Justiça Parcial: UCG EBOOKS, #16
De Noura Erakat
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Sobre este e-book
A justiça na questão da Palestina é frequentemente encarada como uma mera questão legal. Contudo, ao centrar a atenção sobre momentos-chave tais como a Declaração de Balfour de 1917 ou as mais recentes guerras em Gaza, Noura Erakat mostra como a manipulação estratégica do direito internacional tem sido instrumental na despossessão e alienação dos palestinos em relação à sua terra. Por outro lado, nenhum dos maiores desafios do conflito israelo-palestino foi resolvido através da intervenção judicial: o direito não conteve a expansão dos colonatos de Israel; as leis de guerra foram impotentes para evitar o elevado número de mortes e destruição durante as diversas ofensivas militares de Israel na Faixa de Gaza; a solução de dois Estados dos Acordos de Oslo está defunta.
Ao longo de quase um século, Israel tem com grande eficácia conseguido mobilizar o direito internacional na defesa dos interesses sionistas, tendo, a partir de Oslo, logrado juntar a este processo a liderança palestina. Como a autora expõe, o direito internacional depende do trabalho jurídico, i.e. o seu significado e aplicação dependem da intervenção política tanto dos Estados como de indivíduos. Apesar de Israel ter em anos recentes levado a melhor, a autora afirma resolutamente como o direito internacional permanece uma essencial alavanca na prossecução das causas da liberdade e justiça, mas na condição de ser mobilizado em conjunção com um programa político capaz de eficazmente denunciar o regime colonial de ocupação instalado entre o Mediterrâneo e o rio Jordão, que fragmenta a comunidade palestina, divide os palestinos e procura desapossar-los do sentido de pertença à terra. Neste excerto de Justice for Some, Justiça Parcial, a autora explora o potencial de uma política e direito que, para palestinos e árabes, possa constituir um reforço mútuo da liberdade, o que implica trilhar um caminho que permanece em aberto.
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Justiça Parcial - Noura Erakat
NOURA ERAKAT
Justiça Parcial
Um excerto
Tradução Jorge Leandro Rosa
Edição João Francisco Figueira e Vítor Silva
KKYM + P.OR.K
Lisboa, 2021
1ª edição portuguesa © KKYM + P.OR.K, 2021. Todos os direitos reservados.
ÍNDICE
1. Um panorama
2. As políticas de aquiescência e o Estado fantasma
3. Lições da Namíbia
4. Uma alternativa baseada em direitos: ultrapassar a armadilha da soberania
5. Horizontes de liberdade para além do Estado
Bibliografia
Ficha técnica
Noura Erakat
(un)common ground
1. Um panorama
Em 2018, a perspectiva de um Estado palestino soberano e independente já estava obsoleta. Segundo números do final de 2015, a população de colonos israelenses na Cisjordânia atingia as 600.000 pessoas, um aumento de 200% desde o início do processo de paz de Oslo, em 1993.¹ Os colonatos israelenses dividem a Cisjordânia em mais de vinte seções territoriais não contíguas, separando aproximadamente três milhões de palestinos em outros tantos grupos apartados entre si, minando assim qualquer sentido de contiguidade territorial ou coesão nacional. Em 2000, Israel começou a construir uma barreira de separação, ou muro, alegadamente para deter o fluxo de bombistas suicidas palestinos no interior das fronteiras não declaradas de Israel.² Quando o muro ficar concluído em 2020, 85% da sua extensão atravessará a Cisjordânia e na prática confiscará 13% deste território, convenientemente incluindo os maiores blocos de colonatos israelenses. A lei militar de Israel proíbe a presença e a deslocação de palestinos entre a Cisjordânia e Gaza, o que consolida a sua fragmentação política e geográfica (veja-se o mapa das Restrições à Acessibilidade). Em Gaza, Israel submeteu quase dois milhões de palestinos a medidas de controle e tem-nos mantido cativos sob cerco terrestre e bloqueio naval. Os palestinos não podem viajar livremente para Jerusalém Oriental e os 300.000 palestinos que vivem em Jerusalém Oriental são sujeitos a uma agressiva campanha de despossessão dos seus mais elementares direitos.³ Desde 1948, quase dois terços dos palestinos foram forçados à diáspora um pouco por todo o lado, onde se incluem cinquenta e oito campos de refugiados no mundo árabe, a quem tem sido negado o direito de retorno. Tendo torpedeado a possibilidade de um Estado palestino, Israel é agora a única instância a exercer autoridade entre o Mediterrâneo e o rio Jordão.

image1.jpgRestrições à Acessibilidade, 2017.
Situação em 2017 relativamente ao muro de separação, checkpoints, blocos de colonatos, anexação de Jerusalém Oriental, circunvalações rodoviárias, áreas militares e Áreas A, B e C dos Acordos de Oslo que na Cisjordânia destroem a contiguidade territorial bem como a coesão nacional da população palestina.
Fonte: ONU, OCHA-OPT, West Bank Access Restrictions Map, outubro de 2017 (em https://www.ochaopt.org/content/west-bank-access-restrictions-october-2017).
O trabalho jurídico⁴ tem sido essencial para o projecto expansionista de Israel. Tanto os corpos judicial e diplomático, como os conselheiros legais civis e militares têm compreendido as ligações íntimas do direito com a política e têm utilizado as mais diversas peripécias diplomáticas, militares e económicas do Estado para realizar o trabalho jurídico que permite alcançar as suas ambições políticas. Depois da Primeira Guerra Mundial, uma excepção soberana designou a Palestina como território destinado à colonização judaica e engendrou o consenso jurídico especializado que tem vindo a respaldar o apagamento da comunidade política palestina.⁵ Este regime, em conjunto com três décadas de patrocínio imperial britânico, permitiu que Israel afirmasse pela força a soberania judaico-sionista de tipo colonial sobre 78% do Mandato da Palestina em 1948. Israel serviu-se da ficção da não existência nacional palestina, em conjunto com a estrutura de emergência permanente entre 1948 e 1966,⁶ para transformar a própria população palestina autóctone em indivíduos ausentes, mesmo se presentes, cujas terras pudessem ser arbitrariamente confiscadas para aí estabelecer colonatos judaicos. Quando pôs um termo ao regime de emergência, Israel inscreveu no direito civil a subordinação dos palestinos, enquanto cidadãos de segunda classe. Em 1967, Israel implantou um mecanismo político-legal que também estava fundado na não existência nacional dos palestinos, para assim estabelecer uma ocupação com base em premissas sui generis que facilitassem a sua contínua apropriação de terras na Cisjordânia e em Gaza. O quadro estabelecido pelos Acordos de Oslo de 1993 engendrou mais um regime especializado que permitiu que Israel continuasse a sua expansão como regime colonial de ocupação,⁷ desta vez sob a aparência do processo de paz. Desde 2000, também em acordo com reivindicações similares de singularidade, Israel criminalizou todo o uso palestino da força. Ao mesmo tempo, o Estado expandiu o seu direito a usar a força contra os palestinos e, nesse processo, formulou novas leis do conflito armado.
O sucesso de Israel teve uma consequência indesejável: governa um regime de apartheid. Sem uma separação entre Israel e os Territórios Palestinos Ocupados, Israel tem agora de se confrontar com a realidade de que a sua jurisdição contém uma significativa população palestina autóctone. De acordo com o Bureau of Statistics, o Instituto Nacional de Estatística de Israel, desde outubro de 2012, aproximadamente 5,9 milhões de judeus israelenses, incluindo a população de colonos, e 6,1 milhões de palestinos viviam no conjunto formado por Israel, a Cisjordânia e a Faixa de Gaza.⁸ As projecções da população indicam que, por volta de 2035, os judeus israelenses irão constituir apenas 46% da população total.⁹ A inclusão dos palestinos de Gaza e da Cisjordânia como cidadãos iria minar a maioria demográfica dos judeus no interior das linhas do armistício estabelecido em 1949 (a Linha Verde). O actual estado de coisas, em que Israel governa os palestinos sob ocupação, ao mesmo tempo que os exclui da cidadania, constitui o exemplo acabado de um regime que administra sistemas legais distintos com base nas suas próprias distinções raciais, ou seja, um regime de apartheid.¹⁰
Os predecessores do Primeiro-Ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, conheciam os perigos colocados por esta bifurcação legal. Durante o seu mandato como Primeiro-Ministro, Ehud Olmert comentou que, caso não se conseguisse criar um Estado palestino, Israel seria forçado a «enfrentar uma luta de tipo sul-africano pela igualdade do direito de voto e