Kali Ma
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Kali Ma - Nega Lilu Editora
SUMÁRIO
Apresentação
KA
A QUEDA
GOTEJAMENTO
ANO BISSEXTO
A HORA DA VERDADE
COBAIA
CÚMPLICES NO AZAR
PROTAGONISTA O TEMPO TODO
LI
NOVOS TEMPOS, NOVAS ESTRATÉGIAS
SANGUE DE BOI
REI BOBO
O APOCALIPSE É AGORA
MA
LEGÍTIMA DEFESA
O DESPERTAR
A FILHA E AS ÁGUAS
PLANOS PARA O FUTURO
ESTAVA TUDO ESCRITO NAS LETRAS PEQUENAS
Conheça as autoras e autores de KALI MA
#povoqueescreve
Landmarks
Cover
Apresentação
KALI MA é um exercício de cocriação do Coletivo e/ou, resultado de uma ação em rede chamada #povoqueescreve, realizada durante a segunda edição do Festival Leitura & Resistência, que contou com o apoio da Lei Aldir Blanc, por meio da Secult Goiás.
Mais de 20 autoras e autores do coletivo se revezaram, a cada duas horas, entre 24 de março e 3 de abril de 2022, na escrita (a muitas mãos) de textos em prosa. beta(m)xreis e Rico Lopes orquestraram este tempo/espaço criativo, delineando bordas e permitindo a instalação do caos também.
Então, todo texto publicado em KALI MA tem autoria conjunta. E, sendo assim, em alguns contos, será possível perceber clara mudança de estilo a cada dois ou três parágrafos. Porque nesta vivência, a escrita permitiu-se às quebras, ainda que a coerência da narrativa tenha sido considerada no processo de editoração deste livro, que conta com a coordenação editorial de Larissa Mundim.
A valorização da narrativa acabou provocando a exclusão de alguns conteúdos que, acreditamos, terem cumprido seu ideal principalmente como prática literária. Porque #povoqueescreve é, antes de tudo, uma atividade formativa. E nos envolveu com excitação!
KALI é uma das formas de Devi (ou Shakti), que é o aspecto feminino do Divino na tradição tântrica hindu. Deusa guerreira, cuja imagem é representada com inúmeros braços. Em campo de batalha, ela combate as ilusões e pisoteia o ego e a ignorância. Quando o nome da divindade é acompanhado do sufixo MA, é referida como deusa mãe, criadora: KALI MA.
Realizada pela negalilu editora, #povoqueescreve é uma ação derivada da performance #povoquelê, realizada em 2019, durante a primeira edição do Festival Leitura & Resistência. Idealizada por Larissa Mundim como intervenção urbana, na ocasião, reuniu o coletivo e/ou — além de outros entusiastas do Livro — em uma vigília de 24 horas de leitura (12 horas + 12 horas), no Centro de Goiânia, no cruzamento das avenidas Araguaia e Anhanguera.
A editora
A QUEDA
O celular vibrava em sua escrivaninha. Cinara queria dormir mais um pouco, custou a acreditar que seu sono havia sido interrompido. Enxergou as luzes que entravam pelas frestas da janela. Eram pequenos feixes sinalizando a despedida da penumbra. A jovem quis se encolher e sumir dentro do cobertor. Esticada, ela mal cabia nele, o seu companheiro há pelo menos uma década. Cresceu dentro daquela mantinha, sua confidente de todas as fases, entre os cinco e os 17 anos. Seus medos, receios, expectativas e até grandes e dolorosas desilusões amorosas foram testemunhados pelo seu cobertor sempre fiel.
O quarto insistia em dilatar o tempo com jogos entre a penumbra e as luzes. Seus ossos davam notícias de que o dia não seria nem tão quente e nem tão frio. Esticou as pernas compridas e bem torneadas para uma moça magra e sem seios. Nada no corpo lhe definia as curvas que tanto ansiava por ter. O que tinha de maior valor, eram os seus cabelos, vastos e volumosos, que havia raspado no dia anterior. Passou a mão pela cabeça pelada. O telefone vibra novamente e, dessa vez, ela atende:
— Alô! Hum… Tá! Eu vou!
O telefonema era da sua mãe, ligando do hospital e pedindo que ela fosse ao apartamento de sua tia escolher a roupa do enterro. Cinara se sentiu, primeiro, aliviada. Desligou o telefone. Finalmente, sua tia havia morrido! Sentiu então um misto de alívio e raiva, muita raiva. Sabia que este dia chegaria. No dia anterior, havia passado no hospital para que sua tia a visse sem os cabelos longos. A tia abriu os olhos e a observou de pé na cabeceira da cama. As duas se olharam e Cinara intuiu que era a despedida, sorriram uma para a outra como há muito não faziam.
Trêmula, Cinara pensou em tomar um banho para alcançar um pouco de calma. Sempre ouviu a tia dizer que era melhor uma boa máscara do que se colocar tão exposta ao mundo. Se bem que lhe parecia que a tia usasse, na verdade, uma carapaça. Já no box, ensaboava os ombros, a água caía. Ter sido criada por ela foi, certamente, duro. Precisava limpar os azulejos, se percebeu falando em voz alta, e olhando tudo. E a tia lhe dizia que o excesso de pressão poderia fazer um diamante. Assoou o nariz. A mãe, ocupada em viajar pelo mundo, encontrar a si mesma, e toda essa balela. Tentou chorar, não conseguiu. Palavras da tia ecoavam em sua cabeça enquanto Cinara alisava sua recém-raspada superfície. Sensação boa, aquela, libertação em contraste. Sentia a água como nunca. Saiu do banho, escolheu seus brincos, passou perfume. Um pouco de não saber quem poderia ser. A mãe como sua sombra, a tia como seu espelho? Esforçou um sorriso tímido. Parecia que a raiva começava a lhe dar outro sentido. Algo como um vulcão que vai se abrindo, do nada, no solo, tão inesperadamente.
Pediu um carro para buscá-la e encontrou um motorista dos mais falantes. Antes de sair de casa, de súbito, meteu o cobertor na mochila. O motorista comentava de todos os jogos de futebol da temporada. Falava bem do presidente. Cinara, enojada, pediu licença, e disse que ia ouvir música. Escutou aquela que falava sobre a queda de reis, na voz de Elis. Sua mãe lhe deixou marcas profundas. A tia sequer ouvia música. Tinha sido criada num lar cinzento. Usava seus brincos de penas berrantes, recém-comprados. Pensou nisso como triunfo e afronta. Ainda não havia definido a roupa da tia para o velório. Ousaria se vingar de quem amava? O amor tem mesmo tons estranhos nas entranhas. A questão cortava o ar. Abriu sua mochila, tocou o cobertor.
Cinara