Pedra antiga da tristeza
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Sobre este e-book
Ana Paula Moreira expõe as mazelas dos abandonos da vida nas frestas de uma narrativa construída para desafiar o leitor, tanto em conteúdo quanto em forma. Seus códigos de linguagem são como segredos contados ao pé do ouvido: envolventes como Das Dores, a personagem que é o próprio Salão, para onde convergem e de onde se expandem os outros personagens que orbitam Sasha Vânia.
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Pedra antiga da tristeza - Ana Paula Moreira
1. Qualquer solidão [Das Dores]
O CACHORRO atravessou minhas pernas assim que a mulher esguia abriu a porta devagar. O latido era estridente como noite de feira com roda gigante em cidade do interior. Eu não queria saber disso, mas sei por que nasci num lugar assim, pequeno, empoeirado, arrancado do resto do mundo.
Por isso eu estava ali: pra fugir.
Agora aquele cachorro.
E o sangue.
A mulher me sorria como se não fosse incomum abrir a porta pra uma desconhecida enquanto um cachorro com a boca ensanguentada habitava o espaço entre ela e eu. Disse na mesma frase e sem tomar fôlego que
o cachorro se chamava Magro morava ali e era dela mas também de todo mundo e tinha aprendido essa mania de perseguir passarinhos como se isso fosse um tipo de dança com a morte e oi meu nome é Sasha Vânia.
Foi assim que eu conheci o amor ao mesmo tempo em que ouvi o silêncio na minha voz perguntando se a morte molhada no sangue era capaz de atrapalhar meu plano de
fuga.
Ela tirou a mala surrada das minhas mãos com um toque tão ameno que parecia um desenho feito com um pincel invisível e
eu senti pela primeira vez seu perfume de dama da noite açucarada.
Quando penso sobre isso agora me pergunto se tudo não era um presságio.
Mas naquela hora eu só queria saber como o mundo podia ser tão vasto a ponto de dentro dele caber alguém que se chamasse Sasha Vânia e se movimentasse como um continente visto do espaço
imensa e delicadíssima.
Depois que ela fechou a porta, o cachorro correu levando o sangue pra além da vista, ficamos as duas olhando o Salão de madeira escura com muitas cadeiras de ponta cabeça em cima de mesas que pareciam mais velhas do que deveriam.
Sem mexer a cabeça ela me disse que estávamos em
casa.
Foi quase engraçado escutar alguém dizer aquela palavra que custou a ser construída em mim só pra depois ser despedaçada como um brinquedo de montar.
Porque tudo o que eu era também estava pequeno, empoeirado e nunca imaginei pertencer de novo a um pedaço do mundo, muito menos a uma casa.
Eu só estava ali porque uma prima distante chamada Elisângela pensou em mim quando o dono do Clube de Danças perguntou se ela conhecia alguém que aceitasse muito pouco pra trabalhar servindo bebidas naquele lugar que Sasha Vânia me oferecia como casa.
Me lembro de como eu sorri ao ler essas duas palavras escritas assim na sequência:
muito pouco.
Aquela minha prima só tinha me visto uma vez na vida, o que é tempo suficiente pra que uma pessoa que nunca teve nada reconheça outra que aceite muito pouco.
É que Elisângela trabalhava na casa do dono do Clube e embora não se lembrasse de mim também não tinha esquecido; mandou uma carta me dizendo que se eu quisesse sair daquele fim de mundo a hora era
agora.
Então, segurei com força a porta que o destino abria como só faz quem já sentiu tanto medo que desistiu de esperar.
Sasha Vânia me apresentou às meninas que se juntaram ao meu redor, um jardim que ignorava as estações, florescia a despeito do tempo. Fui ouvindo uma fileira de nomes, Clara, Liz, Júlia, Rita, Simone, Laís, os sorrisos tímidos despontando,
elas
me ensinaram tudo o que eu precisava saber caso quisesse durar ali. Sasha falou umas palavras bem devagar com a língua molhando seus lábios de cereja: eu deveria saber quando servir um pouco mais de bebida e um pouco menos de paciência, precisava dominar a arte de enganar muitos homens com o mesmo olhar porque o segredo era sempre fazê-los acreditar que o mundo que nunca foi meu existia só pra atender aos caprichos deles.
E se tudo fugisse do controle, as vozes se excedessem, os humores se alterassem, antes do pavor eu deveria sentir a urgência de colocar no rosto uma marca que servisse só pra mulheres entenderem meu pedido de
ajuda.
Qualquer uma faria o necessário.
Mas, principalmente ela, a dama da noite açucarada que além de tudo também dividiu comigo o cubículo que era o seu quarto e aquela não foi a primeira vez que eu pensei que Sasha Vânia entregava o amor que ela nunca teve só pra ver nascer ao seu redor uma cidade feita de gente cansada de fugir, um tipo de descanso depois da batalha, um desejo de conforto mesmo que remendado.
Ela era os pulmões daquele espaço e carregava um sol inteiro no peito pra todas as vezes que a gente se apagasse por dentro. Mesmo que pelos motivos errados todo mundo só frequentava aquele Clube por causa da arrebatadora existência dela.
Sasha Vânia dançava desde criança e também estava ali fugindo da casa que não teve como se qualquer solidão fosse melhor do que saber o gosto que faz o sangue na boca depois de um
tapa.
Uma amizade estreita foi se infiltrando entre nós e assim eu descobri que o continente que ela era já na infância foi crescendo, flutuando, aumentando enquanto passava as noites escondida nas coxias do Clube de Danças imitando os passos das mulheres que se revezavam no palco encontrando um jeito de dançar
uma quantidade infinita de dor.
Aquele negócio inesperado acabou servindo tanto à mãe de Sasha, que não suportava a filha, quanto ao dono do Clube, que logo percebeu na menina um talento avantajado que não sabia se atribuía ao cheiro adocicado ou ao plié finíssimo que começava atrás da orelha e terminava na perfeita inclinação dos calcanhares.
Nada disso importava à mulher que dançava mesmo só pra convencer seu próprio coração
a bater por mais um dia.
E toda noite, já tão tarde que quase era dia, ela subia no palco sozinha.
Os cabelos, um véu escuro, desciam tingindo a pele e a minha dama vestia só um fio dental cor de prata como se a lua também emprestasse pra ela sua luz acinzentada.
Quando Sasha Vânia erguia a mão ninguém respirava e eu ficava ali repetindo uma espécie de oração que fosse capaz de dizer a ela
tudo o que deus deveria ter dito, mas não teve tempo.
Naquela noite, na última noite, o que ela fez não foi uma
dança.
Era qualquer coisa ainda por nomear.
Um ensaio do impossível.
O corpo inteiro da mulher