O Hospital dos Afetos
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Sobre este e-book
A ciência da repercussão do sofrimento físico no equilíbrio emocional de todos os implicados nessa dinâmica é indispensável ao processo de cura. As autoras souberam construir e instalar esse campo de afetos (feliz nomeação que dá título à obra) dentro do manejo técnico-científico que já se operava naquela instituição.
A façanha maior foi aliciar os descrentes, entre as famílias dos pacientes e o corpo de funcionários, e fazê-los participar da militância político-assistencial que dependia da adesão de todos.
Orquestrar a relação médico-paciente integrada à inserção da família no processo de restabelecimento, essa liga na qual o amor, traduzido em dedicação e sensibilidade, opera milagres, foi o ingrediente fundamental deste trabalho a quatro mãos. Trabalho esse que veio costurar todos os elementos já presentes num esforço no qual o humanismo sobressai na base de todo o resto.
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O Hospital dos Afetos - Mariza Campos da Paz
COMITÊ CIENTÍFICO DA PSICOLOGIA DA SAÚDE E HOSPITALAR
AGRADECIMENTOS
Pelo incentivo que nos deram e a total confiança no nosso trabalho, agradecemos de coração ao Dr. Luiz Torres Barbosa, idealizador de um atendimento humanizado para as crianças e aos doutores Jairo Rodrigues do Valle, Julio Dickstein e Guilherme Vidal, que deram continuidade a essa concepção pioneira.
Aos nossos entrevistados, doutores Fernando Werneck, Luiz Antonio Franco de Oliveira, Paulo Roberto Lopes, Roberto Rezende e Telmo Carvalho, todos eles ex-residentes do Serviço de Pediatria do HSE, que gentilmente colaboraram com seus depoimentos e enriqueceram o texto, nosso caloroso obrigado.
Aos pacientes por nós atendidos, pelo muito que nos ensinaram, nossa profunda gratidão.
Agradecemos às colegas Angela Peccini Pereira, Juliana Martins de Matos Gonnelli, Liliane Carneiro, Maria Auxiliadora Etchevers, Ondina Lucia Ceppas Resende, Regina Ferreira Solano e Sueli Tavares, que partilharam conosco a realização deste livro ao relatar suas diversas experiências profissionais.
Aos profissionais de saúde com que lidamos todos esses anos e que, aos poucos, renderam-se à abordagem psicológica por nós exercida e abandonaram a estranheza que lhes causava o nosso trabalho. Cada auxiliar de enfermagem, recreadora, enfermeira, médico residente ou do staff, servente, faxineira, fisioterapeuta conquistado tornava-se um poderoso aliado e facilitava a nossa tarefa. Muito obrigada!
E, por fim, um carinho especial à nossa querida Sandra Coutinho, que com seu entusiasmo nos incentivou a começar o trabalho e fez sugestões preciosas, inclusive o título O hospital dos afetos.
Prefácio
OS AFETOS NO HOSPITAL
Uma temporalidade se impõe quando se trata dos acontecimentos psíquicos. Chama-se a posteriori, tradução para o termo nachträglich introduzido por Freud ao abordar os processos inconscientes e sua reelaboração permanente em cada sujeito. O livro que Mariza Campos da Paz e Sara Kislanov hoje nos apresentam participa dessa temporalidade. Tentarei dizer algo sobre isso.
Escrito como proposta de transmitir uma experiência pioneira que se iniciou há 40 anos, essa coletânea de textos não se limita ao relato do acontecido naquela década de 1970 – ainda em pleno processo de ditaduras militares que afetaram profundamente as instituições brasileiras e as de outros países do Cone Sul – mas tem também o incalculável valor de discutir nos dias de hoje a relação possível e necessária do saber médico com as outras práticas que ouvem a criança e seus pais no momento em que passam pela situação sempre traumática da internação e das consultas hospitalares.
Mariza e Sara chamam, com propriedade, essa experiência de hospital dos afetos
, afetos que aqui tanto se referem aos sentimentos e aos cuidados que estão envolvidos no atendimento aos pacientes ainda muito pequenos como ao fato de eles estarem afetados por algo vindo do real que mostra a precariedade e o desamparo do ser falante. À emergência dos afetos, as duas psicólogas, desde o momento em que se inserem no Serviço de Pediatria do Hospital dos Servidores do Rio de Janeiro, oferecem um lugar de acolhimento possibilitando que os sujeitos falem de seu sofrimento e os escutem em seu mal-estar.
Posso situar aí minha participação nessa experiência como supervisor durante dois anos de um trabalho que buscava articular a intervenção do psicólogo no hospital em duas dimensões, a institucional e a clínica, com os médicos e demais agentes de saúde e a criança e sua família. Esse foi um dos primeiros trabalhos que realizei no Rio, recém-chegado da Argentina, em 1977. O que trazia como bagagem teórica, norteando o trabalho de supervisão, era um percurso de leitura na obra de Freud, orientado pelo ensinamento de Oscar Masotta, e uma prática em psicologia institucional, sistematizada por Ricardo Malfé, com quem tive a oportunidade de trabalhar na cadeira desse nome ensinada na Universidade de Buenos Aires. De Masotta menciono aqui uma leitura que produz os cortes necessários e as escansões imprescindíveis no texto freudiano, fazendo aparecer os articuladores lógicos da sua escrita. De Malfé, destaco a análise do laço social singular que se estabelece entre os participantes de instituições dedicadas à saúde ou à educação, em que se verifica o grau extremo de dependência à estrutura da linguagem que conforma essas práticas.
A intervenção no campo institucional se sustenta na palavra de cada um dos participantes implicado como sujeito na formação da coletividade de trabalho, responsável pelo seu funcionamento. Reconhecer a série de restrições que a instituição impõe a cada um está longe de produzir um conformismo de adaptação a ela. Ao contrário, abre ao questionamento dos modos de automatismo aos que cada um está submetido, quase sempre numa repetição que desconhece.
O suporte teórico construído por Malfé para possibilitar uma intervenção adequada no campo da instituição consiste na articulação de três escritos freudianos essenciais para abordar o coletivo de forma lógica: Totem e Tabu
– o gozo e a morte do Outro repetidos em todo ato humano; Psicologia das massas e análise do eu
– a identificação e a função do ideal no grupo; Mal-estar na cultura
– os paradoxos e os percalços de fazer parte do laço social, tensionado pelo jogo das pulsões que agem à revelia do sujeito, sem que ele nada saiba disso.
Avalio hoje que o nosso encontro foi marcado pelo entusiasmo, na medida em que nos deixamos afetar pelo inédito de uma experiência que estava sendo criada e pela urgência das demandas da realidade hospitalar, sem recuar diante elas. O eixo da supervisão – que nada tem de uma visão super, sendo muito mais uma superaudição pela acuidade da escuta – sustentou-se no reconhecimento do caráter imperativo da demanda, entendendo que ela só pode ser tratada na dimensão da palavra.
Mariza e Sara se referem, na introdução do livro, a uma passagem da supervisão em que, repetidas vezes, era assinalado o risco de responder a partir da posição da dita onipotência
ao que a demanda promove por meio dos ditos de cada um dos implicados na experiência. Como agir, então, ante a proliferação de demandas e de exigências que, dia a dia, repetem-se e renovam-se? Uma posição de não responder à demanda pareceria mais adequada para receber a urgência em jogo em cada situação. Um certo distanciamento da exigência da demanda poderia produzir uma resposta mais eficaz.
Pretender responder à demanda tem na sua base a manutenção da ilusão de satisfazê-la, desconhecendo que ela sempre é demanda de outra coisa e, precisamente ali, reside seu poder transformador. O psicólogo, instigado pelo discurso psicanalítico, causado pela psicanálise, estaria em melhores condições para tratar a demanda no que ela tem de mais radical ao veicular a falta com a qual todo ser falante está confrontado. Qualquer tentativa de preencher essa falta condena à impotência e exacerba a angústia, já tão presente no atendimento da criança e de seus pais, imersos na dor, no sofrimento e no imprevisível decorrentes da irrupção do real.
Cabe lembrar que Freud ligou a angústia – o afeto da experiência humana por excelência – aos efeitos do inconsciente no corpo. Lacan, na trilha freudiana, enunciou que a angústia é o único afeto que não engana. Não há, então, tratamento da angústia que não passe por suportar esse efeito, ouvindo alguma palavra que surja nesse instante.
A descrição minuciosa da chegada do psicólogo ao hospital, permite acompanhar o modo de Mariza e Sara produzir, no corpo médico, o lugar de uma demanda para uma profissão, a do psicólogo, ainda pouco conhecida nessa época no Rio e no Brasil e que, como elas o fazem saber, estava em vias de definir seu alcance operatório e os limites éticos de sua prática. O livro recolhe também o frescor desse momento da entrada no hospital, seja tanto pela surpresa quanto pelo estranhamento que essa presença causava. Em primeiro lugar, nelas próprias que se aventuravam a transitar por um espaço inquestionável do médico e, em seguida, nos próprios médicos e auxiliares que não entendiam o que o psicólogo poderia fazer num espaço que discursivamente lhes pertencia, não sem expressar uma inquietação por um saber que a medicina desconhece e ao qual timidamente se lhe supõe uma certa efetividade.
Foi preciso, então, atravessar uma série de resistências que surgiam a cada passo. Mas, como elas o deixam bem claro, nos numerosos agradecimentos que escrevem, contaram para essa árdua tarefa com o acolhimento, o apoio e o estímulo dos médicos que são permanentemente interpelados pelo enigma dos corpos que sofrem. O trabalho também se estende aos residentes que fazem sua formação de pediatria no hospital, no intuito de transmitir que a tarefa do psicólogo, orientado pela psicanálise, não é um acréscimo ao atendimento médico; ela constitui uma intervenção necessária ao dar lugar ao afeto que está em jogo no encontro da criança e de seus próximos com o médico e com todos aqueles que deles se ocupam no momento crucial da doença.
Acredito que este livro chega ao leitor em boa hora. Nos 40 anos em que essa experiência está em curso, houve avanços consideráveis da ciência e da medicina no que se refere ao tratamento das doenças. Contudo o desenvolvimento da técnica e o seguimento de protocolos podem recriar a ilusão de um saber médico autossuficiente. Este livro aponta para o lugar e a função da falta em todo saber, propondo um trabalho em que os diferentes discursos implicados no tratamento e no cuidado da criança possam ouvir o que os afeta: os afetos do hospital.
Rio, 1 de junho de 2018
Eduardo Vidal
Psicanalista, membro da Escola Letra Freudiana
APRESENTAÇÃO
Este livro é o relato de uma experiência pioneira de inserção de psicólogos em ambiente hospitalar. As duas primeiras psicólogas a trabalhar num local privilegiado como o Hospital Federal dos Servidores do Estado, no Rio de Janeiro, Mariza Campos da Paz e Sara Kislanov criaram, no Serviço de Pediatria, atendimentos individuais e grupais para tentar minorar o sofrimento das crianças, de seus familiares e – por que não? – dos médicos e demais profissionais envolvidos no tratamento.
Os grupos mais importantes ali criados foram: o grupo dos pais de bebês internados na UTI neonatal – Grupo de Pais do Cetip, o grupo de mães das crianças atendidas no Ambulatório – Grupo de mães do Ambulatório e o Grupo dos Médicos Residentes, em que os textos sobre as características do desenvolvimento infantil e as angústias do dia a dia eram trabalhadas nas reuniões com os pediatras. Esses textos e algumas das discussões surgidas estão aqui relatados.
Cinco ex-residentes da pediatria do HFSE enriqueceram com seus depoimentos a história deste trabalho. Os doutores Julio Dickstein e Guilherme Vidal, responsáveis respectivamente pela UTI neonatal e pelo Setor de Neuropediatria, acrescentaram dados importantes.
Com a criação do Serviço de Psicologia, em 1983, vários Serviços passaram a ter atendimento psicológico e a atuação se ampliou bastante. Oito trabalhos são aqui relatados pelas psicólogas das diversas enfermarias. Ao trabalharem na Clínica Médica, na Cirurgia Pediátrica, no Ambulatório de Urologia, na Oncologia Pediátrica, na Pediatria e na Neurocirurgia, elas tratam aqui de temas como as consequências do adoecimento crônico, a ejaculação precoce, a questão sexo biológico/sexo psicológico, o tratamento ambulatorial, a amenização do sofrimento das crianças com câncer, as raízes psicossomáticas da psoríase e a representação da doença por meio do desenho infantil.
Com a palavra o Dr. Eduardo Vidal, psicanalista, membro da Letra Freudiana e nosso supervisor na época, um apoio seguro para este trabalho:
Acredito que este livro chega ao leitor em boa hora. Nos últimos quarenta anos em que essa experiência se iniciou – e prossegue até os dias de hoje – houve avanços consideráveis da ciência e da medicina no que se refere ao tratamento das doenças. Contudo, o desenvolvimento da técnica e o seguimento de protocolos podem recriar a ilusão de um saber médico autossuficiente. Este livro aponta para o lugar e a função da falta em todo saber, propondo um trabalho em que os diferentes discursos implicados no tratamento e no cuidado da criança possam ouvir o que os afeta: os afetos do hospital.
LISTA DE ABREVIATURAS
Sumário
INTRODUÇÃO 17
CAPÍTULO I
POR QUE ESCREVER ESTE LIVRO 19
CAPÍTULO II
A PSICOLOGIA NASCE NO HOSPITAL DOS SERVIDORES 25
CAPÍTULO III
TRÊS CASOS CLÍNICOS 39
Pernas pra que te quero 39
Mariza Campos da Paz
À flor da pele 46
Sara Kislanov
Desenhando o corpo doente 50
Sara Kislanov
CAPÍTULO IV
O GRUPO DE PAIS DO CETIP 57
CAPÍTULO V
O GRUPO DE MÃES DO AMBULATÓRIO 69
CAPÍTULO VI
GRUPO COM OS MÉDICOS RESIDENTES 79
CAPÍTULO VII
TRABALHOS APRESENTADOS NAS SESSÕES CLÍNICAS DO SERVIÇO DE PEDIATRIA ATÉ 1980 129
CAPÍTULO VIII
A PSICOLOGIA CONTINUA VIVA NO HSE 131
Quando o sexo é incerto 132
Liliane Carneiro
Cartografia da enfermaria e do ambulatório da clínica médica: técnicas, encontros e afetos 143
Angela Peccini Pereira
Maria Auxiliadora Etchevers
Sueli Tavares
O grupo terapêutico no tratamento da ejaculação precoce 152
Regina Ferreira Solano
Os impactos do adoecimento crônico 163
Ondina Lúcia Ceppas Resende
Um novo ciclo, um novo começo… 173
Juliana Martins de Matos Gonnelli
Anexo
ENTREVISTA COM DR. FERNANDO WERNECK 185
Sobre os autores 195
INTRODUÇÃO
Há quarenta anos, quando iniciamos esse trabalho, não havia ainda registro da existência de psicólogos em hospitais na cidade do Rio de Janeiro.
Além da ausência de referências teóricas e práticas, tudo estava por fazer. Na década de 1970, os Conselhos Federal e Estadual de Psicologia apenas começavam a existir.
Procuramos dar uma ideia do que foi montar um atendimento em Psicologia a partir do trabalho na Pediatria. Sete anos depois, em 1983, foi criado o Serviço de Psicologia Médica, como mais um Serviço do Hospital dos Servidores do Estado, que distribuiu as psicólogas então contratadas pelas várias enfermarias.
Nossa opção para atender as mães das crianças de ambulatório e os pais dos bebês internados na UTI pediátrica foi o trabalho em grupo.
Também em grupo atendemos os residentes – ávidos de conhecimentos em Psicologia. Todos os textos com eles debatidos estão incluídos neste livro, com eventuais comentários.
O livro não estaria completo sem que reportássemos alguns casos clínicos que nos mobilizaram e que consideramos importantes. Oito relatos, que abrangem de sexo incerto a ejaculação precoce, câncer infantil, psoríase, adoecimento crônico e representação gráfica da doença são aqui reportados.
Colhemos depoimentos significativos de pediatras que trabalharam conosco e se tornaram grandes parceiros e incentivadores.
A coesão entre nós estabelecida, sempre com alegria e profissionalismo, foi o motor básico do trabalho aqui reportado.
CAPÍTULO I
POR QUE ESCREVER ESTE LIVRO
Eu igual a toda meninada/Quanta travessura que eu fazia
Jogo de botões lá na calçada/Eu era feliz e não sabia...
Ataulfo Alves
Essa quadrinha do cancioneiro popular descreve um pouco como nos sentimos ao decidir escrever/descrever nossa experiência no trabalho como psicólogas no Hospital Federal dos Servidores do Estado, a partir de agosto de 1976.
Claro que não fazíamos travessuras
, muito pelo contrário, adotamos uma postura muito séria e de união entre nós para levar adiante as tarefas. Mas só nos últimos anos, ao colaborar com nossos depoimentos para a tese de mestrado de Fernanda Martins Pereira¹, começamos a perceber melhor o pioneirismo do nosso trabalho. E de como éramos felizes naquilo que fazíamos.
Ser as primeiras psicólogas no Rio de Janeiro a trabalhar sistematicamente num hospital geral não é