Miragens
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Sobre este e-book
O panorama doméstico desdobra-se diante do olhar da persona-autora, convidando-a à exploração, à dedicação mais demorada aos recantos, objetos ou eventos ali adstritos. Valendo-nos da voz de Quintana ao dizer: "Amar é mudar a alma da casa", Persona faz sentir que escrever também é mudar a alma da casa.
O despovoamento das ruas e cidades projeta a força enigmática do deserto para dentro da alma. Os vazios passeiam. É a hora de ir e vir pelos vastos terrenos da morada, por esses desertos não materializados, mas que ofertam inúmeras experiências estéticas e permitem capturar, a cada piscar de olhos, as mais terrivelmente corriqueiras incitações.
Lucinda Persona
Nasceu em Arapongas, PR. Em 1965 transferiu-se com a família para Cuiabá, Estado de Mato Grosso, onde vive. É poeta e ficcionista. Bióloga pela Universidade Federal de Mato Grosso, mestre em Histologia e Embriologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com estágios profissionais na Universidade do Chile. Professora na UFMT e Unic, até se aposentar. Na poesia é autora de Por imenso gosto (1995, 2018), premiação UBE; Ser cotidiano (1998); Sopa escaldante (2001), premiação UBE; Leito de acaso (2004); Tempo comum (2009); Entre uma noite e outra (2014) e O passo do instante (2019). Tem publicações na literatura infantil, em revistas literárias e integra antologias de conto e poesia. Pertence à Academia Mato-grossense de Letras.
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Miragens - Lucinda Persona
O céu roda para oeste:
as pontes vão para as águas.
O vento é um silêncio inquieto
com perspectivas de barcos.
Cecília Meireles
Perspectivas
Diário de bordo
Meus escritos arrastam tudo o que eu vivo e não vivo em toda esta viagem de quarentena a bordo desta casa tão longe da veracidade do mar.
Nos plantões diuturnos, desde a proa, enquanto contemplo o mar ausente, aprendo a serenidade que não está em parte alguma. E desaprendo gaivotas. Evaporam-se as certezas, as dúvidas aumentam. Encontro dificuldade para desviar o coração dos quadros estatísticos e das porcentagens. Esvazia-se o mundo e acompanho a condensada sombra dos afogados. Que dura, terrível operação aritmética da subtração.
De sala a sala, de janela a janela, a despeito da teimosa tristeza, festejo pescados, viradas do tempo, horizontes que os dias aprontam. E recolho notícias de todas as partes do mapa-múndi que posso avistar daqui deste sobrenatural navio-morada.
No convés, a morte das coisas.
Com mãos nodosas, unhas crescidas, não por negligência, mas por certo entorpecimento, registro tudo: imagens, sons, sabores, odores, percepções táteis. Os relatos, um após outro, vão lotando o diário de bordo. E dia a dia, ao próprio coração, submeto os fatos deste extenso cruzeiro. Viagem na qual zarpei em meados de março de um ano funesto e consabido, para atravessar esse mar bravio dos aerossóis.
Tempo aniquilante, de pavores e perdas. Milhares não resistiram, milhares naufragaram. E agora, um ano depois, de boca e narinas ainda tapadas por máscara, sigo nesta rota que me parece interminável, cuidando do que esteja a bombordo ou estibordo.
Relanceio a vista pela embarcação. Economizo passos para onde quer que eu não vá. Esquadrinho formas abstratas e concretas. O encanecido marinheiro que há pouco vi sentado em frente da televisão, lutava contra um cochilo em hora de calmaria.
Sigo viagem sem ter visto o porto a se afastar. Deixo o barco correr nos termos náuticos, indo para barlavento ou sotavento. O ar tênue do puro faz-de-conta me basta para navegar na mutante atmosfera em que se embala a terra. Minha escrita, numa estranha compensação, vai arrepanhando tudo, mesmo os corpos que não estejam à vista.
Palavras e palavras sobrenadam, vacilantes, confundem-se nas espumas. Juntam-se em possibilidades.
Cada palavra é uma pequena ilha densamente habitada por miragens.
O enlevo de procriar
Estou exatamente no lugar que escolhi para não sucumbir.
Para não sucumbir.
Tanto tempo aqui, sentada a esta escrivaninha, lotada de livros empilhados e outros objetos: folhas e folhas em branco e rabiscadas, lápis, canetas, computador. Até parece que faço parte da mobília do escritório.
Todos os dias, espero que se abram as portas da tarde e aqui permaneço para a escrita sem fim. Como se isto não bastasse, eu queria mesmo era passar todos os meus dias e serões neste lugar – o que não me deixa dormir. Impossível desfazer-me deste