Ama o precipício, Viagem à Mata Nacional do Buçaco
De Susana Neves
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Susana Neves
Susana Neves é escritora, jornalista de investigação na área cultural, investigadora de etnobotânica e fotógrafa de natureza, é autora dos livros Histórias Que Fugiram das Árvores, 2012, De Vento em Pipa — Quando a Vinha e o Homem Inventaram Lagoa (Best Wine Book of the Year, Gourmand Awards 2017) e Rafael Bordalo Pinheiro — De Árvore em Punho, 2020. Os seus contos encontram-se publicados em revistas e antologias literárias, entre as quais The Radiance of the Short Story: Fiction from around the Globe, 2018.
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Ama o precipício, Viagem à Mata Nacional do Buçaco - Susana Neves
Preâmbulo
Enquanto o Rei Planeta — Filipe III de Portugal, IV de Espanha — tinha à sua disposição um vastíssimo império, era frequentador compulsivo de qualquer tipo de alcova feminina e não se cansava de coleccionar obras de arte, um grupo de intrépidos e castos monges carmelitas descalços portugueses fundava, em 1628, um deserto ou eremitério, no extremo noroeste da serra do Buçaco. Local propício onde, finalmente, poderiam cumprir a aspiração sublime da renúncia ao mundo, que passava pelo nada ter e nada ser em nada.
Inflamados pela invisível chama mística, e pelas palavras poéticas e pelas virtudes radicais e contagiantes de Santa Teresa de Ávila e San Juan de la Cruz (reformadores da Ordem de Nossa Senhora do Monte Carmelo e, respectivamente, criadores dos ramos feminino e masculino dos carmelitas descalços), estes monges eram movidos por firmes propósitos, como o de criar em plena serra um local de recolhimento, oração e ascese que lhes permitisse viver em silêncio, longe dos homens, das glórias mundanas, de todos os apetites e tentações, mas em permanente diálogo com Deus, abrindo-se assim à graça divina.
Para alcançar estes objectivos, San Juan de la Cruz, discípulo de Santa Teresa, a quem ela chamou de «meu pequeno Séneca», recomendava nada desejar e nada querer, e preferir sempre o mais difícil, o mais desagradável, o menos apetitoso, o mais trabalhoso, desconsolador e desprezível — preceitos de grande exigência que se pode considerar como os exercícios fundamentais de um atleta ou de um comando espiritual disposto a tudo.
Apesar da dificuldade do processo de despojamento radical, a meta era alcançável, uma vez que, segundo Santa Teresa, grande é a força e «formosura da alma», que além disso é divina, por ser feita à semelhança de Deus. Por conseguinte, não só o recolhimento e a oração permitiam construir, por etapas, o castelo da alma ou Castelo Interior, como este era a morada de Deus em nós.
Como se depreende, este fogo de virtude e de beleza, bem como o incitamento à procura e superação das adversidades mais extremas, não podia levar os monges do Deserto dos Carmelitas Descalços da Província de São Filipe de Portugal — assim se designava o eremitério do Buçaco — à preguiça, apatia ou depressão. Solitários, silenciosos, enfrentando os calhaus, penedos, aspérrimas trilhas e declives de uma serra que atinge mais de 500 metros de altitude, com umas frágeis alpargatas enfiadas nos pés, estes homens, disciplinando-se com a constante prática ascética da oração e da acção, vão plantar milhares de árvores, umas nativas e outras exóticas, como o cipreste-do-méxico, que, por equívoco, ficará para sempre conhecido como cedro-do-buçaco.
Plantar árvores, para estes monges muito determinados, era uma outra forma de orar, e plantar cedros, que vistos ao longe se assemelham de facto aos cedros-do-líbano, um modo de recriar, em pleno Buçaco, o monte Carmelo ou monte de Santo Elias, situado na Palestina, onde a Ordem de Nossa Senhora do Monte Carmelo fora fundada no século XII.
Em pouco tempo, o deserto da serra do Buçaco (serra que primeiro pertencera aos monges beneditinos do Mosteiro da Vacariça e depois fora frequentada, e possivelmente arborizada, pelos frades eremitas da Confraria da Nossa Senhora da Graça) transformava-se num éden ainda mais repleto de árvores. Com uma área de 90 hectares (em 1887, passa a ter 105 hectares), seria fechado por um muro alto que o cercava a toda a volta, impedindo, desta forma, qualquer forasteiro de entrar e destruir ou ferir a mata, ou seja, destruir a presença do sagrado manifesto num bosque simultaneamente simbólico e real, conotativo e transfigurador, onde entre múltiplas espécies, sobretudo autóctones, também cresciam os misteriosos e multisseculares adernos, que até hoje se preservam.
Ao construírem um deserto, respeitando e potenciando as características naturais da serra alcantilada e pluviosa, os monges seguiam o «estilo precipício». E com a adopção desse estilo dotaram o eremitério da sua melhor arma de defesa, aquela que naturalmente dificultaria o acesso ao sagrado do bosque.
Por certo, as características deste verde feraz, aparentemente hostil e desumano, acentuado pelo «estilo precipício», não terão escapado ao general Wellington quando, no contexto da terceira invasão francesa, em 1810, para afrontar as forças napoleónicas (cerca de 65 mil homens), escolheu estabelecer o seu quartel-general dentro do convento, servindo-se de tudo, desde as árvores seculares à virtuosa abnegação dos monges e seus parcos recursos. Embora na historiografia não se ressalte este facto, sem o deserto do Buçaco, sem a muralha, sem o bastião verde da mata e sem os monges, muito possivelmente Wellington não teria vencido com tanta comodidade o general Massena, no dia 27 de Setembro de 1810. Na Batalha do Buçaco, dispondo de cerca de cinquenta mil homens, Wellington derrotou as «águias napoleónicas», superiores em número, beneficiando do «ninho» dos monges, um autêntico ninho de «águias», assim designava Santa Teresa de Ávila os carmelitas descalços que viviam nos desertos, homens treinados para não temer de todo a morte, resistentes como os penhascos, tal como as águias habitantes do precipício.
Uma vez destruída a cerca em vários dos seus lances, junto dos locais onde a Batalha do Buçaco decorreu, pela primeira vez qualquer curioso podia entrar, bem como todos os que eram ávidos de madeira, sem que sobre eles fosse aplicada a punição papal de excomunhão ipso facto incurrenda destinada aos que cortavam árvores dentro do bosque sagrado. Perante esta nova vulnerabilidade, impunha-se agora a questão de saber se o «estilo precipício» continuaria operante. Ou seja, conseguiria a mata continuar a se autoproteger? E, mais decisivo ainda, a sua sacralidade intrínseca conseguiria persistir após a ordem de expulsão das ordens religiosas em Portugal, decretada em 1834? Nascido do suor dos monges, bem como da contemplação e do diálogo silencioso com Deus e a natureza, considerada por eles filha dilecta de Deus, esse «estilo precipício» primevo conseguiria, de alguma forma, reduzir significativamente a profanação da mata, protagonizada pelas multidões de aquistas e mundanos que chegam a ela em meados do século XIX, quando se dão substanciais melhorias nos banhos das termas de