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Memórias Ao Vento
Memórias Ao Vento
Memórias Ao Vento
E-book302 páginas4 horas

Memórias Ao Vento

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Sobre este e-book

Memórias ao Vento. é uma crônica de vida em que o autor, a partir de tenra idade, aos três anos, relata suas experiências ao descobrir o mundo a sua volta. Num mergulho em seu inconsciente profundo vai retirando lembranças que dormitavam esquecidas nos refolhos de sua alma. Ver o mundo através dos olhos daquele menino, quando descobriu-se em um pedaço de chão a beira de uma estrada de ferro, é narrado sob forte emoção pelo autor. A solidão daquele lugar perdido no meio do nada, que nem mesmo nome tinha, coloca aquele menino face a face à uma realidade que não compreendia, mas a sentia como princípio de vida. A história vivida pelo autor, e seu irmãozinho, agora não mais meninos, com cada qual seguindo seu destino, com cada qual viajando por trilhas diferentes, com cada qual escolhendo a estrada de seus sonhos, é narrada sob forte emoção e realismo.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento30 de jun. de 2019
Memórias Ao Vento

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    Memórias Ao Vento - Lindberg Garcia

    Dedicatória

    Dedico à minha amada esposa Maria José, e aos queridos filhos Rodolfo e Leandro, que me incentivaram a escrever sobre minhas experiências de vida. O carinho e o apoio que me dispensaram me foi imprescindível para levar a termo o livro Memórias ao Vento.

    O Autor

    Agradecimentos

    Meus agradecimentos ao artista Fernando Pereira, que tão bem soube captar a imagem idealizada para ilustrar a capa de O Anjo Down.

    O Autor

    Poema Ao Vento

    Sopra vento, sopra vento,

    Sopra alto o vento lá fora;

    Mas também o meu pensamento

    Tem um vento que o devora.

    Há uma íntima intenção

    Que tumultua em meu ser

    E faz do meu coração

    O que um vento quer varrer;

    Não sei se há ramos deitados

    Abaixo no temporal,

    Se pés do chão levantados

    Num sopro onde tudo é igual.

    Dos ramos que ali caíram

    Sei que só há mágoas e dores

    Destinadas a não ser

    Mais que um desfolhar de flores.

    (Fernando Pessoa)

    Apresentação

    Há um dito popular que diz; um homem deve realizar três tarefas ao longo de sua vida, plantar uma árvore, ter um filho, e escrever um livro". As duas anteriores já me havia desincumbido, faltava-me a terceira. Mas, um obstáculo se interpunha à realização desta última. Poderia alguém que jamais escrevera nada além de relatórios técnicos, comuns aos da sua profissão, realizar trabalho de tal magnitude? Conseguiria a escrita mostrar as imagens da mente, escondidas na profundidade íntima do ser? Como alocar palavras em um mosaico de recordações, se o pensamento corre mais rápido que a escrita? E o caleidoscópio das ideias em profusão multicoloridas, multiformes, variadas em sua beleza, cada qual trazendo uma emoção diferente? Qual delas seria dada a preferência de mostrar as emoções que desfilam no palco das recordações? E aquela pequenina lembrança, um quase nada de nada, escondida no ninho de nossa memória? Também a esta, deve-se contar o seu drama, a sua história? Mas, por onde iniciar? Como construir o tema central da narrativa? Qual seria a sua abordagem? Como definir um estilo capaz de transmitir à letra fria do texto à emoção do autor? Estas e tantas outras indagações inquietavam-me, pois o livro é o espelho da alma de quem o escreve. Um espelho que vai refletindo em cada página, sentimentos, emoções, sonhos, em um bailado louco de quimeras e fantasias, e vez outra, a própria realidade da vida. Mil interrogações, e outras tantas se interpuseram a este marinheiro de primeira viagem. Como singrar o mar revolto das ideias em embarcação tão frágil, cujo navegante nunca segurou o timão na rota da escrita literária. Como conjurar a inexperiência da primeira vez. Como vencer o medo de caminhar no fio da navalha por entre as figuras de sintaxes, da gramática, dos verbos e adjetivos, na escrevedura de reminiscências que dormitam no subconsciente. É assustador quando se vê face a face com tantas incógnitas, e de como levá-las a termo em um texto capaz de chamar a atenção, e o interesse de quem o ler.

    Parafraseando o grande compositor Tom Jobim, digo que os escrevinhadores também têm emoções. Este é pois o motivo deste neófito escrevinhador em completar seu terceiro objetivo de vida, escrever um livro, a que dou o título de Memórias ao Vento. Faço-o, não com a pretensão de grandes voos na arte da literatura, mas tão somente o de escrever uma crônica de vida. Vida que muita vez foi visitada pela dor, que conheceu o desengano, que foi apanhada pelo sofrimento, mas, que também conheceu a felicidade, e sentiu a alegria de muitos sonhos realizados.

    Como então desenovelar o fio do destino, sem que o mesmo rompa a sequência lógica dos acontecimentos? Este foi o principal dilema, e de dar um encadeamento lógico à narrativa, dando movimento a mão que traçam as letras. Qual seria então o ponto de partida? Por onde iniciar o périplo da narrativa? Como buscar no fundo do subconsciente as visões de um passado que sempre procura voltar ao presente? E as recordações deságuam qual uma fonte, em que o autor dessedenta das memórias esquecidas. E então, esta aventura começa a ser descrita por um menino de pouco mais dos três anos, idade em que começa a lembrar-se de sua infância em um lugar sem nome, perdido no meio do nada, em um ermo de fim de mundo, onde os dias eram contados pela luz do sol, e a escuridão da noite. Um menino, que em sua inocência viu os acontecimentos passarem pela vida, como se olhasse indefinidamente o tempo sem tempo de uma infância pobre, simples, mas rica de recordações, felizes, alegres, pois ainda não conhecia as desilusões, e nem as lágrimas.

    Assim, exponho minhas lembranças, escrevendo com as tintas da saudade a minha história de vida. Esta não é contudo uma narrativa autobiográfica, pois conto também histórias de outros personagens dessa diegese. Nela acrescento dramas tristes, verdadeiras tragédias de pessoas a quem conheci, histórias que me emocionaram.

    As Folhas da Saudade

    Não tente deter o vento,

    ele precisa correr por toda parte,

    ele tem pressa de chegar, sabe-se lá aonde.

          (Fernando Pessoa)

    Escorrem-se os anos na ampulheta. Tempo que passa veloz, tempo que corre como o vento, vento que em sua insanidade louca vai arrancando impiedosamente as folhas da árvore da vida. Vento insensato, não sabe você que em cada uma destas folhas o destino escreveu uma história? Por que as arrebata impiedosamente? Por que as atira ao chão e as assopra para longe da árvore que as viu nascer? Não vê que seu furor é inútil? Por mais que as aniquile nesse seu torvelinho desalmado, sempre haverão de renascer nas histórias que o destino nelas escreveu. E quem é aquele jardineiro, que sem se importar com a fúria do seu turbilhão as vai recolhendo, e cuidadosamente as guardas todas na imensa arca da memória? Vento doido, não sabe você que em cada uma destas folhas está escrito um pedacinho da vida daquele apanhador das cousas que já se foram? Vento desassisado, por que dificultar o trabalho do jardineiro que as recolhe com todo o carinho e cuidado? Vento que sopra onde quer, que caminha incerto, ziguezagueando entre o passado e o presente, por que continua em seu uivo medonho a bafejar furiosamente as folhas da saudade? Pouco lhe importa o jardineiro laborioso que as recolhe? É lhe indiferente a faina daquele coletor de reminiscências, que teima em guardar as muitas folhas da árvore da vida?

    E o vento, vê com espanto o jardineiro retirar vagarosamente, uma a uma as folhas secas da arca da memória, e ao suave toque de suas mãos trêmulas de emoção, as tornam exuberantes, viçosas, e passam a exalar o perfume dos verdes anos do passado. Então o vento selvagem, se apieda ao ver a faina incansável daquele guardador de folhas, se amaina, se aquieta, e curioso pergunta.

    – Oh jardineiro, por que guardas tantas folhas? Por que lutas contra o influxo do meu hálito? Eu que as vi nascer e morrer, que as espalho pelo chão, que as faço revoar para longe, digo-lhe que são folhas secas, mortas, sem serventia, nada valem a não ser que algum pássaro as use para fazer o seu ninho.

    Responde o jardineiro enternecido ao segurar uma das folhas maltratadas pelo vento, e fala-lhe com brandura.

    – Ah meu amigo, são as folhas que se desprenderam da árvore da vida. Cada uma delas é uma página escrita pela mão do destino. Veja esta, conta quando pela primeira vez vi o rosto de minha mãe querida. Esta outra, narra quando meu pai pegou-me pela mão e ensinou-me a andar. A que acabei de guardar, fala-me de quando em desabalada carreira aventurava-me pelos caminhos da vida. Mais esta? Ah, esta, me traz as doces lembrança dos anos da juventude, quando ainda não conhecia a tristeza, e a dor era apenas uma palavra sem sentido. São folhas da minha vida que a mão do destino escreveu. Tenho a guardá-las no recôndito de minh’alma, na arca de minha memória. Preciso delas como os meus pulmões precisam do ar que respiro.

    Neste instante o jardineiro interrompe o diálogo e volta a recolher mais folhas, sem se importar com o vento que insiste em espalhá-las pelo chão.

    – Jardineiro, vejo que a sua arca está repleta de folhas, ou como você diz, as folhas da árvore da vida, escritas pela mão do destino. Se assim é, como diz ser, gostaria também de conhecê-las. Fala-me delas, também quero ouvir as histórias que elas guardam.

    – Segue-me então vento que uiva, que ruge e assusta. Serás o meu companheiro de jornada, e juntos iremos pelas mesmas estradas que um dia percorri. E aí, entenderá porque recolho folhas, as mesmas folhas que um dia verdejaram minha existência. Transforme o seu furor insano em branda aragem que refresca o suor deste coletor de reminiscências. Seja meu amigo, e meu companheiro de jornada. Descansa um pouco, pare de assoprar para longe as minhas recordações. Caminhe comigo a mesma trilha dos sonhos que antes povoaram a minha juventude. Sinta o calor do mesmo raiar do sol da aurora de minha vida, esteja ao meu lado quando visitar a casa paterna, e veja o quanto fui amado. Não esqueça também de observar o quanto amei àqueles que me deram a vida. Mas prepare-se para quando penetrarmos a longa noite das desilusões, e sinta comigo o açoite da dor que me vergastaram a alma. É verdade que fui o dono da felicidade e a alegria me sorria fácil e fagueira, mas verá que rios de lágrimas verteram em meus olhos. Era o desengano e a tristeza, que sem cerimônia me batia à porta, e qual hospede indesejável, invadia a casa de meu coração. Por favor companheiro vento, deixe-me cavalgá-lo até os confins de minhas recordações, e entenderá por que ajunto as tantas folhas da árvore da vida, em que o destino caprichosamente escreveu minha história. Vamos cavalo do vento, não tenha medo, o seu trotar ligeiro, pelas pradarias do meu passado, me ajudará a recolher as muitas folhas da arca de minha memória.

    O Monstro de Ferro

    Que volúpia cavalgar o vento. Fecho os olhos, tento buscar os caminhos percorridos na infância. Surpreendo-me chegado aos três anos de idade, pouco mais que isto. Deixo-me levar pelas emoções de um passado distante, longe, muito longe, onde a memória respinga lembranças de uma infância que o tempo cioso não conseguiu apagar. Sentir na face os pingos de orvalhos caídos das verdes folhas da árvore da vida, misturando-se às lágrimas das emoções de quando a felicidade corria despreocupada, risonha, numa alegria que parecia não ter fim. E as imagens começam vir ao meu encontro, com tal intensidade de cores e luzes que chegam a me ofuscar. Devagarinho, vão esboçando nas telas da mente as pinturas de um passado em que vou divisando os verdes caminhos dantes percorridos. Como uma névoa que se abre, descortinando pouco a pouco as lembranças esquecidas, vou catando recordações como se recolhesse estrelas de um céu de saudades.

    Vejo uma casinha branca, pequenina, incrustada ao sopé de uma pequena elevação onde crescia o capim jaraguá, e ao longe, subindo em direção a um outeiro, floresciam algumas lobeiras, juás e pequenos arbustos de flores do campo que completavam aquela paisagem rústica de fim de mundo. Ladeada por um terreiro de chão batido, aquela casinha, que na realidade eram duas, divididas por uma parede comum, chamada parede-meia, completava aquele quadro ermo, desolado, perdido em sua própria solidão. Todavia, algo parecia destoar daquela cena de abandono em que o tempo corria sem pressa, perdido em sua vagareza, tempo que se contava apenas pela claridade do dia e a escuridão da noite. Lembro-me de algo que me estasiava e me deixava empolgado.

    Bem em frente daquela casinha branca, onde o terreiro de chão batido terminava em uma cinta de ferro, que se alongava em duas linhas incrivelmente retas, e ao longe, até onde a vista alcançava, pareciam fundir-se em um só ponto. Com surpresa via surgir, inexplicavelmente, de onde aquelas linhas pareciam juntar-se, um pontinho, a princípio bem minúsculo, um quase nada de nada, que não tinha nem mesmo forma. Mas a medida que fixava o olhar, naquela distância perdida, percebia-se que aquela coisa ia crescendo, crescendo, se mostrando cada vez mais em uma imponência que metia medo. E anunciando-se como verdadeiro bicho de outro mundo, soltava um silvo agudo, estridente, ensurdecedor, misturado-se a um rangido irritante do atrito de seus pés redondos pisando por sobre os caminhos que vinham do infinito, e para o infinito iam.

    Era o nosso primeiro contato, meu, e do irmãozinho de pouco mais de dois anos de idade, com aquele monstro de ferro que grunhia fantasmagoricamente numa correria desenfreada, que nos assustava e ao mesmo tempo nos empolgava, nos metia medo, e nos aguçava a curiosidade vendo-o correr, e correndo desaparecer no horizonte. De onde vinha, e para onde ia aquele monstro de ferro que soltava fumaça pelas ventas? Que pressa sinistra e assustadora mostrava no bimbalhar de seus sinos e apitos frenéticos? Talvez quisesse com isso anunciar a sua presença naquele rincão perdido, solitário, sem nome, imaginávamos nós. A noite, quando por vezes ouvíamos a sua anunciação, escandalosamente gritante, nos era permitido assistir, do peitoral da janela de nossa casinha, a passagem daquele monstro de ferro. Então víamos encantados aproximar-se uma luz branca, alva e forte, que vinha de seu olho ciclópico, clareando aquela imensidão perdida no meio do nada. Para nós, naquela tenra idade, era um espetáculo entre o fantástico e o aterrorizante, mas cheio de encantos e mistérios. Aquela espectral criatura nos fascinava, nos encantava e tornou-se nosso divertimento cotidiano. Primeiro o medo, o receio, o temor do perigo, como nos fora alertado por nossos pais. Depois a atração, a curiosidade, e por fim, a alegria da única diversão que restava àqueles dois meninos esquecidos naquele fim de mundo. Um sentimento de medo e terror, a um só tempo, mas que nos atraia para o monstro de ferro. Com ansiedade aguardávamos a passagem daquela descomunal criatura. Foi-nos explicado por nossa Mãe, que aquele bicho de ferro, tratava-se na realidade, de uma composição férrea, um trem de ferro que transportava tanto pessoas como cargas, àquela época chamada Maria Fumaça. Ao menor sinal da sua aproximação, o que percebíamos pelos apitos e o bimbalhar de sinos que repicavam ao longe, corríamos para a frente da casa e nos colocávamos em nosso posto de observação. No terreiro de chão batido, daquela casinha branca de parede-meia, sobre uma grande pedra que ali fora colocada, não se sabia por que, ou por quem, nem tão próxima dos trilhos, nem tão distante daquele caminho de ferro, era o nosso observatório. Nele, nos postávamos de forma a melhor observar aquele colosso que passava espalhafatosamente diante de nós, fazendo um barulho tal que parecia vir das profundezas da terra, pois ela mesmo tremia de medo. Primeiro, vinha serpenteando em uma sinuosidade graciosa por onde surgia, para depois ganhar uma reta que parecia infinita, ia se aproximando medonha, rugindo, fumegante na sua raiva bruta e tosca, sacolejando cadenciadamente seu corpanzil, passando indiferente bem em frente daqueles dois meninos curiosos e assustados. Depois, ia sumindo, sumindo, até desaparecer ao longe, muito longe naquele horizonte distante.

    E assim se passavam os dias, modorrentos de um quê sem ter o que fazer. Era nossa diversão predileta esperar pela passagem do monstro de ferro, a Maria Fumaça, como assim já o chamávamos. Éramos pontuais em nossa diversão de todos os dias. Nos atraia ver aquele monstro de ferro, com seus vagões imensos, arrastando uma fileira de caixas descomunais, construídas talvez por algum gigante enorme, sobrenatural, criado por nossas mentes ingênuas. E os trens de passageiros, esse nos encantava ainda mais, com algumas daquelas pessoas correspondendo aos nossos acenos, em que balançávamos os braços como se quiséssemos mostrar que naquele pedaço de chão havia vida, vida inocente, vida que simplesmente se alegrava em ver vida. Era o muito que restava àqueles meninos na beira do caminho do trem de ferro.

    As vezes, crianças como nós nos acenavam num adeus esquecido, perdido no tempo, num adeus de nunca mais. Houve uma vez em que uma menina, com negros cabelos de tranças que lhe escorriam pelos ombros, atirou um punhado de balas em nossa direção. Ah menina de trança, você foi-se embora levada pela velocidade daquele trem que corria mais que o destino. Os olhos daquele menino fixou sua imagem no átimo de um raio, que a mente guardou e o tempo não apagou. Que interessante, fico hoje a imaginar, será que aquela menina se lembraria daquele gesto despretensioso e amável? Que alegrias incontidas trouxe àqueles meninos perdidos naquele oco de fim de mundo. Assim, por muitas vezes, esperávamos, eu e meu irmãozinho, pela passagem do trem, que talvez trouxesse a menina de cabelos de trança, que para nossa decepção e tristeza, nunca mais por ali trouxe o ar da sua graça.

    E os dias passavam naquela rotina sem fim, aguardando sempre a passagem da Maria Fumaça, que já não nos despertava tanto interesse, a não ser pelo trem de passageiros que acenávamos insistentemente na esperança de sermos correspondidos por aquelas pessoas postadas nas janelas dos vagões. Talvez que absortas em seus próprios pensamentos, indiferentes, não enxergavam, nem notavam aquelas crianças que ansiavam pela retribuição de seus acenos. Éramos insistentes em nossas esperanças, e vez ou outra, algum passageiro daquele trem nos levantava a mão, num cumprimento mais de enfado do que de gentileza, mas nos alegrava assim mesmo. Houve um dia em que um homem de roupa preta, tendo na cabeça um boné também preto, dependurado na parte traseira de um vagão de carga, nos acenou e para nossa surpresa nos atirou um punhado de balas. Foi a primeira vez que com espanto e curiosidade o vimos. Quem seria aquele homem de roupa preta e de boné preto equilibrando-se no vagão do trem? Por que viajava em um trem de carga, ao invés do de passageiros? Ficamos intrigados com aquele gesto imprevisível, pois tantas vezes esperávamos inutilmente que fossem as pessoas dos vagões de passageiros que nos dispensassem algum cumprimento.

    Um novo personagem veio a ser incorporado em nosso aguardo do trem de cargas. O homem vestido de roupa preta, com boné também preto, que passava dependurado no vagão da Maria Fumaça, nunca deixou de cumprimentar-nos. Não entendíamos o porque disso, mas não raro que vez ou outra na semana lá vinha ele equilibrando-se entre um vagão e outro nos abanando a mão. A passagem daquele desconhecido do trem de carga passou a ser nossa referência de contato humano naquela terra distante de tudo e de todos. Em nosso observatório, na pedra grande do terreiro, aguardávamos ansiosamente a passagem daquele homem que nos acenava e nos atirava um punhado de balas. Era a festa de duas crianças, que pela primeira vez naquele fim de mundo, passaram a conhecer a solidariedade humana, num simples gesto vindo de um desconhecido. Era a alegria inocente de sempre, esperar a nova passagem do homem vestido de roupa preta e de boné preto, dependurado entre os vagões que em suas passagens nunca deixou de nos cumprimentar e nos atirar as tão esperadas balas, balas mais doce do que açúcar, pois tinham o doce do afeto. Quem seria aquele homem de roupa preta e boné preto, que cumprimentava aqueles meninos com acenos carinhosos e nunca esquecia de presenteá-los com as esperadas guloseimas?

    A Casinha Branca

    Numa das casas de parede-meia éramos quatro: Papai, Mamãe, eu, e meu irmãozinho. Na outra, morava uma senhora já idosa, a quem Mamãe chamava de Dona Genoveva, e seu filho cujo nome não me recordo, que como Papai trabalhava na Companhia Mogiana de Estradas de Ferro. Aquelas casas geminadas se destinavam a abrigar os trabalhadores da turma da conserva da ferrovia.

    Somente encontrávamos Papai ao cair da tarde, já que ele saía antes de o sol nascer. Acordávamos quando a claridade do dia invadia impiedosamente as frestas da janela de nosso pequeno quarto. Levantávamos e ainda sonolentos íamos para a cozinha, e encontrávamos Mamãe nos preparando a primeira refeição matinal do dia, café preto, muito cheiroso, e bolachas de maisena. Adorávamos aquele desejum, comíamos e saíamos para o único divertimento que tínhamos naquela terra de fim de mundo, esperar a passagem dos trens da Mogiana. Quase noite Papai regressava do trabalho, trabalho árduo e extenuante como mais tarde pude avaliar. Nunca o vi queixar-se, ou lamentar-se por aquele serviço braçal grosseiro, pesado, estafante, no eito da ferrovia, chamado de soca. Era o que restara para aquele moço da cidade, agora com família para criar. Suas mãos calejadas, a pele queimada pelo sol inclemente, que não respeitava nem mesmo o grande chapéu de palha que lhe cobria a cabeça. Era o trabalho de nosso Pai, enfrentado por ele com dignidade e disposição. Por vezes o ouvia dizer à Mamãe, entre conformado e orgulhoso.

    – O trabalho, qualquer seja ele, é dignificante, pois é com o suor do rosto que ganho o sustento da família. Dou graças a Deus por me conceder saúde e disposição para o trabalho.

    As mesmas dificuldades devia dar-se com Mamãe, moça com alguma educação formal, que ombreando com papai as responsabilidades do lar, o seguia naquele pedaço perdido de fim de mundo. Nunca os ouvimos queixarem-se daquela vida simples, de quase pobreza extrema. Mamãe, era toda carinho para com os filhos e sempre estava a cobrir-nos de beijos e abraços.

    Assim vivíamos naquela casinha branca de parede meia, que se resumia a uma pequena sala, cozinha com fogão a lenha construído com tijolos aparentes, que continha sob o mesmo uma cavidade em forma de arco, onde eram armazenadas as achas de madeira lenhosa cuidadosamente empilhadas. Dois quartos pequenos, e fora da casa, uma diminuta casinha com fossa sanitária, era tudo o que tínhamos para o conforto da família. Estas eram as dependências da casa que nos fora cedida pela companhia proprietária da estrada de ferro. O piso formado por tijolos justapostos, era varrido constantemente por mamãe, dando-lhe um aspecto de limpeza e asseio impecável. Ali, naquela casinha pobre, singela, plantada à beira da estrada de ferro, naquele ermo perdido de meu Deus, era o nosso lar. Os móveis simples, se resumiam a uma mesa tosca na sala, onde tomávamos as refeições, quatro cadeiras com assento de palha, um tanto já esgarçadas, uma cama em um dos quartos e um armário usado para guardar as poucas roupas da família. Num outro quarto, duas camas menores que mamãe chamava de catre, algumas tábuas fixadas na parede da cozinha que serviam como despensa dos poucos mantimentos e víveres da casa. Não havia luz elétrica, e à noite dispúnhamos de um lampião a carbureto fornecido pela administração da companhia. Lembro-me de sua azulada, bastante forte, uma modernidade da época que veio a substituir as mal cheirosas lamparinas a querosene. Assim vivíamos, era um tempo difícil em que as oportunidades de trabalho eram escassas, conforme por vezes ouvia de Papai em conversas com Mamãe.

    – Amélia, são tempos de vacas magras. Contudo, até que se arranje coisa melhor, pelo menos aqui estamos abrigados. Bem ou mal temos um teto seguro e alguma condição de sobrevivência. Não me sinto confortável em trazer você e os meninos para essa vida de labutas e sacrifícios. Entretanto, tive uma notícia que me deu alguma esperança. Nosso feitor de turma, ficou de verificar com o Chefe da Estação Palestina, perto da cidade de Uberaba, a possibilidade de minha transferência para aquela estação, para

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