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Os Contos que as Folhas Contam: Por L.P.
Os Contos que as Folhas Contam: Por L.P.
Os Contos que as Folhas Contam: Por L.P.
E-book354 páginas5 horas

Os Contos que as Folhas Contam: Por L.P.

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Sobre este e-book

O Rio percorre e circunda a Rua. A Rua se apressa e contorna a Floresta. Nove pássaros negros observam de cima das árvores carrancudas e espreitadoras. Nesse cenário, as velhas árvores testemunham as lembranças que se transformam em contos.Contos de horrores cósmicos, épicos, simbolistas, adeptos à simplicidade da natureza. Das profundezas da Floresta ou da alvura dos campos, diretamente para as páginas do dia-a-dia. Um conto por dia, onde não haverá o tempo. Apenas o vento. Um vento constante que remexe as folhas-lembranças e que espalha as histórias por toda parte, misturando-se umas às outras, transpassando-se e se conectando como as raízes das velhas árvores.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de mar. de 2023
ISBN9786500640472
Os Contos que as Folhas Contam: Por L.P.

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    Os Contos que as Folhas Contam - Lisandra Polidoro

    Este é um livro escrito por mim onde cada enredo me leva à busca dos quebra-cabeças tempestuosos de minha própria mente, onde dedico, a única pessoa que pode acalmá-los. Mãe.

    Sumario

    Os Contos que as Folhas Contam ........................................ 007

    O Conto da Rua ........................................................................... 013

    Fugindo dos Fantasmas ............................................................ 021

    Do Lado Direito da Floresta .................................................... 029

    O Coaxar dos Cururus ............................................................... 035

    A Coruja Branca e o Velho Guardião ................................... 043

    O Eterno Equilíbrio ..................................................................... 047

    Nos Braços de um Anjo ............................................................ 049

    1927 .................................................................................................. 055

    Do Equinócio às Névoas ........................................................... 063

    Nunca Mais Retornar ................................................................. 085

    O Fauno .......................................................................................... 093

    A Confissão ................................................................................... 097

    Uma História do Mar ................................................................. 135

    Fadas do Pântano ....................................................................... 139

    Encontro no Céu Noturno ....................................................... 143

    A Arca do Diabo .......................................................................... 147

    Quem Mais Está Lá ..................................................................... 163

    O Músico ........................................................................................ 173

    A Teoria da Metamorfose do Besouro da Madeira ....... 179

    Cartas Para Jayne ........................................................................ 189

    Halloween ...................................................................................... 227

    O Campo Dourado ..................................................................... 233

    O Navio da Floresta .................................................................... 237

    O Armário Chinês ........................................................................ 247

    Charlene .......................................................................................... 257

    O Dia do Sol .................................................................................. 263

    Contos do Lugar Mente ............................................................ 269

    A Caixinha de Música ................................................................ 283

    A Armadilha da Embaúba-Caramujo ................................... 289

    Feitiço Vermelho ......................................................................... 295

    As Terras Oníricas dos Gatos .................................................. 305

    O Enigma da Caixa da Lua ....................................................... 309

    O Lugar Para Onde os Pássaros Vão ................................... 313

    O Silêncio das Formigas ........................................................... 317

    Duas Almas e o Tempo ............................................................. 325

    Perdida ............................................................................................ 331

    Olhos Intergalácticos ................................................................. 335

    Canção de Ninar .......................................................................... 343

    O Toque das Mãos ..................................................................... 347

    Dama de Preto ............................................................................. 353

    O Baile do Centenário ............................................................... 359

    Os Contos que as Folhas Contam

    Não há nada como escrever sob uma árvore, imagine então como é, sob centenas delas.

    Enquanto escrevo, os pássaros se aproximam devagar, e seus cantos e aparições também aparecem na história que escrevo. Cada galho que estala, cada som do respirar natural da Floresta, faz parte do enredo do que é escrito. Cada planta, cada inseto, cada cor dando inspiração para as palavras surgirem. Rapidamente surgem. Enroscam-se rudemente como cipós grossos de uma árvore, onde se misturam com as lembranças de minha mente e as lembranças da Floresta. A mesma Floresta que estivera ali quando aquelas velhas histórias presentes em minhas memórias eram vividas. E estava presente também, quando essas mesmas histórias eram contadas. Suas folhas levemente ou violentamente balançavam ao vento e espalhavam a aura das palavras contadas.

    Contadas ao anoitecer, ao redor do fogão à lenha, nas primeiras casas da Rua. A Rua que circunda a Floresta. A Rua que é cercada pelo Rio.

    Essas histórias eram contadas antes de um jovem ir para sua casa ou para casa de sua namorada tarde da noite. E ele seguia seu caminho com aquelas palavras frescas em sua mente, que o inspirava a experiências macabras e assombrosas, que de tão inexplicáveis, tornavam-se mais tarde, outras histórias contadas.

    Sob aquele efeito sobrenatural dos causos contados pelos antigos, via fortes luzes que o seguia pelos campos noturnos, buracos negros em formato de grandes chapéus que surgiam no meio da estrada nas noites mais escuras, sopros sentidos em sua nuca e passos ouvidos à suas costas. Assim, qualquer coisa era motivo de susto e assombro, qualquer pequena mancha branca parada estática na escuridão e no meio do caminho em que tinha de passar, se tornava uma curiosidade amedrontadora que deixava o coração saltando do peito até chegar bem perto e descobrir que era apenas uma mancha branca no rabo de um cavalo negro que descansava ali, no meio do caminho por onde passaria. 

    Lembrava-se das conversas sobre o padre local que amaldiçoava tanto quanto benzia. E assim saíam causos sobre animais horrendos e grunhidores, possuídos por alguma obscuridade que atacaram um grupo de fazendeiros tarde da noite, na escuridão de estradas sem iluminação. Animais que eram afugentados com varas e chicotes até que sangrassem e enfim parassem de tentarem morder os cavalos e seus cavaleiros, fugindo calados enfim. Na manhã seguinte os fazendeiros descobriam que eram apenas porcas comuns. Acreditavam eles, que aqueles eram animais possuídos. E que aquilo era uma maldição do velho padre. Castigo por suas badernas tão tarde nas noites.

    Ou das narrativas sobre as pescarias noturnas no velho Rio. Sobre certo dia, que anoitecia ainda não por completo, quando o velho jogava sua tarrafa no Rio de uma pequena ilha de pedras. Ao retirar da água sua tarrafa, ouviu um barulho inquietante, típico de um morcego, muito comum de capturar no ato de jogar a tarrafa naquele horário. Percebeu também que tinha uma pedra grande e redonda presa em sua rede, também muito comum de prender. Decidiu primeiro retirar os peixes, e depois retirar a pedra e o morcego. Este continuava a esguichar fino e esquisito, como um animalzinho macabro e repugnante, e não sairia sem ajuda, já que suas finas asas trancavam-se muito fácil à rede. Antes de chegar à pedra, esta acabou caindo sozinha da rede com um estrondoso mergulho na água corrente do Rio. Nesse exato instante, o esguicho cessou. Nenhum morcego havia na tarrafa. Pertinente e teimoso, o senhor da vila ainda tentou capturar a pedra de dentro do Rio novamente. Noutro dia, ainda voltou-se e tirou o máximo de pedras que conseguiu para fora da água, tentando encontrar aquela esguichante e medonha. Nunca encontrou.

    O jovem passava por aquelas estradas não habitadas, tarde da noite, com a Floresta em breu total observando-o logo acima, e com o Rio o cercando do outro lado. Em seu caminho, tinha de fechar e abrir porteiras para passar. Nesse momento, por vezes, sentia um punhado de areia ser jogado em sua cabeça, sob o chapéu que costumava usar. Então virava rapidamente e não havia ninguém, retirava o chapéu e não havia um grão de areia sob suas abas. Já alerta, continuava a abrir a porteira, novamente, sentia um punhado de areia ser jogado sob sua cabeça, e novamente nada nem ninguém ali na escuridão. Nesses momentos, ele apenas se apressava o máximo que podia para sair dali e chegar em casa. 

    Esses respingos de experiências que escrevo foram reais. Vividas e contadas pelo meu bisavô, vividas e contadas pelo meu avô. E foram desde sempre, base e inspiração para os contos que virão.

    Porque para a Floresta que observou tudo aquilo e que observa hoje enquanto escrevo, não há o tempo, não há cronologia. Apenas um emaranhado de acontecimentos deixados para que a brisa eterna carregue e traga de volta. Como labirínticos pensamentos infinitos.

    Então aqui, também não haverá o tempo, apenas o vento. Um vento constante que remexe as folhas-lembranças e que espalha as histórias por toda parte. E assim misturam-se umas às outras, transpassam-se e se conectam como as raízes das velhas árvores.

    O Conto da Rua

    Há quem diga que os lugares tem alma. É sábio aquele que começa uma história assim, a história da Rua ao redor da Floresta.

    Muito antes dos homens civis chegarem por lá, difícil dizer se algum grupo indígena tenha passado e explorado aquele lugar, havia somente um amontoado de árvores. Eram densas, belas e de feitio protetor, fortes e robustas. Viviam por anos iguais, como um só ser, com seus troncos uns ao lado do outro como uma barreira para o vento, com suas copas unidas para proteger do sol, para fazer a chuva escorrer e pingar na medida certa. Grandes troncos grossos e imaculados. Os Palmitos, herança dos grandes pássaros, deixavam baixadas e vales escuros e sombrios como a noite. Um fino córrego bem no meio da Floresta, delimitando o âmago e a riqueza desta. Vales e subidas verdes, primitivas, habitat de animais e seres sagrados.

    A Floresta tornou-se então, desejada. E vieram os primeiros homens. Valentes e honrados, de sangue forte misturado às linhagens vindas de terra do outro lado do mar. Fizeram uma estreita estrada para passarem com cavalos e carroças de bois, logo abaixo da Floresta que subia uma leve colina. Descobriram uma terra nova, cheirosa e viva. Cortaram muitas das arvores de troncos grossos e com elas fizeram abrigos, ninhos simples de descanso e conforto ao redor e abaixo da Floresta.

    Ao redor da fina estrada para cavalos e carroças, roçaram, queimaram e amaciaram a terra, cuidaram dela para que também cuidasse deles. Jogaram sementes douradas, enterraram galhos com olhos brotantes, semearam grãos finitos e escolhidos cuidadosamente. Não tinham pressa, eram solitários os homens e suas pequenas famílias. Então tudo floresceu e tudo frutificou, e as finas estradas se alongaram até o Rio, este, descobriram, circulava toda a Rua e a Floresta. E este, também descobriram, se tornou o maior sustento da Rua.

    O Rio que circundava a Rua que circundava a Floresta. De águas amareladas, correntezas amenas, pequenas ilhas mundanas. Muito se era pescado nele. Incrível era a abundancia e utilidade, dando sustento as famílias da Rua. Assim elas cresceram e vieram outras simples famílias, construíram ali na Rua também, suas casinhas, onde à noite, orgulhosamente descansavam e conversavam sobre coisas simples e ensinavam coisas simples a seus filhos. Tinham suas plantações honradas e pescavam juntos no Rio no embocar da noite os abundantes peixes. A rua ganhou nome, em homenagem as pescas do Rio, e mais famílias vieram para lá.

    Nunca nenhuma guerra perturbou a rua. Ali também nunca nada era exagerado. O frio vinha devagar, geadas fracas e frágeis que não matavam as plantações. Assim também era o verão, no final dos dias quentes, um vento bom e uma chuva para acalmar o calor. As tempestades alertas e furiosas sim, mas nunca para tirar o sagrado abrigo de ninguém, o vento vinha castigante, mas não tanto quanto em outras regiões próximas, destruindo moradias e quebrando por completo as árvores. A chuva nunca tão densa que o grandioso Rio não fosse suficiente, aparecendo um brando raio de sol quando tudo estava prestes a transbordar. Tudo era equilibrado, nunca catastrófico como em algumas das ruas próximas. Uma receita do equilíbrio que a própria natureza poderia querer para sobreviver.

    A Floresta e a Rua que a serpenteava foram ficando temperadas de histórias, lendas e superstições que vieram com os homens. As famílias foram fazendo suas casas cercadas, isoladas, amigas em sua maioria. Belas casas fortes e resistentes com bonitos jardins e muros. Flores de todas as cores e tamanhos enfeitando as frentes das casas, flores que os pássaros gostavam de visitar, pássaros cantantes antes do amanhecer.

    Fizeram então grandes arrozais, cobrindo enorme parte dos arredores da estrada. Gigantes quadrados e retângulos verdes intensos, enlameados ou secos, mudando a cada estação, fazendo os homens e os animais se adaptarem a cada época, a cada amadurecimento e a cada colheita. Uma metamorfose explícita do crescimento do grão e da transformação da paisagem da Rua. Ora seca, dourada e espigada, ora verde profunda oscilante com o vento baixo. Ora apenas água ou pantano adorado por pássaros de pernas compridas.

    Então o Rio já não era mais o sustento da Rua. As famílias cresceram e alguns dos filhos foram embora. Vieram outras pessoas. Mais famílias construíram suas casas entre as primeiras. Os jardins foram ficando menores, menos lugares também para os pássaros virem cantar.

    Surgiram mais homens e mulheres diferentes, de outra etnia, de tez negra, de outra crença e herança sem histórias. Construíram ainda mais casas, pequenas, amontoadas umas sobre as outras, esquecidas de terminar, sem flores, sem árvores por perto. Pessoas com hábitos barulhentos, misturadas com outras ainda menos discretas. Os cantantes anfíbios dos arrozais foram calando-se obrigatoriamente pelo barulho delas. A Floresta foi ficando um contorno delimitado e proibido, mas não mais imaculada.

    As primeiras casas da Rua ainda estavam de pé, lá quase escondidas pelas outras, ainda tinham seus jardins e ainda eram abrigos dos pássaros cantores da manhã. Em meio aquela bagunça de casas e carros, sobreviviam as moradas e seus velhos equipamentos agrícolas, seus campos e plantações cercadas e protegidas.

    Ficou impossível para as primeiras famílias da Rua conservarem suas histórias, suas lendas e tradições simples e honradas. Aos poucos iam perdendo sua importância e sua simplicidade os tornou invisíveis. Suas conquistas, Floresta, campos, arrozeiras, ficaram insignificantes. O outro povo cresceu e vieram ainda mais crianças e jovens desinteressados. Os velhos foram se indo, os novos tomando conta. Os pássaros cantantes se abrigavam nos ranchos e casas primordiais da Rua e não se sentiam mais a vontade para estar em todo o canto, colorindo o dia. Lá em cima, na Floresta, o fino córrego já secara há tempo, as árvores se tornaram finas e ralas, os Palmitos totalmente extintos, deixando a Floresta clara e castigada pelo sol e vento. Mas lá no interior, no coração da mata, algo parecia não querer se deixar esquecer. Era um sentimento de mistério e enigma que ninguém parecia querer descobrir.

    As primeiras famílias então se foram, as casas viraram ruinas de pé, sem cores, afogadas entre as casas multicoloridas e com ervas daninhas por toda parte. Uma barreira antes da delimitada Floresta. Ninguém sabe como foram parar lá, mas cada casa ou o que sobrou das primeiras casas passaram a possuir um símbolo. Estavam estampados nas paredes, ou em muros e portões de entrada, visíveis para todos. Símbolos desconhecidos e brilhantes que pareciam se combinar com as estrelas no céu noturno, aquelas, que já não podiam mais ver-se por causa de todas as luzes das casas da Rua. Eram uma marcação, uma homenagem ou talvez algum apontamento. Algo que remetia aquele mesmo mistério da Floresta ainda viva, não totalmente calada, aquele segredo assombroso e terrível que ninguém parecia querer saber.

    Passou muito do tempo, mais pessoas vieram, de famílias nenhumas, de nenhum sangue conhecido. A Floresta lá em cima ou o pequeno circulo que sobrou dela, junto das casas com símbolos esquecidos, seguiram assim em um sono profano até certo dia.

    Aí veio um dia colorido, em que pássaros silvestres desceram da Floresta para as casas da Rua, para cantar na beira das janelas. As pessoas nem sequer perceberam. Não perceberam que o dia parecia mais brilhante, que o vento estava mais fresco e revirava ao contrario as folhas bicolores das árvores dançantes da Floresta, como era no princípio de tudo. O céu era um azul infinito, sem nuvens. No entardecer as cigarras no alto das árvores e os anfíbios nos baixios e banhados que sobraram, vieram e fizeram-se ouvir entre os barulhos de máquinas e carros. Mas ninguém percebeu nada disso. Como também não perceberam que naquela noite as estrelas brilhavam profundamente no céu, podia-se vislumbrar seu brilho (se olhassem), e suas cores, azuis, vermelhas e amarelas. Assim como brilhavam também entre as ervas daninhas crescidas, os símbolos nas primeiras casas.

    Então, naquela madrugada, as pessoas da Rua finalmente perceberam algo de diferente. Um estrondo pesado e imprevisível pareceu chacoalhar a Rua, junto de um grito lastimável e agudo que parecia vir do coração da Floresta, lá em cima das casas todas. Um grito repugnante e desnorteado, que logo se intensificou junto aos anfíbios e outros animais noturnos que ainda resistiam em habitar a Floresta. As pessoas todas saíram de suas casas, acendendo luzes, saindo e tirando crianças pelas pequenas portas encavaladas umas as outras, correndo para a Rua em si. Isso porque, segundos depois, todas as casas em absoluto vieram abaixo. As em ruínas e as novas, as fabriquetas e os galpões, tudo desabou ao chão. Viraram nada mais do que pó. O estrondo e os gritos cessaram no mesmo instante e quando o primeiro raio de sol começou a surgir de trás das longínquas montanhas além do Rio, a névoa de poeira começou a baixar. As pessoas pouco a pouco foram embora. Algumas machucadas, outras desoladas, assustadas, até mesmo mudas, coisa que nunca foram. Não havia mais nada para elas ali, e ousaram nunca querer alguma explicação.

    As estações mudaram e mudaram de novo, no lugar dos grandes planos poeirentos de pedregulhos e restos de moradias, começaram a brotar ervas resistentes e da Floresta começaram a vir os pássaros espalhadores de sementes, fazendo florescer e iniciando um fino matagal. Lá em cima, a Floresta engrossou devagar, aqui e ali, brotavam flores, aquelas plantadas há muito tempo pelas primeiras famílias. Também apareceram os banhados, perto do Rio, clareiras com pequenos lagos que os pássaros de pernas compridas tanto adoravam. Os anfíbios harmoniosos começaram novamente sua intensa sinfonia ao anoitecer, o anoitecer silenciado de máquinas e pessoas. O silêncio reinava durante o dia e só competia com os cantos dos sonoros pássaros silvestres e dos gritos guturais dos pássaros pesqueiros à beira do Rio. O Rio que poderia de novo passar e levar as riquezas da natureza adiante, levando também a história de sobrevivência daquele lugar.

    Ninguém mais ousou pisar ali, e a terra viveu mais um profundo sono sem que fosse cultivada, conquistada ou violada pelo homem. A paisagem era de uma estrada abandonada, mas ainda presente, que serpenteava toda uma Floresta densa e selvagem de formato delineado, e ao redor de ambas, um Rio largo e rápido, transportador de histórias e protetor de tudo.

    Ninguém poderia dizer que viveu para ver tudo isso chegar ao fim e ao inicio de novo, ninguém que poderia dizer que a Rua e a Floresta construíram sua história e sua memória. Um ciclo infinito em seu melhor capricho.

    Porque há quem diga que os lugares tem alma. E é sábio aquele que termina uma história assim, a história da Rua ao redor da Floresta.

    Fugindo dos Fantasmas

    Os quatro livros. Maldita foi a hora em que encontramos aqueles quatro livros. Era um conjunto de sete grossos grimórios antiguíssimos. E em quatro deles, havia um rito escrito e desenhado separado em quatro partes, uma em cada livro. Encaixando-se.  

    Por décadas procurávamos por aquilo. Era o caminho, o acesso a tão desejada Cidade Onírica. A verdadeira. Não falsos caminhos nos quais já fomos levados certa vez. Sem entidades, apenas um caminho real, o quanto podia ser, para uma cidade rica, infinita, pura e perfeita. O lugar dos sonhos da mente humana e animal, onde os campos são verdes e imortais, onde não há dor, nem tristeza, apenas cor e vida. O paraíso alcançável, era como descreviam aqueles que passaram toda a sua vida a encontrar, e aqueles que estiveram nela não mais do que por um instante. Alguns apenas a chamavam de Cidade Onírica, outros de Terras dos Sonhos, ou Kadath.

    Chovia e trovejava em uma tarde solitária. Eu e meu colega juntamo-nos no celeiro com os quatro livros em mãos. Abrimo-los no centro de uma pequena mesa, cada um em sua página correspondente com os já bem apagados escritos e desenhos.  

    Tínhamos de ler juntos para que pudéssemos ir juntos para o tão esperado lugar. Com os livros postos em formato de cruz, acompanhávamos com os dedos indicadores encostados para que não nos perdêssemos. Agora sei que era apenas latim, mas parecia naquele momento ser uma língua ainda mais antiga e tribal, e que nossa leitura era um feito mágico.  

    Então nossos dedos e vozes já seguiam sozinhos, sussurrantes, arrastando-se das letras para os contornos de um desenho geométrico logo abaixo. O desenho iluminou-se de cores e brilho, de todos os tons de cores aos nossos olhos, como um pingo de óleo quando cai na água. Depois disso, passo a descrever o que se passou mutuamente. Com o que fatalmente ainda me lembro e mais o que meu colega me contou do que se lembra.  

    Acredito que nossos corpos ficaram ali, no celeiro, encostados nas cadeiras, adormecidos, talvez de olhos abertos, com a chuva batendo persistente no telhado baixo e nos trovões vez ou outra retumbando sobre nosso teto. Como um instrumento robusto agourando o anúncio do que estaria a acometer-nos no âmago de nossas mentes. No interior dos pensamentos despertados pelas palavras hipnóticas lidas e ouvidas de nossas próprias vozes ansiosas e íntimas.  

    Senti a chuva em meu rosto, mas não era a mesma chuva que lambia as telhas marrons do celeiro onde nossos corpos realmente estavam. Era uma chuva que não molhava meu corpo, porque não podia ver meu próprio corpo, apenas sentia os pingos refrescantes. Era quente, abafado e os pingos traziam um alívio emotivo, estimulante e reconfortante.  

    Andávamos em meio a folhagens gigantes, com cada folha muito verde maior que eu mesma seria. E os pingos da chuva batiam ritmados e harmônicos em cada folha gigante. Os baques eram calmantes e o frescor delicioso a nossas almas.  

    Depois, saímos em um campo aberto e aparentemente infinito e verde sem ver o final dele. Era sereno e pleno. Encantado, nas palavras de meu colega. Caminhávamos ou flutuávamos por ele, livres, leves e satisfeitos.  

    Avistamos juntos uma construção. Um magnifico castelo de todas as cores. Grandioso, de torres altíssimas, impossível de conseguir enquadrá-lo por inteiro em nossa visão. Em um segundo já estávamos perto e suas paredes eram de pedras preciosas, maciças, grudadas umas às outras como tijolos de várias formas. Topázios, jades, esmeraldas, safiras, rubis e tantas outras das quais as existências e cores eram quase impossíveis aos nossos olhares.  

    Havia uma grandiosa porta, e senti sem ouvir que meu colega disse com convicção, vamos entrar. Em concordância muda, mas totalmente comunicável, nos aproximamos e abrimos a porta.  

    Foi uma discrepância repugnante com tudo o que vínhamos vendo. Por dentro, o castelo era escuro, com paredes de madeira, com janelas trancadas, com gretas largas que eram a única iluminação dali.  

    Continuamos adentrando, mesmo sem nos ver tínhamos a plena consciência, se é que se poderia chamar assim, de que estávamos juntos, sempre. Não tinha um corpo para ver, mas sentia e agora sei que imaginava meus pés caminhando em um chão de tábuas de madeira. Via meus sapatos pretos de costuras brancas pisando nas tábuas e ouvia aquele barulho peculiar de baques e rangidos. E assim seguíamos pelos corredores vazios, escuros e assombrosos, era quase um labirinto.  Parecia-nos que caminharíamos ali para sempre e ainda assim não veríamos todos os cômodos do castelo infinito. 

    Chegamos a uma sala entulhada de objetos. Coisas velhas e enferrujadas, com camadas de pó sobre elas. Estátuas, telas sobrepostas, livros, muitos livros. Quase não havia espaço, apenas coisas presumidamente esquecidas e abandonadas. Como em um sonho, era impossível de observar todos os itens dali, pela quantidade surreal deles, por mais que tentássemos. Então ouvimos um barulho, meu colega descreve como um bater de asas de um pássaro assustado, saindo de um dos cantos daquela sala. Foi então que vimos.  

    Uma sombra-branca talvez seja a melhor forma que concordamos em descrevê-la. Era um vulto, indefinível e sem forma, que por vezes até parecia-se com uma pessoa. Algo que nos perseguia, que surgia e desaparecia, que assustava e assombrava, que nos deixava confusos. Algo que tínhamos medo de chamar de: fantasma.  

    Então notamos que algo estava errado ali. Porque não havia nada de agradável ali dentro. Porque sentíamos falta daquele ar refrescante lá de fora, da luz do campo, dos cheiros revigorantes, do cantarolar dos pássaros invisíveis. Aquela poderia ser a tão esperada Cidade Onírica? Era a pergunta que passava em nossas mentes libertas.  

    Daí em diante nos lembramos apenas de correr. Entrar em cada corredor que poderia levar a outro lugar, a outro corredor escuro de madeira. Cômodos vazios, cômodos cheios.  

    Subimos uma escadaria, e entramos em um pequeno cômodo lá em cima, que parecia estranhamente ser o último do castelo. De telhado pontudo com diversas plantas mortas penduradas de cabeça para baixo nas paredes e teto. Era como andar em meio às árvores secas com folhas de todos os tipos e tamanhos batendo em nossos rostos inexistentes. O lugar era fechado por aquelas plantas mortas e apavorantemente escuro para nós. Alguma coisa ali nos perseguia e vimos que eram vários daqueles espectros brancos.  

    Havia no chão um espelho redondo, de bordas enferrujadas, encostado a parede, paramos em frente a ele e vimos o reflexo quase nítido das coisas que nos seguiam. Era como uma falha de luz, um efeito químico, uma aurora esbranquiçada e sem forma que fazia estalidos e barulhos que nos assombrava. Mais uma vez nos pegamos tentado fazer a descrição fácil e verídica de fantasmas. Sabemos que era o que eram. E que fugíamos deles, foi só o que fizemos enquanto estivemos lá. Fugimos de fantasmas. Nossos próprios fantasmas, logo entendemos.  

    Passava-se à frente de nossos olhos mentais as imagens das paredes de tábuas de vários tons de madeiras emendadas, corredores intermináveis, curvas, portas, sombras. Enquanto corríamos encontramos uma porta baixa e senti meu corpo invisível caindo em um quarto sem chão.  

    Havia ali um buraco, um quarto incompleto, sem o chão. Onde caímos pelo meio da estrutura elevada do castelo até um solo de terra finalmente. Com apenas uma fresta para passarmos e sairmos no campo aberto novamente.  

    Nós tivemos a impressão de nos espremermos e agacharmos para sairmos para a claridade. Foi como renascer, foi como ressurgir ou ressuscitar, poder sentir o momento do nascimento primordial e instintivo.  

    Saímos na claridade em um capim molhado e aprazível. Dali seguimos para a única direção possível a nós, a beirada de um precipício. Encostados nas paredes de pedra do lado de fora do castelo não tão mais atraente como antes. Era enigmático como poderíamos sentir o medo e o perigo de um precipício onírico, mas íamos com passos invisíveis e cautelosos encostados nas paredes para podermos sair dali.  

    Apesar disso, íamos confiantes, porque alguns dos relatos que ouvimos sobre a viagem para a Cidade Onírica, o viajante tinha de passar por algumas provações antes de chegar a tão esperada jornada. Sentimos naquele momento que aquele era nosso caminho de provação e que só então passando por tudo aquilo, encontraríamos a verdadeira e infinita cidade.  

    Chegamos então a um pomar de variedades indescritíveis de árvores frutíferas e perfumadas. Sentimo-nos bem e pudemos ter a sensação de nos darmos as mãos e respirarmos fundo aquele ar puro, fresco e de aroma adocicado, ouvindo novamente o canto dos pássaros.  

    Dali, seguimos para um campo montanhoso, de árvores tão grossas que não poderíamos abraça-las, e tão altas que não conseguíamos ver as suas copas. Havia uma névoa agradável antes delas. Como nas montanhas mais impossivelmente altas que poderíamos chegar. Estávamos em um tesouro recém-descoberto, esquecemo-nos completamente do castelo.  

    Entramos então em uma floresta. Ali nossos espíritos quase misturaram-se aquela aura. Verde, gloriosa, alucinante, selvagem e pura. Uma mata enevoada e mágica, muito mais do que onírica. Nenhum sonho poderia sonhá-la. E ali sentimo-nos em casa. Conectados, homogeneizados com o lugar. E ali percebemos que havíamos encontrado o verdadeiro lugar onírico tão desejado, tão inalcançável. E ali, concordamos que poderíamos ficar, para sempre.  

    Mas, de repente, surgiram os vultos brancos, os repugnantes e discrepantes espectros misteriosos. Logo ali na floresta tão mágica e divina para nós. Eles transpassavam as árvores e a única coisa que sentíamos que deveríamos fazer era fugir. Deixar as nossas costas invisíveis, a floresta tão encantada.  

    Novamente no campo montanhoso de árvores gigantes, nossas mentes conectadas pararam de fugir e tornaram-se perceptíveis finalmente. Algo se elucidou em nós e resolvemos ficar ali, estáticos sem caminhar ou flutuar para nenhum lugar. E deixar que os vultos

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