A Branquitude como Propriedade em Israel: UCG EBOOKS, #15
De Noura Erakat
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Sobre este e-book
Neste ensaio convocam-se as categorias propostas em Cheryl I. Harris, «A Branquitude como Propriedade» para ler a realidade israelense, salientando-se que o valor atribuído à nacionalidade judaica não é simplesmente uma questão de judeu versus não-judeu. Com efeito, a branquitude reflete uma ordem europeia que reproduz e incorpora as ideias orientalistas e a lógica de exclusão na base do anti-semitismo europeu. O Estado de Israel continua a aplicar estas ideias aos mizrahim, judeus do Médio Oriente. Os mizrahim são o objeto do projeto de modernização do sionismo, que, por um lado, exige uma violenta bifurcação da sua identidade árabe e judaica e, por outro, os marginaliza por não apresentarem conformidade com a matriz europeia adoptada.
Consolidada a mitologia de etno-nacionalidade baseada na experiência do cidadão judeu europeu, o projeto de construção da nação exclui completamente o palestino que, como o judeu oriental, é considerado «incivilizado». Mas, ao contrário do mizrahi, o palestino não é elegível para reabilitação – deve ser removido, diminuído e contido, geográfica, política e socialmente. A lei facilita esse processo ao despojar e deslocar o palestino e, simultaneamente, dá à nacionalidade judaica um valor cobiçado, que espelha os ideais do Iluminismo europeu de civilização e reflete a superioridade da branquitude. A descolonização é necessária para a autodeterminação palestina, porém, ela permite ainda mais potenciar a emancipação judaica para além do Estado.
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A Branquitude como Propriedade em Israel - Noura Erakat
NOURA ERAKAT
A Branquitude como Propriedade em Israel
Restabelecimento, reabilitação e remoção
Tradução Jorge Leandro Rosa
Edição João Francisco Figueira e Vítor Silva
KKYM + P.OR.K
Lisboa, 2020
1ª edição portuguesa © KKYM + P.OR.K, 2020. Todos os direitos reservados.
ÍNDICE
1. Introdução
2. O Iluminismo europeu entrincheira a exclusão e a subjugação dos judeus
3. O sionismo e os judeus do Médio Oriente: bifurcações violentas
4. O sionismo e os palestinos: remoção, desapossamento e contenção
5. Conclusão
Bibliografia
Agradecimentos
Ficha técnica
Noura Erakat
(un)common ground
1. Introdução
O influente texto de Cheryl Harris, «A Branquitude como Propriedade»,¹ abre com uma história na qual a sua avó é tomada por branca. A habilidade desta avó para atravessar linhas de demarcação legais permitiu-lhe ter acesso a oportunidades de emprego, espaços físicos e contextos sociais apenas acessíveis aos brancos nos Estados Unidos de Jim Crow dos anos 1930. No entanto, o seu fenótipo não era o suficiente para a qualificar e para a inserir na branquitude. Ao reificar a branquitude na lei, a elite política, desejosa de proteger o seu próprio controlo, tornou-a impermeável a estas transgressões informais.
No seu texto axial «Reflexões de uma judia árabe», Ella Shohat evoca de modo similar a história da sua avó judia iraquiana para poder descrever a construção das categorias raciais em Israel durante o seu estabelecimento, em 1948. Nessa altura, foi com avidez que os pioneiros sionistas estabeleceram um Estado-nação para os judeus, numa tentativa de escapar às perseguições europeias. Contudo, em vez de desafiarem a disposição racista e discriminatória que os excluía de uma integração plena na sociedade europeia, os sionistas tinham internalizado e reproduziram essa disposição exclusiva, no seu esforço para finalmente se tornarem europeus e alcançarem a aceitação na Europa. Com efeito, já muito antes do estabelecimento de Israel, os sionistas tinham adoptado a mitologia étnico-nacional do judeu novo e universal que era branco e europeu. Sucedeu que, factualmente, Israel excluiu e subalternizou o judeu do Médio Oriente, que necessitava de reabilitação cultural e de desenvolvimento para se tornar um israelense como deve ser: branco e europeu. Shohat descreve o que foi um chocante episódio para a sua avó quando tem a sua primeira experiência da sociedade israelense nos anos 1950:
Estava convencida de que pessoas com aspecto, língua e hábitos alimentares tão diferentes – os judeus europeus – eram, de facto, cristãos europeus. Para a sua geração, a judaicidade estava inextricavelmente associada à orientalidade. A minha avó, que ainda vive em Israel e continua em grande medida a comunicar em árabe, teve de ser ensinada a falar de «nós», os judeus, e deles, os árabes.²
De modo a tornar-se israelense, a avó de Shohat, assim como outros judeus do Médio Oriente, foi forçada a expurgar a sua condição étnica, linguística e cultural, assumindo e reproduzindo assim a difamação das suas origens no Médio Oriente. Para os judeus do Médio Oriente que emigraram para Israel, o custo da passagem foi o equivalente a um exercício de «auto-devastação».³
No entanto, o autóctone palestino, desprovido de nacionalidade israelense, não era sequer elegível para esse processo de auto-destruição. Em termos linguísticos, culturais e sociais, era quase impossível distinguir o autóctone palestino do judeu árabe. Daí que, à semelhança do judeu do Médio Oriente, o árabe (muçulmano, druso, cristão ou ateu) palestino tenha sido relegado para uma categoria inferior, denegrido e empurrado para as margens da estrutura da modernidade. Mas ao contrário do judeu do Médio Oriente, o autóctone palestino era inelegível para poder vir a tornar-se europeu ou para se aproximar da branquitude, uma vez que a definição legal de quem era um nacional judeu era muito estreita. Daí decorreu que, dentro de um contexto colonial apoiado em colonos que tentam suplantar as populações autóctones e recriar significados históricos e simbólicos para essa terra, o autóctone palestino seja sempre um obstáculo. A única solução é removê-lo/a, contê-lo/a ou torná-lo/a invisível.
O sionismo transformou necessariamente muitos tipos de judeus e os seus diversos marcadores de identidade numa categoria nacional homogeneizada em que é a lei civil, e não a doutrina religiosa, que define quem é judeu. Sem essa transformação, o judaísmo teria permanecido uma religião em que a pertença era definida pela linhagem e/ou pela adesão, mais do que por uma nacionalidade que pudesse ser reconhecida e regulada pela burocracia do Estado. A fim de assegurar o valor da nacionalidade judaica no quadro de um Estado, a lei começou por bifurcar a cidadania israelense e a nacionalidade judaica. Em segundo lugar, a lei alargou uma série de direitos e privilégios potenciais a cidadãos judeus independentemente da sua localização geográfica, seja ela dentro ou fora do Estado. Ao mesmo tempo, colocando-os em desvantagem, a lei privou os palestinos dos seus direitos e isto sem ter em conta a sua situação geográfica, fosse ela no interior do Estado, nos territórios a ocupar subsequentemente ou no exílio para o qual Israel baniu o autóctone que se considerasse pertencer a uma população em excesso. Agindo assim, Israel tanto consegue alcançar a supremacia de uma nacionalidade judaica vista pelo prisma de uma superioridade branca europeia, como facilita a expropriação, remoção e confinamento dos autóctones palestinos.
A lógica dos ideais iluministas da Europa favoreceu tanto a reabilitação dos judeus árabes como o continuado apagamento dos palestinos. Fundados em conceitos da ciência e da razão, os ideais iluministas construíram um protótipo universal marcado por características próprias do cristianismo da Europa ocidental. Enquanto elemento da ordem natural, demonstrável em termos de conhecimento científico, o cristão europeu ocidental, branco e rico, reinou como suprema manifestação da humanidade. Desde que a ciência afastou a religião como explicação da superioridade cristã e branca, veio a colocar no seu lugar o discurso orientalista que encontrava justificação na ordem natural. Ao mesmo tempo, o Iluminismo secular tornou os judeus assimiláveis por meio de um processo de engenharia social. A inclusão requeria a obliteração da diferença. Ao mesmo tempo que os sionistas renunciavam às aspirações assimilacionistas na Europa, internalizavam e reproduziam