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A Organização da Escola Libertária como Local de Formação de Sujeitos Singulares
A Organização da Escola Libertária como Local de Formação de Sujeitos Singulares
A Organização da Escola Libertária como Local de Formação de Sujeitos Singulares
E-book401 páginas5 horas

A Organização da Escola Libertária como Local de Formação de Sujeitos Singulares

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Sobre este e-book

Este livro traz uma análise da escola libertária/anarquista Paideia, instituição que funciona em Mérida, na Espanha, há mais de quarenta anos, traçando um estudo que vai desde a gênese da ideia que se concretizou na fundação da escola, passando pelos relatos e documentos que mostram as dificuldades enfrentadas, chegando a entrevistar, além de colaboradores e ex-colaboradores, também alunos e ex-alunos. Esse percurso permitiu mostrar os resultados práticos de uma educação diferente, com uma organização única, culminando com o relato daqueles que haviam frequentado a escola e, já adultos, estavam em seu período universitário. A obra lança um olhar sobre a educação com que estamos acostumados e, por meio da experiência da Paideia, mostra possibilidades educacionais capazes de inspirar educadores a uma prática educacional diferente.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento4 de ago. de 2020
ISBN9788547338459
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    A Organização da Escola Libertária como Local de Formação de Sujeitos Singulares - Clovis Nicanor Kassick

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    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO EDUCAÇÃO, TECNOLOGIAS E TRANSDISCIPLINARIDADE

    Se o homem quer abraçar a verdade, deve começar por fazer-se diferente do que é, para chegar a ser tão verdadeiro quanto a verdade.

    (Stirner)

    PREFÁCIO

    PAIDEIA: EDUCAÇÃO PARA A SINGULARIDADE

    Educar para a singularidade. Em meu entendimento, essa é a principal característica daquilo que chamamos de pedagogia libertária. Muitos afirmariam que a principal característica seria uma educação para a liberdade, ou mesmo pela liberdade. Mas, tal como a concebo, a singularidade pressupõe a liberdade, e só é possível em sua presença. Por outro lado, o exercício da liberdade individual na coletividade implica a singularidade; isto é, vivendo em liberdade, cada um é si mesmo, em contato com o coletivo, não havendo dois indivíduos iguais, por mais que compartilhem os mesmos meios e condições sociais. Portanto, afirmar uma é afirmar a outra.

    Não me esqueço de um trecho de Herbert Read (em A Educação pela Arte), no qual ele afirma que singularidade e comunidade não são incompatíveis, mas, ao contrário, uma é condição da outra. A coletividade depende de indivíduos singulares, cada qual contribuindo com suas possibilidades; cada indivíduo, por sua vez, encontra nos outros aquilo que ele não pode oferecer, de modo que singularidades isoladas redundariam em pequenas monstruosidades, excentricidades, desvios egóicos. Mas a não singularidade, por sua vez, significaria uma sociedade totalitária, totalizante, massificadora, na qual os indivíduos perderiam seus rostos, seus desejos, sua vida, para serem apenas mais um elemento do conjunto. O equilíbrio estaria, justamente, na relação indivíduo singular/comunidade: cada um oferecendo o melhor de si e obtendo o melhor dos outros.

    Como pensar um projeto educativo que nos permita tal situação? Como produzir uma prática pedagógica que tenha como objetivo alcançar tal equilíbrio?

    Os anarquistas têm buscado uma formação nesses termos desde meados do século 19. Nas críticas de Godwin (1945; 1993) aos sistemas públicos de ensino, ainda no final do século 18, percebemos tal preocupação como pano de fundo. Nos escritos de Proudhon e Bakunin, tal preocupação ecoa. Em outras experiências importantes, como a do francês Sébastien Faure, com o orfanato de La Ruche (1904-1917), e a do espanhol Francisco Ferrer, com a Escuela Moderna de Barcelona (1901-1905), foram ajudando a delinear o projeto pedagógico libertário como uma educação para a liberdade, buscando a articulação das singularidades com um meio social não opressor e para além da exploração do homem pelo homem.

    Mas, em termos contemporâneos, como se desenvolve o projeto anarquista de educação? Há experiências concretas em andamento?

    Certamente, há muitas delas. Mas, infelizmente, a maioria é bastante efêmera e fica restrita a pequenos círculos. Poucas são as experiências educativas libertárias, em nossos dias, que ganham as dimensões da escola Buenaventure, criada na França por Jean-Marc Raynaud e ainda em atividade, e do Centro Educativo Paideia, que está instalado e em funcionamento ininterrupto na cidade de Mérida desde 1978. O trabalho do Colectivo Paideia, em torno de Josefa M. Luengo, foi e tem sido fundamental em meu trabalho com a pedagogia libertária, ajudando-me em meu projeto de consolidar uma filosofia anarquista da educação. Tomei contato com essa experiência libertária em 1991, por meio do livro Desde Nuestra Escuela Paideia, que adquiri por intermédio e indicação do saudoso companheiro Jaime Cubero. Após atenta leitura, e impressionado com os relatos ali expostos, escrevi para o endereço da escola. Não tardou a chegar uma amável resposta, acompanhada de outras publicações em livro já feitas pelo coletivo e de exemplares da Revista Pedagógica Paideia, em que então publicavam. Durante alguns anos, trocamos intensa correspondência, por meio da qual fui conhecendo melhor a escola e seu projeto, mas, sobretudo, mediante a qual discutimos intensamente os princípios de uma educação libertária. E foi essa discussão uma das mais determinantes naquilo que escrevi e tenho escrito sobre o tema.

    Minha ligação intelectual e afetiva com a Paideia é muito intensa. Assim, vejo com muita alegria a publicação deste livro de Clovis Kassick, um primeiro esforço de tornar disponível ao leitor brasileiro a importante e interessante experiência espanhola.

    Também Kassick teve intensa relação com o Colectivo Paideia, mas, diferente da minha, que se resumiu às cartas, pois Clovis viajou a Mérida para conhecer in loco a escola e seus atores. Impressionado com o que viu, ouviu, com as conversar que teve, com o material obtido resolveu fazer da experiência da Paideia a matéria de sua tese de doutorado, apresentada à Faculdade de Educação da Unicamp.

    Kassick traça uma trajetória analítica da Paideia em torno de três olhares, que marcam sua forma de relação com a escola: primeiro, mediante a bibliografia, estudando a experiência, seus fundamentos, seus impasses e seu desenvolvimento por intermédio dos livros, textos, artigos e demais publicações do Colectivo. Depois, naquilo que ele denomina "a Paideia vista de fora, narra a história da escola, como alguém que assiste a um filme, como expectador. Por fim, trata do encontro com a realidade", quando a experiência é vista por dentro, na ação cotidiana de seus atores, adultos e crianças.

    Toda essa narrativa da trajetória é marcada por um fio condutor: o movimento que a Paideia fez, de uma escola livre, preocupada com a formação de crianças singulares, comprometida com uma ação educativa antiautoritária, mas não necessariamente anarquista, para a definição da ideologia anarquista como central nas relações e concepções pedagógicas que motivam a escola e suas ações. Essa última fase é marcada pelo livro de Josefa M. Luengo, A Escola da Anarquia, publicado na Espanha em 1993. Evidentemente que esse percurso, com tais alterações de rota, provocou conflitos, rompimentos, retomadas. Tudo isso é narrado e analisado aqui, tanto na perspectiva dos documentos produzidos quanto das histórias de vida dos envolvidos, daí a grandeza do texto.

    Numa segunda parte, Kassick apresenta cinco tópicos nos quais aprofunda a análise da experiência da Paideia como escola libertária, comprometida com um processo educativo voltado para a formação de subjetividades singulares: a) os conflitos de poder inerentes ao processo, as rupturas que causou e como isso foi trabalhado; b) o processo de organização estrutural e pedagógica, que transitou de uma perspectiva consensual para uma perspectiva democrática; c) as assembleias como forma básica de organização e seu papel político e pedagógico, tanto para os adultos quanto para as crianças; d) as inconsistências do projeto educacional da Paideia; e e) aquilo que o autor considera como o mais importante na experiência: os ensinamentos que dela podemos tirar.

    Essa última parte mostra que o autor, educador comprometido com os projetos educativos libertários, consegue ter o necessário distanciamento para perceber e analisar as inconsistências e contradições da experiência da Paideia, destacando o que ela tem de interessante e apontando suas falhas.

    O Centro Educativo Paideia foi e continua sendo uma experiência riquíssima. Para aqueles que se interessam por uma prática pedagógica desalinhada em relação às capitalísticas, para aqueles que apostam que outra educação e outra escola são possíveis, ela segue sendo uma referência fundamental. Para os leitores brasileiros comprometidos com projetos progressistas de educação, o livro de Clovis Kassick é de leitura obrigatória, cobrindo uma lacuna até então presente em nossa bibliografia, ao apresentar, narrativa e criticamente, a experiência da Paideia nas nuanças de sua história.

    Educar para a singularidade, para além de ser desejável, é possível. Essa me parece ser a principal lição da Paideia para os educadores socialmente comprometidos com a liberdade e a transformação. Que ela nos sirva não de modelo, mas como fonte de inspiração para novos projetos, novas relações, novas possibilidades.

    Sílvio Gallo

    Professor Titular da Universidade Estadual de Campinas

    Junho de 2019

    APRESENTAÇÃO

    Este livro é o resultado de uma grande experiência de aprendizado pessoal. O texto A organização da escola libertária como local de formação de sujeitos singulares mostra a experiência de uma escola que, na época da pesquisa, passava dos seus 20 anos de funcionamento, e traz entrevistas com colaboradores, ex-colaboradores, alunos e ex-alunos, traçando sua história e demonstrando que é possível ensinar de forma libertária.

    A experiência mostrada neste livro por meio da Escola Paideia é um verdadeiro contraste com a educação a que estamos acostumados, em todos os sentidos, desde a organização pedagógica até sua gestão.

    Em tempos em que vemos políticas públicas voltadas ao tolhimento da autonomia e do pensamento, este livro busca inspirar, por meio da experiência da Paideia, diferentes modos de abordagem do ensino e do entendimento de educação. A experiência narrada, principalmente por ex-alunos, na época em seu período de graduação, mostra que os sujeitos formados pela escola são realmente singulares. Essa singularidade representa, além do respeito à individualidade, uma experiência de educação que não dificultou a evolução e o crescimento intelectual dos sujeitos participantes, mas lhes deu os elementos necessários para desenvolver suas características próprias.

    Estamos acostumados com uma (en)formação que molda alunos e professores a uma sociedade que parece esperar que sejamos apenas mais uma engrenagem do sistema capitalista. Diferentemente disso, a Paideia procurava desenvolver características que, além de desenvolver intelectualmente os alunos, despertassem seu senso de responsabilidade e compreensão do lugar que cada um estava apto a ocupar, buscando novos espaços a serem ocupados de acordo com o desenvolvimento de cada um.

    O livro também relata as dificuldades enfrentadas pela Paideia desde sua formação: sua característica singular impediu que fosse reconhecida pelo sistema educacional espanhol, e essa mesma singularidade despertou o interesse dos pais como alternativa mais viável para a educação de seus filhos.

    Apesar das dificuldades enfrentadas, a Paideia segue em funcionamento, resistindo há mais de 40 anos.

    Sumário

    INTRODUÇÃO 15

    A PAIDEIA: DE ESCOLA LIVRE À ESCOLA ANARQUISTA 25

    Primeiros estudos: a paideia através da bibliografia 25

    PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES: A PAIDEIA VISTA DE FORA – CONTANDO A HISTÓRIA 57

    Família, profissão, organização 71

    A política convencional 74

    A REALIDADE: A PAIDEIA VISTA DE DENTRO – OUVINDO A HISTÓRIA 79

    Questões de gênero 103

    Poder econômico x economia libertária 116

    PONTOS DE ANÁLISE 215

    REFERÊNCIAS 241

    ÍNDICE REMISSIVO 245

    INTRODUÇÃO

    Há vários anos, vimos dedicando-nos a pesquisar as ações que se desenvolvem na instituição escola, questionando como e por que elas são realizadas, e como e por que elas organizam a instituição escola de determinada forma. Essa inquietação retirou-nos, em fevereiro de 1989, do exercício da docência no ensino fundamental no Rio Grande do Sul, transportando-nos para Santa Catarina, ao curso de mestrado em Educação da Universidade Federal onde, já naquela época, discutíamos essa questão.

    A sistematização dos estudos permitiu-nos uma primeira análise da organização escolar remetida à organização sócio-produtiva capitalista, confrontada com a organização escolar a partir dos pressupostos socialistas¹. Tal estudo e as análises propiciadas mostraram, sobretudo, a semelhança da organização escolar em ambas as concepções, cujas estruturas estão alicerçadas na hierarquia das relações e das funções.

    Como decorrência dessa hierarquia, apontávamos para o fato de que, se, de um lado, o professor vê-se a ela subordinado, por outro lado, ela é o instrumento que lhe permite subordinar os alunos. Dessa forma, anunciávamos/denunciávamos que a verticalização das relações estabelecidas pela organização hierárquica constituía-se no verdadeiro conteúdo trabalhado pela instituição escola, independentemente se de cunho capitalista ou socialista. Essa análise era decorrente do fato de a

    [...] história da educação mostrar que a instituição escolar, tradicionalmente, tem servido de suporte e mecanismo de preservação da estrutura sócio-organizacional da sociedade. E, como tal, a ela está atrelada e sujeita aos seus mandos e desmandos, de forma a sofrer alterações, quer curriculares, quer estruturais, de acordo com as necessidades concretas de um determinado momento de sua evolução. Esse momento e essas necessidades são exigidas e determinadas pelo modo de produção predominante. (KASSICK; KASSICK; JENSEN, 1992, p. 47).

    O resultado concreto desse objetivo que permeia as ações escolares aparece não apenas nas atitudes dos professores, alunos, funcionários e corpo técnico-administrativo da escola, mas, sobretudo, nas constantes atribuições de culpas que se fazem no seu interior:

    Poucos foram os professores, alunos e pais que conseguiram e conseguem vislumbrar nas alterações sofridas pela escola, os reais interesses que escondem. Em decorrência, na sua grande maioria, passam a brigar, a questionar e a acusar-se entre si pela ineficiência. Assim, atribuiu-se ora à escola e ao sistema escolar como um todo, a culpa pela baixa qualidade e fracasso do ensino; ora ao despreparo do professor; ora à indolência e desinteresse do aluno; e até mesmo à pouca participação dos pais na escola, como se fossem estas as causas e não as conseqüências [sic] do problema educacional brasileiro. Era, e é, a cortina de fumaça perfeita para esconder o real problema educacional, o problema de fundo, as verdadeiras causas da ineficiência da escola pretendida e embutida nas alterações do sistema educacional. (KASSICK, KASSICK; JENSEN, 1992, p. 47).

    Constatávamos, assim, que a escola, em ambas as sistemáticas sócio-organizativas, alicerça-se segundo uma estrutura hierárquica.

    Ao finalizar aquele estudo, indagávamos sobre a possibilidade da escolarização colocar-se a serviço do indivíduo e do desenvolvimento da sua autonomia. Perguntávamos:

    Qual o papel da escola na educação dos indivíduos tendo em vista a sua autonomia? Como deve ela atuar para evitar a dicotomização entre a realização do indivíduo em seu processo de hominização, e o seu atrelamento, adequação e modelamento a determinadas estruturas que o condicionam, o desumanizam e o escravizam? Como acabar, neste processo, com as relações verticais, hierarquizadas, que implicam na dicotomia do trabalho manual e trabalho intelectual, da teoria/prática? (KASSICK, KASSICK; JENSEN, 1992, p. 61).

    A semelhança entre ambas as propostas não só manteve a inquietação, mas instigou-nos a buscar, na literatura socialista de cunho libertário, possibilidades da existência e/ou emergência de outra sistemática organizativa da escola, que permitisse a superação dos conflitos e limitações impostas pela organização escolar convencional.

    O resultado desse desassossego animou-nos à pesquisa da organização das escolas alternativas², que foi desenvolvidaem Florianópolis/Santa Catarina, na Escola Sarapiquá, mantida pela Associação Cultural Sol Nascente, tendo como foco de estudo as relações sociais no âmbito das relações de trabalho, das relações de poder e nas relações pedagógicas.

    Partimos do pressuposto de que vivemos numa sociedade que historicamente se construiu sob bases autoritárias (KASSICK, 1992, p. 24) e, a partir dessa realidade, queríamos verificar a possibilidade de estabelecer no espaço institucional da pré-escola, novas formas de relações e de construção do conhecimento, através de uma educação que persiga os princípios da pedagogia libertária (KASSICK, 1992, p. 24).

    Esses pressupostos alicerçaram-se nas premissas básicas de que

    Há vinculação entre o modo de vida das pessoas, sua opção política e a prática pedagógica; A opção política das pessoas nem sempre é clara e assumida coerentemente; Existe certa dicotomia entre o discurso e a ação pedagógica, o que determina relações ambíguas; A conquista da liberdade é um processo coletivo, cuja vivência inicia no plano individual e passa pela luta contra o autoritarismo; Há uma íntima relação entre a história individual, a história do coletivo e o momento histórico da sociedade; A história da Escola se reflete e é refletida na história das pessoas que a constroem em processo permanente; O exercício da liberdade que se fundamenta no respeito às diferenças individuais, permite a eliminação dos conteúdos autoritários das relações pedagógicas, os quais se manifestam através da impossibilidade e/ou massificação pela média; A manifestação das diferenças individuais permite o pleno exercício do potencial criativo e a originalidade das pessoas, o que só é possível na ausência da repressão; A horizontalidade nas relações reforça o sentimento de grupo; A organização do trabalho solidário, os interesses e objetivos comuns possibilitam a emergência do coletivo; O desejo, enquanto pulsão humana, origina o poder que, exercido sem exploração, dominação e controle de uns sobre outros, reverte em benefício do grupo; A positivação do poder é possível através da substituição das estruturas hierarquizadas verticalmente, pela organização do trabalho cooperativo; O trabalho, enquanto processo de aquisição de conhecimento e desenvolvido numa dimensão humana, engloba a corporalidade, a sensorialidade, a afetividade e a cultura. (KASSICK, 1992, p. 25-26).

    Naquele momento, elencamos como princípios A solidariedade na formação do espírito de grupo; o respeito às diferenças individuais na construção do coletivo e a autonomia e a criatividade na busca da liberdade individual e coletiva (KASSICK, 1992, p. 25). A nossa inserção na escola permitiu-nos vivificar seu dia a dia, resgatar sua história e apontar/analisar os momentos em que as ações de pais, professores, funcionários e alunos aproximaram-se e/ou distanciaram-se de uma pedagogia libertária³. Verificou-se, na ocasião, que também aí se evidenciava a lógica escolar convencional, ainda que amenizada.

    Foi na busca de alternativas organizacionais que permitissem, efetivamente, a formação do indivíduo enquanto sujeito de vontade⁴, que demos sequência à nossa investigação, buscando os elementos e experiências que apontassem para essa possibilidade. Assim, este texto contempla esse desassossego de constantemente questionar a organização escolar.

    Entendemos, e a historiografia da escola e da fábrica permite-nos essa inferência, que a organização escolar segue a organização sócio-produtiva, e a ela está atrelada com a finalidade precípua de atender às suas demandas, a partir dos diferentes momentos e mudanças organizacionais que têm implementado na formação do futuro operário.

    Posta essa situação e na perspectiva do aprofundamento dos estudos, buscamos, para além da pesquisa bibliográfica, no estudo de caso, compreender uma experiência educativa concreta, alicerçada segundo o paradigma organizacional libertário. Esse desejo levou-nos à Espanha, à região da Extremadura, na cidade de Mérida⁵, e ao Coletivo Paideia, que mantém, desde 1978, um espaço educativo segundo os pressupostos autogestionários.

    Assim, este texto é a expressão da pesquisa bibliográfica e empírica⁶ que nos permitiu a observação direta, os relatos, os depoimentos, as entrevistas, possibilitando análises, inferências e conclusões sobre a realidade, muitas vezes dura, incompreensível e até incoerente a nossos olhos e, noutras vezes, agradável, gratificante e recompensadora, porque espaço de convivência libertária, sinalizando para aquilo que Stirner (1976. v.2) chamaria a formação do sujeito de vontade.

    Ao trazermos para o interior do texto os depoimentos dos atores da escola, procuramos manter as falas originais. Por essa razão, muitas vezes, elas apresentam-se entrecortadas, imprecisas, reticentes, repetitivas, porque sua transcrição não permite expressar toda a riqueza da comunicação não verbal. O entendimento e a observação direta dos jeitos e trejeitos, do tom de voz, do movimento impaciente na cadeira, dos parênteses nas falas e do deixar pensar só podem ser captados pela intuição. Tudo aquilo que o diálogo direto permite ler nas entrelinhas, por meio das pausas e das reticências, revela a comunicação efetiva dos sentimentos e a eloquência que o registro das palavras não permite.

    O ponto de partida para pensar a organização da Escola Paideia foram as análises já realizadas por nós, no sentido de entender a forma pela qual se organiza a escola convencional e os reais objetivos que a alicerçam. Resultaram num texto intitulado Raízes da Organização Escolar (heterogestionária), publicado pela Editora Achiamé, Rio de Janeiro, em 2000, numa coletânea de textos organizados por Maria Oly Pey, sob o título Esboço para uma história da escola no Brasil: algumas reflexões libertárias. Nele, discutimos e apontamos que o verdadeiro conteúdo da escola convencional, ou da instituição escola, não repousa na transmissão dos conhecimentos socialmente produzidos, como discursivamente ela apregoa (coisa que é incapaz de fazer, haja vista a velocidade com que os conhecimentos são produzidos), mas que o conteúdo com o qual trabalha é o da fôrma, isto é, o de (en)formar o indivíduo de acordo com as diferentes formas que os diferentes momentos sociais a ela demandam, em função das diferentes necessidades organizativas do processo produtivo (KASSICK, 2000).

    A partir da semelhança entre a organização do processo produtivo e a organização escolar, traçamos um paralelo entre a história das duas instituições, para evidenciar o atrelamento da escola à fábrica. Tal semelhança remeteu-nos à reflexão sobre as razões pelas quais, na escola, não se pode burlar e/ou alterar, significativamente, a estrutura da organização. A ordem deve ser preservada acima de qualquer coisa. Nesse sentido,

    [...] o objetivo principal da Instituição Escola é a consolidação da forma de pensar a organização político-social e organizativa da sociedade, tendo a lógica produtiva como reitora da organização social. Isto nos permite entender por que, em diferentes momentos do processo produtivo, este demanda à escola diferentes formações (educação) do Sujeito (futuro operário), adequando-o constantemente a estas novas exigências. (KASSICK, 2000, p. 99, grifos do autor).

    Na sequência das reflexões, transitamos pelas possibilidades de uma educação autogestionária, enquanto desencadeadora da autonomia dos sujeitos. Apoiados em autores libertários, principalmente em Proudhon (1964; 1975; 1977; 1985; 1988), apontamos que a autogestão educativa, para atingir seus propósitos, deve constituir-se em ação revolucionária pela forma de organização que desenvolve a partir da ação direta, colocando em questão a estrutura das organizações da sociedade tradicional, inaugurando novas relações político-sociais (KASSICK, 2000, p. 110).

    Nesse sentido, o que, à primeira vista, constituir-se-ia em forma, na verdade, representa o próprio conteúdo da organização autogestionária, isto é, a contestação da estrutura social heterogestionária. Sob essa óptica, considerando a relação entre a organização da escola convencional heterogestionária e as possibilidades da organização escolar autogestionária, foi-nos possível analisar e encaminhar as reflexões sobre a Paideia.

    Contudo, para entender quem é o Sujeito singular (objeto da pesquisa) que o coletivo da Paideia busca formar, tínhamos necessidade de retratar quem é, como é esse sujeito singular e como se forma essa subjetividade autônoma, segundo o pensamento libertário. Para isso, recorremos ao filósofo libertário Johann Kaspar Schmidt, conhecido por Max Stirner⁷ que, em 1845, na obra O Único e sua propriedade, afirma a supremacia da vontade do EU sobre qualquer outra. Em suas obras Stirner (1976) afirma que o indivíduo autônomo é aquele que é capaz de fazer prevalecer o poder de sua vontade sobre todas as outras coisas. Sua autonomia evidencia-se pela recusa de ser tutelado tanto por outros como, principalmente, pelas instituições. Assim sendo, cabe ao próprio indivíduo desenvolver sua humanidade ou, segundo o autor, apossar-se de si.

    Segundo Diáz (1975, p. 17, grifo do autor),

    A filosofia de Stirner, desenvolvida ardorosa e amplamente em O Único e sua Propriedade, consiste numa defesa cerrada da personalidade humana confrontada à sociedade e ao Estado. A máxima de Stirner resume-se à idéia [sic] de que a missão de uma pessoa consiste em chegar a ser ela mesma, reconhecer o que lhe é próprio, assumir que nada existe acima dessa propriedade, e que, o que não constitui o próprio de si mesmo deve ser posto em condição de tensão para tornar evidente o que está em afinidade com a autonomia pessoal e o que lhe é prejudicial e perigoso. A única propriedade verdadeira do uma pessoa é, então, ela mesma, todavia, paradoxalmente, para sê-lo de maneira autêntica, é preciso tomar posse de sim mesmo. Só a partir deste centro de gravidade é possível vincular-se livremente com a sociedade. Stirner conclui que o Estado é necessariamente rival do indivíduo, que a instituição hierárquica, por sua própria essência, é antiindividualista [sic], contrária à vontade pessoal. A pedra de toque da autonomia reside na personalidade, no caráter, essa substância que podemos moldar e construir como um projeto, do modo como uma pessoa procede à educação de si mesma. E com essa auto-educação [sic] o Único descobre o enorme poder que se encontra em germe em cada pessoa singular. Este é o princípio irrevogável sobre o qual constitui sua fortaleza argumentativa.

    Podemos dizer que, para Stirner, o sujeito capaz de autodeterminar-se é o sujeito que reconhece suas vontades e que as torna ações. É essa capacidade de autodeterminação (autonomia) que caracteriza o homem, dando-lhe o sentido da humanidade. Enfim, essa é a razão de ser do egoísta stirneriano. Portanto, o sujeito autodeterminado é aquele que cria sua subjetividade a partir da posse de si e de suas coisas. É a afirmação do sujeito de vontade, do sujeito autônomo, que leva Stirner a afirmar: fora de mim toda a causa que não seja total e exclusivamente a minha (1976, p. 15-16).

    O estudo sobre o pensamento de Stirner constituiu-se em referência para entender quem é o sujeito autônomo que a Paideia quer formar e resultou numa monografia sobre suas obras.

    Assim, o capítulo que abre a tese foi precedido, de fato, desses outros dois momentos (o da publicação do texto: Raízes da Organização Escolar – heterogestionária, e da monografia de Stirner), que deram sustentação para encaminhar as reflexões e o conteúdo que seguem.

    O título geral A Paideia: de escola livre a escola anarquista traz, em seu interior, três capítulos que buscam desvelar o que lá ocorre e como ocorre.

    O capítulo, intitulado "Primeiros estudos: a Paideia através da

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