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Galegos nos trópicos: invisibilidade e presença da imigração galega no Rio de Janeiro (1880-1930)
Galegos nos trópicos: invisibilidade e presença da imigração galega no Rio de Janeiro (1880-1930)
Galegos nos trópicos: invisibilidade e presença da imigração galega no Rio de Janeiro (1880-1930)
E-book758 páginas10 horas

Galegos nos trópicos: invisibilidade e presença da imigração galega no Rio de Janeiro (1880-1930)

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Sobre este e-book

A nova produção da coleção História traz ao público um dos principais estudos sobre a imigração galega para o Brasil. Em Galegos nos trópicos: invisibilidade e presença da imigração galega no Rio de Janeiro (1890-1930), Érica Sarmiento estabelece uma ampla análise sobre o estudo da imigração, resgatando elementos sobre a presença dos galegos no Brasil nas primeiras décadas da República. Com uma escrita leve, a autora utiliza diversos acervos documentais para demonstrar que a comunidade galega presente no Rio de Janeiro agiu em diversos setores, criando elementos impactantes na formação cultural da sociedade brasileira. Em todo processo de circulação cultural, os imigrantes constroem campos sociais que vinculam seu país de origem com o de assentamento. Com essa perspectiva, a autora mostra as possibilidades de vínculos que passaram a ser criados entre os dois lados do Atlântico, estabelecendo uma forte ação imigratória, capaz de formar uma extensa rede entre os dois países. Esta obra ficará por longos anos como obra de referência sobre a imigração galega no Brasil. Leandro Pereira Gonçalves
IdiomaPortuguês
Data de lançamento18 de mar. de 2024
ISBN9788539709038
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    Galegos nos trópicos - Erica Sarmiento

    DESCONSTRUINDO A INVISIBILIDADE: ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DA IMIGRAÇÃO GALEGA NO RIO DE JANEIRO

    Os galegos no contexto-histórico carioca (1890-1930)

    O Rio de Janeiro do início do século XX, uma cidade com forte presença de imigrantes, passou por quatro transformações substantivas fundamentais para reconfiguração da sua vida urbana. [ 22 ] Em primeiro lugar, em 1888, verificou-se a abolição da escravidão. Esse fato incrementou uma migração em massa do campo para a Capital Federal, então a maior cidade do Brasil. Esse processo migratório foi realizado sobretudo por ex-escravos e indivíduos livres, porém despossuídos. O fim da escravidão também impactou no aumento pela demanda por mão de obra imigrante, então considerada mais produtiva e, mesmo, dentro das teorias raciais então vigentes no Ocidente no Brasil (SCHWARCZ, 1993, p. 15-29), superiores do ponto de vista intelectual e, assim, vistos pela elite política brasileira como fundamentais no processo de construção de uma nação recém-constituída historicamente.

    Esse conjunto de migrações e imigrações evocados pelo fim da escravidão levou o Rio de Janeiro a registrar no início do século XX uma marca expressiva de 55% de sua população com origem exógena à cidade. [ 23 ] O fenômeno do fim da escravidão, portanto, teve significativo impacto na constituição do Rio de Janeiro como uma urbe melting pot, espaço agregador de grande diversidade antropológica, um cadinho cultural que unia desde o negro liberto, a europeus meridionais, populações eslavas, árabes, nordestinos, mineiros e populações egressas do interior do estado do Rio de Janeiro, sobretudo nas regiões de Campos e do vale do Paraíba, as mais impactadas com o fim da escravidão do interior fluminense. Todo esse contingente de migrações internas, também colaborou substancialmente para o aumento da população da cidade. De 522.651 habitantes em 1890, o Rio de Janeiro salta a 811.443 moradores em 1906 e dispara para 1.157.873 residentes em 1920. [ 24 ]

    Em segundo lugar, a cidade foi o palco do golpe republicano que cambiou o regime político brasileiro. A mudança de regime não foi um simples detalhe. Na condição de capital da recém-proclamada República, o Rio de Janeiro foi palco de uma sucessão de revoltas. A instabilidade derivada do processo de construção de uma nova arquitetura política cobrou o seu preço para a vida urbana carioca. A cidade, que já era percebida como um espaço confuso, comparada à bazar oriental e, ainda, repleta de epidemias, passou a ser também uma cidade revoltosa, palco de um sem-número de revoltas, rebeliões e quarteladas, que preencheram todas as duas primeiras décadas do novo regime. O Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas foi, antes de mais nada, uma cidade conturbada, com formas espontâneas de ocupação do espaço urbano, egressas da experiência escravista, epidemias e endemias e, ainda, uma sucessão de rebeliões pontilhando grande parte dos anos iniciais do novo regime. Não sem razão, o historiador Nicolau Svcenko (2003) classificou o cenário urbano como inferno social.

    Em terceiro lugar, por força do final da escravidão, o Rio de Janeiro registrou o fenômeno do Encilhamento. Com o fim do sistema de trabalho cativo, os bancos e demais instituições financeiras viram-se descobertas como credoras. O lastro de seus empréstimos, sua caução, era, em grande monta, a propriedade escrava do tomador (TANNURI, 1997, p. 6). Com o fim da escravidão, a caução dos credores volatilizou-se, e a emissão monetária descentralizada, egressa desde fins do Império, veio em socorro de uma economia comprometida. Não obstante, o fenômeno do Encilhamento esteve para muito além de um mero registro econômico. Transformou os critérios de legitimação social da cidade que, desde então, passaram a ser, cada vez mais, postados na dimensão do ganho material (NEVES, 1986). Assim, o Rio de Janeiro assomava dois distintos registros, o de cidade infernal por um lado, lugar de epidemias e demais dificuldades, e sítio de oportunidades, incitadora da imigração estrangeira. O encilhamento criou no Rio de Janeiro um espírito de arrivismo, e uma ideia de que a cidade seria um lugar ímpar quanto a oportunidades de enriquecimento, cabendo apenas ao esforço individual o acesso à riqueza. Durante as duas décadas iniciais da Primeira República estiveram em voga o dente de ouro, o cordão de ouro, os padrões de consumo para ostentação, bem como os jogos de azar, que nunca encontraram tamanha vigência no Brasil. [ 25 ] Um conceito se afirmou no imaginário social carioca, o que de que só não enriqueceria na cidade aqueles que não estivessem dispostos a trabalhar e/ou que não fossem espertos para alcançar a riqueza. A urbe carioca seria a terra das oportunidades, e só os tolos não se sucederiam com êxito nela.

    Em quarto lugar, como grande propulsora da imigração europeia esteve a Grande Reforma Urbana do Rio de Janeiro [ 26 ], executada, por um lado, pelo Presidente Rodrigues Alves, em consórcio entre os cafeicultores de São Paulo e o Clube de Engenharia carioca, arautos do progresso enquanto desenvolvimento material, e de outro, pelo Prefeito Pereira Passos que, para usar um personagem castelhano, afigurou-se como uma espécie de Quixote de uma civilização pautada em referências europeias, exógenas à cidade. A Grande Reforma Urbana do Rio de Janeiro teve como uma de suas maiores preocupações a captação de mão de obra imigrante europeia, a fim de sanar o problema da escassez de braços na lavoura cafeeira paulista, e cumprir com uma estratégia de embranquecimento, vista então pela elite política paulista como condição sine qua non do desenvolvimento nacional. Não foi sem razão que o governo de Rodrigues Alves expediu um número recorde de cartões-postais da cidade reformada destinada à propaganda no exterior. Assim, a Grande Reforma Urbana do Rio de Janeiro levada a cabo entre 1903 e 1906 cumpriu um papel decisivo no incremento da imigração europeia à Capital Federal no início do século XX.

    Não ausente de tudo o que estava acontecendo, a imprensa carioca denunciou a situação daqueles emigrantes que não pertenciam a esse novo conceito de cidade moderna e civilizada:

    A travessa do comércio ostentou ontem à noite o mesmo triste espetáculo [...] Dezenas de imigrantes espanhóis e italianos ali procuravam abrigar-se e passar a noite em promiscuidade e abandono que quaisquer que sejam as causas é deprimente para a administração pública. Acreditemos que eles não têm direito ao acolhimento nas hospedarias do Estado, nem razão justificada para se queixarem da falta de ocupação, mas a sua vagabundagem e a sua miséria, ainda que merecida, não podem continuar daquele modo sem grave responsabilidade dos poderes públicos.

    Deem-se lhes agasalhos, ou permita-se-lhes que voltem aos países de onde vieram ainda mesmo com o sacrifício do Estado. Os interesses da boa imigração são muito mais importantes do que os motivos regulamentares que possam explicar e até justificar o abandono daquela gente. [ 27 ]

    Notemos que, ao mesmo tempo em que o jornal pede que as autoridades se responsabilizem por esses emigrantes, julga-os como merecedores da sua situação de vagabundagem e de miséria. Dentro da emigração não só de espanhóis, mas de um modo geral, o emigrante deixava a sua família, a sua pátria na intenção de progredir, de buscar melhorar a sua condição socioeconômica. A imagem do emigrante como um trabalhador, fazendo parte do mercado brasileiro, está muito mais vinculada à realidade, aos objetivos da emigração, do que, como queriam alegar as autoridades brasileiras ou alguns meios de comunicação da época, a livre escolha do estrangeiro pela mendicância e pela miséria. O mais lógico é pensar que alguém que deixa a sua pátria e a sua família, seja por motivos políticos ou econômicos, não escolheria por vontade própria estar vivendo pelas ruas de um país estrangeiro. O mais provável é que fatores externos, como o custo de vida, a falta de oportunidade de inserção no mercado de trabalho e a falta de apoio das autoridades brasileiras levassem esses estrangeiros a caírem na marginalidade. O Rio de Janeiro, que tanto acolheu os emigrantes, também viveu seu momento de desconfiança dos estrangeiros e, nesse período, vários galegos acabaram sendo obrigados a cruzar o oceano, expulsos ou repatriados, sendo culpados por não ter onde dormir nem onde trabalhar.

    A população da cidade ia se formando por ex-escravos, por migrantes de outras zonas do Brasil e por estrangeiros. Em 1920, mais de 20% da sociedade carioca era estrangeira. No censo de 1906, dos 210.515 imigrantes, mais de 133 mil eram portugueses, 25.557 italianos e mais de 20 mil eram espanhóis. No censo de 1920 o quadro se repete com os espanhóis mantendo o terceiro lugar como contingente imigratório no Rio (PASCHOAL GUIMARÃES, 1988, p. 7).

    Tabela 1. Imigrantes: Estrangeiros residentes no Distrito Federal (1906 e 1920)

    Fonte: Dados censitários – IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Dados extraídos de Paschoal Guimarães (1988, p. 7).

    A invisibilidade dos galegos

    Meu caro amigo, pergunta-me v. o que pensam os jacobinos da Galiza espanhola e dos gallegos quando chamam os portugueses de gallegos. [...] A Galiza é uma terra rude e forte de Espanha, que dado homens de alta inteligência à política e à literatura, ao demais, qual espantosa de capacidade de trabalho em comparação com as outras províncias do reino de Alfonso XVIII... [ 28 ]

    No ano de 1921, um dos mais importantes jornalistas da sociedade carioca do começo do século XX, João do Rio demonstrava conhecer perfeitamente as diferenças entre os imigrantes galegos e os portugueses. Na seção Bilhete, do jornal A Pátria do dia 15 de fevereiro de 1921, expressava a sua indignação por confundirem os portugueses com os galegos. A carta, endereçada a um tal A. Martínez, galego da cidade de Tui, localizada na província de Pontevedra, estava cheia de enfados em relação aos brasileiros, acusados pelo escritor de serem uma pilhéria de almofadinhas, que querem humilhar o trabalho dos outros. O jacobinismo, movimento antilusitano, era contestado pelo jornalista, que defendia a imagem do português – e de quebra a do galego – como símbolo da honestidade e do trabalho. Ambos emigrantes eram dignos de admiração pelas suas qualidades de descobridores, colonizadores e, principalmente, o que se via no dia a dia nas ruas do Rio de Janeiro: o esforçado e honrado trabalhador, que não renuncia a horas de trabalho árduo para conseguir seus objetivos:

    Quando os jacobinos chamam os portugueses de gallegos, ofensivamente devem partir primeiramente da idéia de que é humilhante trocar a pátria de alguém. Se chamarem a um brasileiro de argentino, ele não fica contente, apesar da Argentina ser uma grande nação sul-americana. Se chamarem V. de turco. V. Martínez de Tuy, V. fica furioso. [ 29 ]

    Parece ser que essa imagem positiva que quis passar o autor não tinha muito a ver com a realidade das ruas cariocas. A palavra galego, dirigida aos emigrantes portugueses, não era nada agradável. A nobreza do trabalho árduo, do esforço máximo para economizar cada níquel ganho no país emigrado, era substituída pelas classes populares com adjetivos como galego sujo, sem escrúpulos, mesquinho, burro de carga ou avarento. O galego era aquele emigrante, normalmente o português dono de botequim ou de pensão, que estava em contato direto com as classes mais baixas da população e que, para conseguir ascender economicamente, não poupava meios, roubando a clientela, vendendo produtos de pior qualidade ou vivendo em condições precárias para juntar a sua sonhada fortuna.

    O pequeno comércio se tornou alvo de pressão das camadas populares. A população passou a reclamar mais dos comerciantes e de suas práticas fraudulentas e da qualidade dos alimentos. Por outro lado, os comerciantes passaram a exigir um melhor serviço de infraestrutura urbana, principalmente água e luz, e mais respeito e eficácia nas ações policiais contra àqueles que agrediam seus negócios, enquanto os empregados de comércio pediam a mediação do Estado nos conflitos trabalhistas com seus patrões que envolviam o não pagamento de salários, maus-tratos e demissões injustificáveis (MENEZES, 1998, p. 188-189). Cada um se defendia como podia, o consumidor era vítima do alto custo de vida e culpava os pequenos comerciantes pelas subidas de preço, esses para atingir seus lucros se defendiam à base de fraudes, descontando em cima da população; e os empregados não contavam com leis trabalhistas que o defendessem dos abusos dos patrões. Um panorama caótico, onde o Estado ficava de fora, observando de longe como o povo, sem meios educacionais e sem perspectivas de melhoras, se engalfinhava e cobrava seus direitos na mercearia ou no botequim do português.

    Recorrendo à literatura, dessa vez com Aluísio do Azevedo, no romance O Cortiço, encontramos a figura de João Romão, o dono do cortiço, o estereótipo do português, ignorante, sempre com seus inseparáveis tamancos, cujo único objetivo é conseguir, ademais de acumular riqueza à custa dos moradores do cortiço, de ser reconhecido socialmente. Num episódio do romance, onde uma brasileira e uma portuguesa travam uma luta corporal pelo amor de um mesmo homem – outro português chamado Jerônimo –, aparece mais uma vez a palavra galego como marca da emigração lusitana:

    Dois partidos todavia se formavam em torno das levantadoras; quase todos os brasileiros eram por Rita e quase todos os portugueses pela outra [...]. E as palavras galego e cabra cruzaram-se de todos os pontos, como bofetadas [...]. Ouviram-se num clamor de pragas e gemidos, vivas a Portugal e vivas ao Brasil (AZEVEDO, 1978, p. 237-238).

    Luiz Edmundo que, junto com o já mencionado jornalista João do Rio, era um dos grandes cronistas do cotidiano carioca deixou nos seus textos observações acerca de vários grupos de imigrantes, um deles os chamados galegos. Mas uma vez mais o vocábulo não se refere a uma nacionalidade e sim a um adjetivo dado aos portugueses:

    Para os moradores, os portugueses são os abacaxis ou os galegos; chama-se carcamanos ou malacachetas aos italianos. Os alemães são chucrutas, os sírios, turcos, os franceses, quando os há – raríssimos – são franciús, e as mulheres, em geral, desde que não sejam brasileiras ou portuguesas são sempre madamas" (EDMUNDO, 1957, p. 367-368).

    A literatura jornalística da época, mais uma vez resgata a linguagem da rua, as expressões utilizadas pelos brasileiros ou entre os próprios imigrantes para se qualificarem mutuamente. Curiosamente, nesse trecho, não se mencionam os espanhóis, uma comunidade importante numericamente no Rio de Janeiro. Até mesmo os sírios, um grupo quantitativamente muito inferior à comunidade galega, e os alemães foram mencionados pelo autor. Que apelido seria dado aos galegos pelos cariocas? Como seria identificada a comunidade espanhola no Rio? Teria uma identidade, ainda que negativa, na sociedade receptora? O que está claro é que entre galegos e portugueses havia muita semelhança: ocupação profissional, idiomas parecidos etc. É difícil perceber através das fontes literárias ou da prensa – e mais ainda nas fontes nominativas – como os espanhóis eram vistos pelos cariocas. Essa percepção se torna ainda mais difícil quando coletivos mais numerosos (portugueses, italianos) ou com importância econômica (sírio-libaneses) se tornam mais visíveis frente à historiografia e adquirem mais importância e interesse acadêmico. Através do termo galego e do estudo da comunidade portuguesa em diversas obras bibliográficas, podemos sugerir algumas hipóteses. Por exemplo, averiguando como a palavra galego teve o seu sentido alterado e acabou sendo um adjetivo utilizado nos conflitos de rua entre brasileiros e portugueses e também conhecer alguns aspectos da coletividade portuguesa no Rio, sua importância histórica, numérica, profissional e que papel teve no cenário carioca da Primeira República. Esses dados, ainda que não respondam a todas as perguntas, nos permitem fazer um estudo comparativo e ao mesmo tempo de interação entre galegos, portugueses e brasileiros.

    O termo galego acabou chegando ao Brasil pela boca dos próprios portugueses. Parece que o feitiço virou contra o feiticeiro, e os galegos, desta vez os originários da Galiza e não os galegos do Minho, involuntariamente cederam a sua identidade para que os portugueses fossem insultados pelos brasileiros. Situação similar ocorreu com o coletivo galego e espanhol na argentina, a partir da primeira metade do século XIX. Depois da independência argentina, em 1810, apesar de a guerra da independência não haver significado uma revolução social, como os vencidos representavam um grupo imperialista e, ao mesmo tempo, socialmente dominante, os espanhóis converteram-se no símbolo do rancor e do ressentimento das classes mais baixas (MOYA, 1989, p. 500). A hispanofobia traduziu-se numa palavra: galego. Ao longo da primeira década do século XX, os antigos tópicos depreciativos herdados dos tempos coloniais, superpostos à hispanofobia instintiva que conservava boa parte da opinião pública argentina, ganharam novas dimensões e, principalmente, uma reatualizada capacidade de verossimilitude. A chegada massiva de imigrantes galegos (que atingia de 30% a 40% entre os anos de 1870 e 1900), procedentes de zonas rurais, com escassa qualificação e instrução escolar e o uso incorreto da língua castelhana, fez com que as imagens negativas se reativassem e adquirissem novos significados. Além dessas caraterísticas, os galegos de Buenos Aires – a cidade com maior número de galegos no mundo [ 30 ] –, tal como os do Rio de Janeiro, foi um coletivo que se dedicou, na sua grande maioria, ao ramo do pequeno comércio e das hotelarias. A sua condição profissional lhe dava uma visibilidade social, já que estavam expostos constantemente às miradas das classes populares, servindo para alimentar o imaginário da sociedade argentina (NÚÑEZ SEIXAS, 2002, p. 41-48). Os indivíduos oriundos do Estado espanhol seriam chamados de galegos, independente da sua procedência. [ 31 ]

    Antes de emigrarem para o Brasil de forma massiva, os galegos já conheciam os domínios lusitanos, principalmente os do leste e sul da província de Pontevedra. Dirigiam-se, principalmente, para as cidades de Lisboa e Porto, exercendo ofícios de carregadores ou ambulantes ou trabalhando nos serviços domésticos e nos pequenos comércios (FERNANDES ALVES, 1997). No começo do século XVIII, havia em Portugal 30.000 galegos; e, só na cidade do Porto, no ano de 1856, residiam 1.856 espanhóis (VÁZQUEZ, 1999b, p. 223). Jorge Fernandes Alves contabilizou no censo português de 1890, 27.138 galegos vivendo em Portugal, distribuídos pelos distritos do norte do país e principalmente nas cidades de Lisboa e Porto (FERNANDES ALVES, 1997, p. 81). O país vizinho não representava só uma oportunidade de trabalho, mas também, posteriormente, uma saída para o mar, cobiçada pelos que viajavam clandestinamente, fugindo das obrigações militares. Os portos portugueses presenciaram a despedida de milhares de emigrantes galegos. [ 32 ] A emigração era conhecida pelas autoridades galegas, que se preocupavam com a escapada em massa da população masculina. Em 1838, o Governador da província de Pontevedra, fronteira com Portugal, informou ao capitão geral da Galiza que

    las relaciones de los naturales de la provincia de Pontevedra con sus vecinos del Reino de Portugal son comparativamente mayores que las de ninguna otra provincia limítrofe, hasta el punto de que se puede asegurar sin exageración que de alguno de los partidos de esta provincia apenas quedan jóvenes que no vayan a ganar la vida a Portugal (LÓPEZ TABOADA, 1994, p. 420).

    A pressão fiscal numa sociedade baseada no minifúndio, os sistemas hereditários que parcelavam as pequenas propriedades, a falta de perspectiva de trabalho, unidos a um recrutamento militar severo, obrigavam os jovens galegos a emigrarem para Portugal já antes de traçarem seus destinos para o Brasil.

    No Jacobinismo [ 33 ], o movimento antilusitano estreitamente vinculado à recém-consolidada República brasileira e formado por grupos republicanos que pertenciam às camadas médias urbanas emergentes, utilizava-se a expressão galego vai para tua terra!, como uma forma de rechaço à população portuguesa que, além de ter a sua postura política associada ao monarquismo, também provocava a inimizade dos nativos devido ao monopólio de muitos setores do pequeno comércio da sociedade carioca, estreitamente ligados às classes baixas, como pensões, bares e botequins ou padarias. Aos antigos colonizadores, eram atribuídos vários males pelos quais a jovem República passava. Nos processos criminais analisados na dissertação de mestrado de Gladys Sabina Ribeiro (1987), a autora encontra a expressão mata-galegos utilizada diversas vezes como uma espécie de grito de guerra dos brasileiros contra os portugueses nos conflitos de rua do Rio de Janeiro do começo do século XX. Segundo palavras da própria autora: são vários os processos em que o xingamento galego aparece [...], a velha instituição do ‘mata-galego’ teve sua chama reacesa e constituía-se no grito de morte e de ofensa contra os portugueses (RIBEIRO, 1987, p. 51). Galego era um xingamento, um insulto que fazia parte da questão racial que envolvia lusos e nacionais em acirradas disputas pela sobrevivência no cotidiano carioca. Está claro que a palavra galego, nesse contexto, não se relacionava aos indivíduos originários da Galiza nem tinha uma conotação positiva.

    Segundo José Fernandes Alves (1997), a semelhança linguística e comportamental entre os galegos e os portugueses do Norte deu a estes últimos o apelido de Galegos do Minho. O perfil social dos dois emigrantes (de diferentes países, mas a fronteira, nesse caso, parece estabelecer unicamente uma diferença política e não cultural) está vinculado à imagem de trabalhador, daquele que se dedica aos ofícios mais brutos e desprezados pela sociedade, o burro de carga, o que economiza qualquer níquel para voltar para sua terrinha ou para abrir um pequeno negócio, um armazém, uma padaria ou um botequim, onde pudesse ascender social e economicamente.

    A organização do mercado de trabalho nas principais cidades portuguesas no século XVIII, formada pela emigração galega, esteve no ponto de mira de cronistas e viajantes que estiveram no Brasil no mesmo período. Uma curiosa comparação entre os galegos e os trabalhadores negros transportadores de café do porto do Rio de Janeiro ficou registrada nos escritos de viagem de Sir. Henry Chamberlain, no começo do século XX:

    Os negros carregadores do Rio, entretanto, ou não são tão fortes, ou não são tão desejosos de usar a sua força, tal como os trabalhadores galegos em Lisboa, dos quais não encontram dificuldades para carregar uma pipa de vinho, enquanto menos de oito dos primeiros não tentarão suspender uma.

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