperantes.
No ponto de ônibus o letreiro luminoso
mostrava que o ônibus 205 chegaria em 7
minutos. Serão 7 minutos muito frios...
pensou ele.
Londres depois da meia-noite é mesmo outra
cidade. O sistema de metrô da cidade,
embora antigo e nem sempre limpo, espalha-
se por todos os cantos da metrópole. São 270
estações espalhadas por mais de 400
quilômetros de trilhos, servindo a população
há mais de cem anos. Conhecer o sistema
metroviário da cidade é essencial para a
sobrevivência no dia-a-dia, porém à meia-
noite tudo se transforma e o que era
sabedoria durante a luz do dia, passa a valer
nada na madrugada.
A cidade louca e agitada do dia dorme e uma
outra Londres aparece, não menos louca, mas
pacífica. As coisas começam a mudar logo
depois das cinco da tarde, os primeiros sinais
começam a aparecer, as pessoas saem dos
escritórios, andam até a estação de trem ou
de metrô mais próxima, tomam seus trens e
no caminho de casa passam no supermercado
para comprar o jantar. Boa parte já está em
casa por volta das seis horas, seis e meia no
máximo. Um ou outro moram mais distante,
no litoral ou no campo, deixaram os carros
nas estações de trem de suas vilas e de lá
vieram até Londres usando o transporte
ferroviário. Fazem o percurso inverso ao final
do dia e, mesmo esses estarão em casa por
volta das sete horas da noite. Porém uma
outra parte considerável daqueles operários,
empresários, trabalhadores e estudantes
dirigem-se para as Casas Públicas - Public
Houses, também conhecidas pelas três
primeiras letras do seu nome em inglês: Pub.
Até aí nada demais, nada diferente de outros
lugares do mundo onde uma pinguinha no
final do dia é comum e parte da
sociabilização. A diferença está na quantidade
de pessoas que vão para os pubs e na
quantidade de álcool ingerida. No inverno, o
frio não cede e a escuridão chega antes das
cinco da tarde. As pessoas ficam amontoadas,
em pé, dentro dos pequenos e numerosos
pubs espalhados por toda a Grande Londres.
Do lado de fora, ao lado da porta, sempre um
grupo recolhido, tremendo de frio, fumando.
Fumar em bares era proibido, e por enquanto
ainda era permitido fumar na rua.
Eles ficam ali, em pé, bebendo, as vezes indo
lá fora para fumar, bebendo um pouco mais,
vez ou outra conversando. Pouco antes das
onze horas da noite, em alguns pubs, ainda
ecoa um sino, avisando que o bar vai parar
de vender álcool, as pessoas compram mais
uns dois copões de meio litro de cerveja cada,
pois a lei não proíbe o consumo, mas sim a
venda. O bar para de servir, as luzes se
acendem, e mais uns dez minutos e os
bêbados clientes são convidados a deixarem
o pub. Bêbado em Londres não tem cara, não
tem cor, sexo, padrão. Começam a beber aos
dezoito anos e terminam, bem, terminam
quando terminam. São homens, mulheres,
novos, velhos, brancos, morenos, ruivos,
carecas. E são muitos, mas muitos mesmo.
Beber não é algo que é feito para intermediar
uma conversa de bar, para acompanhar uma
comidinha ou simplesmente para relaxar. Em
terras britânicas bebe-se por beber e a
principal e única razão é simples e direta:
bebe-se para ficar bêbado. Conversas, casos,
comida, amores e qualquer outra coisa são
efeitos colaterais que podem ou não ocorrer.
Entre as onze horas e a meia-noite os
bêbados britânicos estão soltos na rua.
Caminham por entre os becos e ruas,
cambaleando, falando alto e sozinho. Muitas
vezes eles andam em grupos, outras vezes
vão sozinhos mesmo. Essa é a hora crucial, a
hora da decisão: ou ir para um clube noturno
onde vendem bebida até o dia seguinte ou
tomam o último metrô pra casa. A caminho
da estação ainda conseguem passar nas lojas
off-license
e compram mais algumas
cervejas, vinhos, vodcas, uísques. Como não
podem mais entrar nos metrôs carregando
bebida alcoólica – além de