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Sonho que sou alguém cá neste mundo: Antologia de escritoras portuguesas do século XV ao XIX
Sonho que sou alguém cá neste mundo: Antologia de escritoras portuguesas do século XV ao XIX
Sonho que sou alguém cá neste mundo: Antologia de escritoras portuguesas do século XV ao XIX
E-book623 páginas5 horas

Sonho que sou alguém cá neste mundo: Antologia de escritoras portuguesas do século XV ao XIX

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Sobre este e-book

Sonho que sou a poetisa eleita – Antologia de escritoras portuguesas do século XV ao XIX reúne oitenta autoras cujas obras chegaram até nós. As primeiras são Senhoras do século XV que, na corte, participavam dos torneios poéticos e tiveram seus poemas incluídos no Cancioneiro Geral (1516) de Garcia de Resende. O século XVI conta com três autoras emblemáticas, entre elas, Joana da Gama, a primeira mulher a publicar um livro em Portugal. No século do Barroco, há uma maior presença de escritoras. São, sobretudo, poetisas letradas, que tiveram acesso a uma educação primorosa tanto nos conventos como fora deles. E à medida que o tempo vai avançando, aumenta a participação das mulheres na literatura. O século das luzes revela uma produção literária rica e variada. Trata-se de mulheres esclarecidas, leitoras não só dos clássicos, mas também de seus contemporâneos, cujas obras refletem o espírito das luzes. No século XIX, foram muitas as mulheres que decidiram marcar presença na cultura literária do país, participando intensamente dos embates de seu tempo através de criações poéticas, ficcionais ou teatrais, manifestando-se sobre a política e a condição feminina, por meio dos livros que publicaram, bem como dos inúmeros jornais e revistas que criaram. A antologia está organizada didaticamente por séculos, que são introduzidos por um texto sobre as características do período, seguido de verbetes de cada autora e excertos da obra. Esta publicação pretende, pois, somar às que têm surgido na última década com o mesmo propósito, e contribuir para a reflexão da historiografia literária e da participação feminina na literatura de língua portuguesa.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento3 de jun. de 2024
ISBN9786581177119
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    Pré-visualização do livro

    Sonho que sou alguém cá neste mundo - Conceição Flores

    titulotitulo

    Copyright © 2024 Conceição Flores e Constância Lima Duarte

    Copyright © 2024 Editora Luas

    Direção e coordenação editorial: Cecília Castro

    Revisão: Cecília Castro

    Projeto gráfico, diagramação e capa: Bia Menezes

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Índices para catálogo sistemático:

    1. Literatura portuguesa : Crítica e interpretação

    Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

    Este livro não pode ser reproduzido, no todo ou em partes, sem a prévia autorização da editora.

    Belo Horizonte – 2024 – 1ª edição.

    Editora Luas

    contato@editoraluas.com.br

    Agradecimentos

    Diva Maria Cunha Pereira de Macêdo

    Eduardo da Cruz

    Fabio Mario da Silva

    Isabel Lousada

    José Andrade

    José Manuel Medina Garcia

    Maria das Mercês Coelho

    Maria Teresa Horta

    Vânia Pinheiro Chaves

    Zenóbia Collares Moreira

    Por um mundo onde sejamos socialmente iguais,

    humanamente diferentes e totalmente livres.

    Rosa Luxemburgo

    Este trabalho é dedicado a

    todas as mulheres que desapareceram da

    memória cultural e social de seus países.

    Sumário

    Na contramão do memoricídio

    Século XV: as poetisas do Cancioneiro Geral

    Dona Filipa de Almada

    Senhora Dona Filipa

    Dona Joana de Mendonça

    Dona Maria de Bobadilha

    Dona Mécia Henriques

    Esparsas em Castelhano

    Século XVI: escritoras pioneiras

    Joana da Gama

    Luísa Sigeia

    Públia Hortênsia de Castro

    Século XVII: escritoras do barroco

    Dona Bernarda Ferreira de Lacerda

    Maria de Lara e Meneses

    Mariana Alcoforado (Sóror)

    Mariana de Luna

    Paula da Graça

    Sóror Madalena da Glória

    Sóror Maria do Céu

    Sóror Maria de Mesquita Pimentel

    Sóror Violante do Céu

    Século XVIII: escritoras das luzes

    Ana Bernardina Pinto Pereira de Sousa e Noronha

    Catarina Damásia Borges Teixeira

    D. Catarina Micaela de Sousa César Lencastre

    D. Leonor de Almeida Portugal Lorena e Lencastre

    D. Teresa Josefa de Mello Breyner

    D. Teresa Margarida da Silva e Orta

    Século XIX: escritoras da modernidade

    Alice Moderno

    Alice Pestana

    Amélia Janny

    Ana Amália Moreira de Sá

    Ana de Castro Osório

    Ana Maria Ribeiro de Sá

    Ana Plácido

    Angelina Vidal

    Antónia Gertrudes Pusich

    Beatriz Pinheiro de Lemos

    Branca de Gonta Colaço

    Carolina da Veiga Castelo Branco

    Catarina Máxima de Figueiredo Abreu Castelo Branco

    Cláudia de Campos

    Clorinda Máxima de Macedo

    Emília Eduarda

    Guiomar Torresão

    Henriqueta Elisa Pereira de Sousa

    Hermenegilda Telles de Lacerda

    Joana Margarida Mancia Ribeiro da Silva

    Júlia de Gusmão

    Luthgarda Guimarães de Caires

    Maria Amália Vaz de Carvalho

    Maria Augusta da Conceição Vilar

    Maria Benedita de Sousa Soares de Andréa

    Maria Cândida Pereira de Vasconcelos

    Maria da Felicidade do Couto Browne

    Maria José Alvarrão Pacheco Simões

    Maria Peregrina de Sousa

    Maria Rita Chiappe Cadet

    Mariana Angélica de Andrade

    Mariana Belmira de Andrade

    Matilde Isabel de Sancta Anna e Vasconcelos Moniz de Bettencourt

    Sobre as organizadoras

    Sobre a Editora Luas

    titulo

    Sonho que sou a Poetisa eleita,

    Aquela que diz tudo e tudo sabe,

    Que tem a inspiração pura e perfeita,

    Que reúne num verso a imensidade!

    Sonho que um verso meu tem claridade

    Para encher todo o mundo! E que deleita

    Mesmo aqueles que morrem de saudade!

    Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!

    Sonho que sou Alguém cá neste mundo...

    Aquela de saber vasto e profundo,

    Aos pés de quem a terra anda curvada!

    E quando mais no céu eu vou sonhando,

    E quando mais alto ando voando,

    Acordo do meu sonho... E não sou nada!...

    (Florbela Espanca, Vaidade,

    Livro de mágoas, 1919)

    Os belos versos de Florbela Espanca expressam com absurda precisão o sentimento de tantas escritoras que a antecederam, e mesmo surgidas depois, diante do desejo e da impotência em ter reconhecido seu valor num mundo vedado às mulheres. A Vaidade que intitula o soneto nada mais seria que o justo direito ao reconhecimento de sua contribuição às letras nacionais.

    Se hoje testemunhamos a presença efetiva da autoria feminina nos catálogos das editoras, e as mulheres parecem finalmente ocupar o espaço que lhes cabe nas artes, na política e na sociedade como um todo, nunca é demais lembrar que durante séculos elas permaneceram na sombra, esquecidas e pouco valorizadas. A produção das primeiras escritoras – apesar de presentes no cenário literário desde o século XV – foi sistematicamente deixada de lado pelos críticos e historiadores, e (quase) desapareceu como se nunca tivesse existido.

    E chegamos ao cerne do problema: aquelas que ousaram exibir o brilho de seu intelecto e romperam os limites impostos pelo poder patriarcal, publicando livros, fundando jornais, tornaram-se depois ilustres desconhecidas e foram sistematicamente alijadas da memória e do arquivo oficial. Em outras palavras, foram vítimas de memoricídio, ou seja, apagadas do acervo e da memória cultural. Memoricídio designa também, no caso feminino, o processo de opressão e negação da participação da mulher ao longo da história, por ignorar as iniciativas de resistência ao patriarcado e impor o silêncio e invisibilidade às pioneiras.

    Foram, portanto, razões históricas e ideológicas as responsáveis por jogar no limbo do esquecimento as primeiras produções intelectuais femininas, em Portugal e no Brasil, bem como sua participação nas lutas sociais. E o apagamento de seus nomes teve como consequência um grave dano ao acervo cultural dos dois países, bem como à identidade feminina, pois resultou numa espécie de amnésia social e no desconhecimento generalizado da história de opressão e de resistência das mulheres.

    A pesquisa que ora trazemos a público teve início há quase três décadas e contava também com a participação das professoras Diva Cunha Pereira de Macêdo e Zenóbia Collares Moreira, ambas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Apesar das interrupções sofridas, a pesquisa nunca foi completamente abandonada, uma vez que a sua razão de ser – dar voz a mulheres que permaneciam à margem da história – continuava latente em nós. Esta publicação pretende, pois, somar às que têm surgido na última década com o mesmo propósito, e contribuir para a reflexão da historiografia literária e da participação feminina neste campo do conhecimento. Temos aqui reunidos oitenta nomes de mulheres que produziram literatura do século XV ao XIX, com dados biográficos, relação de obras e excertos selecionados de sua produção literária.

    No caso de algumas escritoras não foi possível, apesar de muito empenho investigativo, encontrar dados mais precisos a seu respeito devido à ausência de seus nomes nos dicionários bibliográficos e manuais de literatura. Ainda assim optamos por incluí-las por considerá-las merecedoras de serem resgatadas do esquecimento a que estavam relegadas. Ao lado dos verbetes e excertos, foram incluídas imagens ilustrativas de domínio público, bem como referências e fontes consultadas, visando auxiliar outras investigações. Em muitos casos, os textos foram transcritos segundo a ortografia da época, em outros, foi feita a atualização.

    Resta-nos desejar que novas pesquisas surjam trazendo luz a estas vozes que merecem ser ouvidas e iluminando uma legítima constelação de estrelas por tanto tempo apagada.

    Conceição Flores

    Constância Lima Duarte

    Primeira edição do Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende¹.

    O primeiro registro de poesia de autoria feminina, em Portugal, surge no Cancioneiro Geral , organizado por Garcia de Resende. O livro, publicado em 1516 pelo impressor de D. Manuel I e dedicado ao futuro rei D. João III, foi dos primeiros a ser impresso em Portugal.

    Provavelmente houve poetisas na Idade Média, porém em nenhum dos cancioneiros medievais² há presença de mulheres-autoras. A hipótese é ter havido jograis e trovadores que se apropriaram de cantigas que as mulheres cantavam e as difundiram como se suas fossem. Myriam Coeli³, poetisa e estudiosa norte-rio-grandense de poesia medieval, em Fundamentos, poema de abertura de Cantigas de amigo (1981), escreve que houve cantigas de amigo medievais compostas por mulheres enquanto faziam a sua lida em teares que teavam ou entre ovelhas no prado/ Que sozinhas pastoravam/ Cantavam com voz sentida/ Saudades que descantavam. Essas mulheres de outrora entretinham seus cismares/ [...] Com cantigas de amigo/ Que elas mesmas inventavam. E Myriam Coeli acrescenta que os jograis [recolhiam] essa tristeza/ [que] Em violas cantigavam.

    Seguindo os ensinamentos de Paul Zumthor (1993, p. 9) em relação à oralidade medieval, entendemos que a voz foi então um fator constitutivo de toda obra que [...] foi denominada literária. Sabendo da subalternidade feminina, restrita ao espaço privado, e do domínio masculino no espaço público, acreditamos com Ria Lemaire⁴ que, no processo de divulgação e fixação dos textos literários, foi estabelecido o primado dos homens, em consonância com a sociedade patriarcal vigente.

    Apagadas da história, as mulheres-autoras, só em 1516, têm sua poesia publicada. São 30 poetisas, damas da Corte, que têm seus nomes inscritos no Cancioneiro Geral, obra que reúne poesia palaciana de 1449 a 1516. O compilador, no prólogo, avalia que muitas coisas de folgar e gentilezas estão perdidas sem haver delas notícias, entre elas a arte de trovar que em todo tempo foi muito estimada, por isso propôs-se a registrar na gentileza, amores, justas e momos (Resende, 1910, p. 2). Garcia de Resende, poeta e homem da Corte, tem consciência das perdas havidas, pois até então a poesia circulava em manuscritos que se perdiam ou iam para a fogueira quando seus autores morriam. Sensível a essa questão, reúne e publica com o beneplácito régio o Cancioneiro, precioso documento da poesia palaciana.

    Trata-se de uma compilação em que a maioria das composições se destinava aos serões palacianos, onde se recitava e se disputavam concursos poéticos. As damas da Corte participavam do convívio palaciano e dos espetáculos que se realizavam no paço e comparecem no Cancioneiro Geral com composições poéticas, aceitando os desafios que lhes são propostos. A sua participação ocorre, regra geral, em grupo, identificado como Donzelas da Senhora D. Filipa, em que todas as participantes são identificadas nominalmente e respondem ao mote proposto pelos poetas. Contudo, há também menção às Donzelas da Infanta⁵ e às Damas da Rainha Leonor⁶, sem, no entanto, haver identificação dos nomes.

    A desproporção entre o número de autores – Teófilo Braga anotou 351 (1984, p. 307) – e o de autoras (30) revela a sociedade patriarcal em que as poetisas estavam inseridas. A maioria das participações poéticas femininas ocorre em grupo, como já dissemos. Vale, no entanto, referir que há algumas exceções. D. Filipa de Almada, cuja cantiga O que recobrar não posso recebe a ajuda⁷ de cinco poetas, tem a primazia a nenhuma outra dama concedida ao propor mote respondido apenas por homens, inversão do que é habitual, ou seja, o poeta indicava o mote e recebia a ajuda das donzelas. D. Mécia Henriques, autora da cantiga Quem viu nunca louçainha, responde ao desafio de outro poeta. Já D. Maria de Bobadilha e D. Joana de Mendonça, isoladamente, respondem ao refrão proposto por D. Diogo, o que revela que deveriam gozar de prestígio na Corte. Em relação à última, sabe-se que é uma jovem linda e querida na Corte, como revelam as composições poéticas a ela dedicadas.

    O Cancioneiro apresenta, inicialmente, O Cuidar e Suspirar, parte que corresponde a um processo poético de que participam diversos fidalgos, uns defendendo o cuidar e o suspirar, outros condenando. Por fim, tem-se a sentença em defesa do amor, na qual entrevém o deus do amor (cf. Resende, 1910, vol. I, p. 5-129). Destacam-se, no entanto, poemas líricos em que o sofrer por amor está presente, e Coisas de folgar, poemas circunstanciais, que constituem um valioso documento sobre o cotidiano e as intrigas da vida na Corte. A maioria dos poemas é escrito em português, mas também os há em castelhano, caso de um conjunto de esparsas escritas por oito damas.

    Quanto aos aspectos formais, destacamos: a cantiga, constituída por um mote de quatro ou cinco versos e uma glosa de oito, nove ou dez versos, com a repetição parcial ou total do mote no final da glosa; o vilancete, por um mote de dois ou três versos e de uma glosa de sete, em que o último verso é repetição, com ou sem variantes, do verso final do mote; a esparsa, por uma única glosa de oito, nove ou dez versos; quanto à métrica, predominam as redondilhas.

    Sobre as poetisas inscritas no Cancioneiro e aqui nomeadas, esclarecemos que a maioria é citada com o título de Dona, outras não, porém decidimos antepor o título a todas, seguindo o organizador da edição que consultamos, considerando que todas frequentavam a Corte e teriam esse título. São elas:

    Dona Beatriz de Ataíde

    Dona Branca

    Dona Catarina Henriques

    Dona Filipa de Almada

    Dona Filipa Henriques

    Dona Filipa de Vilhena

    Senhora Dona Filipa

    Dona Guiomar

    Dona Guiomar de Castro

    Dona Inês da Rosa

    Dona Isabel Pereira

    Dona Isabel da Silva

    Dona Joana Henriques

    Dona Joana de Melo

    Dona Joana de Mendonça

    Dona Joana de Sousa

    Dona Leonor Mascarenhas

    Dona Leonor Moniz

    Dona Leonor Pereira

    Dona Margarida Henriques

    Dona Margarida Furtada

    Dona Maria de Bobadilha

    Dona Maria da Cunha

    Dona Maria de Melo

    Dona Maria de Sousa

    Dona Maria de Távora

    Dona Maria Jácome

    Dona Mécia Henriques

    Dona Orraca

    Dona Violante

    Como vemos, a maioria dos nomes vem acompanhada de sobrenomes, uns poucos apresentam só o nome próprio. Por outro lado, há senhoras com o mesmo sobrenome: cinco assinam Henriques (Catarina, Filipa, Joana, Margarida, Mécia); duas, Melo (Joana e Maria); duas, Pereira (Isabel e Leonor), duas, Sousa (Maria e Joana). Seriam da mesma família, irmãs ou primas? Provavelmente, mas não é possível responder a essa questão. Em relação à identificação da Senhora Dona Filipa, a única que comparece acompanhada das suas donzelas, as evidências apontam para D. Filipa de Lencastre, educadora da Princesa D. Joana de Portugal, filha de D. Afonso V.

    Quanto à organização dos textos poéticos, transcrevemos a didascália e, em seguida, as ajudas femininas devidamente identificadas, tal como constam no Cancioneiro. Em relação à biografia da maioria das autoras, infelizmente não dispomos de dados, não tendo sido possível elaborar notas biográficas. O que se sabe é que as trinta senhoras que constam da compilação são damas da Corte, mulheres letradas, cujos nomes, ora resgatados, ficam inscritos na história da literatura portuguesa.

    Referências

    BRAGA, Marques. Gil Vicente. In: VICENTE, Gil. Obras completas. Vol. I. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1942, p. IX-LXXIV.

    BRAGA, Teófilo. História da literatura portuguesa: Idade Média. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984.

    COELI, Myriam. Cantigas de amigo. Natal: Clima, 1981.

    LEMAIRE, Ria. As cantigas que a gente canta, os amores que a gente quer: o papel da mulher na passagem da tradição oral à escrita. In: GOTLIB, Nádia Battella (org.). A mulher na literatura. Vol. III. Belo Horizonte: Imprensa da Universidade Federal de Minas Gerais, 1990, p. 13-33.

    RESENDE, Garcia de. Cancioneiro Geral. Vol. I. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1910.

    SARAIVA, António José; LOPES, Óscar. História da literatura portuguesa. 17. ed. Porto: Porto Editora, 1995.

    ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz – A literatura medieval. Tradução de Amálio Pinheiro (parte I) e de Jerusa Pires Ferreira (parte II). São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

    titulo

    Dona Filipa de Almada

    Filha de João Vaz de Almada, Senhor de Pereira, e de Dona Violante de Castro, nasceu em Coimbra e, durante sua infância e juventude, teve uma educação privilegiada, integrando a Corte Real, sendo instruída por tutores e amas que a versaram na literatura portuguesa e estrangeira, além de outras disciplinas. Mais tarde, tornou-se donzela da Casa da Infanta D. Leonor, irmã de D. Afonso V. Em 25 de março de 1451, casou com Rui Moniz, tesoureiro da Casa da Moeda e um dos poetas do Cancioneiro Geral. Segundo a pesquisadora portuguesa Aída Fernanda Dias (1998, p. 368), Moniz foi o mais libertino dos poetas da compilação e alguns de seus poemas foram censurados no Index auctorum danatae memoriae (1624). O casal teve quatro filhos: Garcia Moniz, tesoureiro da Casa da Moeda⁸; Leonor Moniz, segunda mulher de Jorge de Souza; Francisco de Almada, Comendador de Esgueira e Frei Nicolau Moniz, carmelita. Dona Filipa faleceu em 1497, em Lisboa.

    É poetisa de destaque na compilação, tanto pela qualidade dos seus versos quanto pela primazia que recebe ao ter tratamento igual ao de seus pares que respondem ao seu refrão. Os versos da cantiga revelam uma mulher que tem plena consciência da subalternidade feminina, mundo de ordem desigual, bem como parece conhecer os amores de seu marido, os tristes amores que lhe dão vida cativa.

    Refrão

    O que recobrar non posso

    mundo de ordem desigual,

    faz, que não desejo vosso

    bem, nem quero vosso mal.

    Mais me agrada, que assim viva

    no limbo destes favores,

    que vossos tristes amores

    me darem vida cativa,

    pesa-me que o mal vosso

    já cuidei de não ser mal;

    apraz-me porque sei e posso

    crer agora de vós al.

    Ajuda do coudel-mor¹⁰

    Visto quanto aventuro

    pelo pouco bem qu’ espero,

    vosso mal sentir não quero

    nem de vosso bem não curo.

    Deixo-vos enquanto posso,

    pois vos conheço por tal,

    que não é bem o bem vosso,

    nem é mal o vosso mal.

    Rui de Sousa

    Não ei por coisa segura

    nenhum vosso bem que veja,

    e sei bem que nunca vos dura

    vosso mal, que muito seja.

    Conhecer este erro vosso

    é ser coisa mui geral,

    não ser bem nenhum bem vosso

    nem ser mal o vosso mal.

    Rui Gonçalves

    Desamo vossos favores,

    nem quero vossas alianças,

    pois usais de tais mudanças,

    vós e vossos fazedores.

    Amigo fazer não posso

    de vós bem comunal,

    pois desespero de vosso

    bem, não quero o vosso mal.

    Fernão Peixoto

    Conhecendo bem agora

    de vós mais que conhecia,

    do mal vosso, que sentia,

    me lanço de todo fora.

    E do bem, que fica vosso,

    por ser coisa em geral,

    eu o deixo, se bem posso,

    pois que tudo pouco vale

    Rui Gonçalves e fim

    Por sentir vosso subir,

    e ver vossa grã descida

    teme o bem o mal imenso

    que de vós se foi seguir.

    E do bem, e favor vosso,

    pois vejo que pouco vale,

    eu me arredo quanto posso,

    pois vos conheço por tal.

    (Resende, 1915, p. 63-65.)

    Referências

    DIAS, Aída Fernanda. Cancioneiro Geral de Garcia de Resende – A Temática. Maia: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1998, vol. V.

    RESENDE, Garcia de. Cancioneiro Geral. Vol. IV. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1915.

    VICENTE, Gil. Auto da Barca do Inferno. In: VICENTE, Gil. Obras completas. Vol. II. Lisboa: Editora Livraria Sá da Costa, 1942, p. 39-123.

    Senhora Dona Filipa

    Filha de D. Pedro, Duque de Coimbra, e de D. Isabel de Aragão, neta de D. João I e de D. Filipa de Lencastre, nasceu em Coimbra em 1435 e faleceu em 11 de fevereiro de 1493 no Mosteiro de Odivelas, para onde havia se retirado. Foi educadora da Infanta Dona Joana (1452-1490), filha de D. Afonso V e de D. Isabel de Avis, que, em 1475, entrou para o Convento Dominicano de Jesus, em Aveiro. Provavelmente, nessa mesma época, a Senhora Dona Filipa também se terá retirado para o Mosteiro de Odivelas onde viveu até a sua morte.

    Erudita, dominava várias línguas, especialmente o latim, tendo publicado diversas obras, entre elas: Conselho e voto da Sra. D. Filipa, filha do infante D. Pedro sobre as terçarias e guerras de Castelo, publicado em Lisboa, em 1643; Tratado da vida solitária, composto por Sr. Lourenço Justiniano (tradução do latim). Também são de sua autoria algumas obras que ainda não foram localizadas: Livro dos Evangelhos, escrito em francês; Nove estações ou meditações de paixão, mui devotas para as que visitam as Igrejas quinta-feira de Endoenças; Prática feita do senado de Lisboa em tempo que receava algum tumulto (manuscrito); Livro de devoção que compôs a Infanta D. Filipa; Evangelhos e Homilias de todo o ano (tradução do latim).

    Diogo Barbosa Machado, na Biblioteca Lusitana, publicou o seguinte poema de autoria de Dona Filipa:

    Não vos sirvo, não vos amo,

    Mas desejo-vos amar

    De sempre vossa me chamo

    Sem quem não há repousar

    Ó vida, lume e luz

    Infinito Bem, e inteiro

    Meu Jesus Deus verdadeiro.

    Por mim morto na Cruz

    Se mim mesma não desamo,

    Não vos posso bem amar

    A me ajudar vos chamo

    Para saber repousar.

    (Machado, 1747, p. 65-66.)

    No período em que viveu na Corte, a Senhora Dona Filipa, junto com seu grupo de donzelas, participava dos desafios que recebia dos poetas; mas também comparece com composição individual.

    Resposta da Senhora Dona Filipa.

    Respondo o que perguntastes

    como estavam as donzelas

    e digo que todas elas

    estão quais vós as deixastes.

    Senão que estão saudosas,

    dizem, que nelas errastes,

    pois tão curto perguntastes

    por elas tanto formosas.

    (Resende, 1910, p. 324-325.)

    Do coudel-mor Francisco da Silveira em que pede que lhe respondam a esta cantiga.

    Faz-me muito recear

    de servir uma donzela,

    ver muita gente queixar

    sempre dela.

    Receio de me meter

    onde depois não possa

    nenhuma coisa valer,

    por que sei que mui formosa,

    e mui airosa.

    É mais para recear,

    senhores, a tal donzela,

    ou é mais para folgar

    perder por ela.

    Acuda todo galante

    c’ uma copla este refrão,

    e diga sua tenção,

    ponde estas ambas adiante.

    Responde a Senhora Dona Filipa

    Formosa dama servir

    receio deve fazer,

    mas mais se deve sentir

    por ela se não perder.

    Nem se me pode negar,

    em Portugal e Castela,

    que perder é maior folgar

    por tal donzela.

    Beatriz de Ataíde

    Não pode bem responder

    quem destas vive tão fora,

    mas pois que meu parecer

    quereis tomar, e saber,

    perdeu logo nessa hora.

    Não é nada recear

    servir galante donzela

    em respeito de folgar

    perder por ela.

    Dona Catarina Henriques

    A tais perguntas não sei,

    senhor primo, responder,

    mas, pois quereis, eu direi

    e vos aconselharei

    o que deveis de fazer:

    Devê-la de recear,

    se tal como eu é donzela,

    mas mais deveis de folgar

    perder por ela.

    Dona Orraca

    Conquanto vejo quebrada

    toda vossa presunção

    e vossa vida gastada,

    que me dá muita paixão,

    não vos hei d’aconselhar

    senão que por tal donzela

    é muito per’ estimar

    morrer por ela.

    Dona Guiomar

    Quem ousa de me servir

    em grão perigo se mete,

    há mil despreços de ouvir

    com que lhe sue o topete!

    Mas que devais recear

    a perigosa donzela,

    mui mais é para folgar

    perder por ela.

    Dona Branca¹¹

    Por quanto mal vos já fiz,

    vos aconselho agora,

    que olheis bem o que diz

    esta formosa senhora.

    Há vos certo de matar

    de amores, que eu o sei dela,

    mas eu escolho o folgar

    de ser por ela.

    Dona Margarida Henriques

    Não me é mais de responder

    a isto nem aconselhar,

    que se vos visse morrer

    ante mim sem vos poder

    em nada remediar.

    Mas pois não posso escusar,

    não temais esta donzela,

    que não é morte matar,

    se é por ela.

    Dona Joana de Melo

    Pois vos hei de aconselhar

    tudo o que me parecer,

    Convém-me de vos chorar,

    que se não pode escusar

    ver-vos morte padecer.

    Não cureis de recear,

    perdei-vos ante por ela,

    folgai de vos ver matar

    a tal donzela.

    Dona Margarida Furtada

    Vendo-vos dissimular

    a dor que muitos afoga,

    vos quero sem me chamar,

    senhor primo, aconselhar,

    porque o sangue não se roga.

    E digo que se apartar

    vos não podeis de querela,

    que é mais para folgar

    perder por ela.

    Inês da Rosa

    Donde mil partem chorando,

    porque ousais de vos meter,

    andamos todas cuidando

    como nada receando

    tanto folgais de morrer.

    Mas em ser vosso penar

    por quem não tem par a ela

    a vantagem tem folgar

    ter morte dela.

    Dona Isabel Pereira

    Não quisera responder,

    pois vou contra tanta gente

    e mais por quão descontente

    sei eu vos hei-de fazer.

    Esta parte hei-de tomar,

    que a galante donzela

    o mais forte é ousar

    de cometê-la.

    Maria Jácome

    Se meu conselho tomar

    quiserdes, não curareis

    em tal perigo entrar

    como este em que vos meteis.

    Que hei dó de vos ver matar

    a esta crua donzela,

    e por isso o afastar

    é melhor dela.

    Dona Maria de Távora¹²

    O prazer de ser perdida

    por dama destes sinais

    não vos nego ser subido,

    por quem perder vos ganhais.

    Mas mais deveis recear

    o ousar de cometê-la,

    pois fazê-la é acabar

    de perdê-la.

    (Resende, 1915, p. 272-277.)

    De Nuno Pereira a D. João Pereira quando casou porque a primeira noite foi dormir à pousada de João de Saldanha.

    Dai ora o demo tal manha

    do noivo que vai casar,

    e a primeira noite passar

    na pousada de Saldanha.

    D. João depois que ceou

    sopas, pastas de pote,

    um rabo de porco achou,

    que, por muito, que se regou,

    não pode fazer virote.

    E diz que, por não passar

    uma vergonha tamanha,

    que se lançara ao mar,

    se não achara Saldanha.

    Ajuda das donzelas da Senhora D. Filipa.

    Dona Maria de Sousa¹³

    Sua feição me não engana,

    sois em tudo gracioso,

    e agora quão pomposo

    andareis com vossa cana.

    Diante das iguarias

    com guarda porteiro,

    com o rol das moradias,

    já agora neste janeiro.

    Leonor Moniz

    Que mandar fazer de lume,

    que mandar armar de panos,

    que chamar os moços manos,

    que castigos de queixume.

    Que cortes v’ mostrareis

    agora do oficial,

    que carretos que trareis,

    para não falar em al.

    Dona Maria da Cunha

    Sem vos ver e lá estar

    vede se sou adivinha,

    quis cem vezes a cozinha

    por v’ mais negociar.

    E sei que já v’ retrocha

    a infanta com vergonha

    de mandar acender tocha

    primeiro que o sol se ponha

    Maria de Sousa

    O que dar de consoada

    pêros, castanhas e figos,

    e contar aos amigos

    ordenanças na pousada.

    Culpar muito a infanta,

    e os seus oficiais,

    dizendo que de hoje avante

    pode ver quanto noivais.

    [...]

    Dona Joana Henriques

    Aguardai, pois aguardastes

    a vida toda do pai,

    enfadando sua mãe,

    e vós não v’ enfadastes.

    Pois v’ ajuda a ventura,

    sabe vos ajudar,

    que quem no paço atura

    nunca deixa de medrar.

    Dona Isabel da Silva

    Que vós já tenhais um e ele

    que cinquenta se monta,

    veador¹⁴, não façais conta

    de fazer pregas na pele.

    Servi bem vosso senhor,

    que sejais o derradeiro,

    podeis ficar veador

    como estrigua¹⁵ de cenceiro.

    (Resende, 1915, p. 251-255.)

    Referências

    FLORES, Conceição; DUARTE, Constância Lima; MOREIRA, Zenóbia Collares. Dicionário de escritoras portuguesas: das origens à atualidade. Florianópolis: Editora Mulheres, 2009.

    MACHADO, Diogo Barbosa. Bibliotheca Lusitana. Vol. 2. Lisboa: Oficina de Ignacio Rodrigues, 1747.

    RESENDE, Garcia de. Cancioneiro Geral. Vol. I. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1910.

    RESENDE, Garcia de. Cancioneiro Geral. Vol. IV. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1915.

    SENHORA Dona Filipa. Disponível em: http://www.escritoras-em-portugues.eu/1445956735-Cent-XV/2015-1009-Filipa-Senhora-Dona. Acesso em: 17 fev. 2022.

    Dona Joana de Mendonça

    Filha de Diogo Furtado Mendonça, Alcaide-mor de Mourão, e de Dona Brites Soares de Albergaria, nasceu, provavelmente, na última década do século XV. Casou, em 1520, com D. Jaime, 4o Duque de Bragança, com quem teve oito filhos: Joana de Bragança (1521-1588), casada com Bernardino de Cardenas, 3o Marquês de Elche; Constantino de Bragança (1528-1575), 7o Vice-Rei da Índia; D. Teotônio de Bragança, arcebispo de Évora; Fulgêncio de Bragança, 11o prior do Colegiado de Guimarães; Jaime de Bragança; Eugénia de Bragança, casada com D. Francisco de Melo, 2o Marquês de Ferreira; Vicência de Bragança, freira no Mosteiro das Chagas de Vila Viçosa; e Maria de Bragança, freira no mesmo mosteiro onde sua irmã professara. Faleceu em 1580.

    Dona Joana de Mendonça tem especial visibilidade no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, visto haver 16 cantigas e trovas a ela endereçadas pelos poetas Simão da Silveira e Simão de Sousa¹⁶. As composições poéticas revelam sempre a paixão que dedicam à jovem, famosa na corte pela sua beleza. Garcia de Resende, respondendo a Manuel de Goyos, que estava ausente na África, escreve:

    Dona Joana de Mendonça

    que deixastes à partida

    uma muito gentil moça,

    não é coisa desta vida,

    que mata os homens por força.

    Cresceu tanto em formosura,

    em manhas, desenvoltura,

    graça, saber, diferença

    que não sinto coração,

    a que não de má ventura.

    (Resende, 1917, p. 312.)

    A sua única composição é uma resposta a D. Diogo, filho do marquês, à Senhora Dona Beatriz de Vilhena, a que ele chamava a perigosa (Resende, 1915, p. 90), que desafia os poetas com o seguinte refrão:

    Não se espera outro remédio

    de quem vir a perigosa

    se não vida duvidosa.

    Dona Joana de Mendonça assim responde:

    Por acudir ao refrão

    não sei coisa que não faça,

    até confessar na praça

    tudo o que nele vos dão.

    E parece-me razão

    que pois sois tão perigosa,

    não sejais despiedosa.

    (Resende, 1915, p. 99.)

    O prestígio que ela gozava na corte está patente nos louvores das damas, feitos em sua homenagem, mas que não estão identificados. Levando em conta que esses louvores vêm antecedidos pelo seguinte texto, fica a dúvida se as trovas são de autoria feminina ou do próprio Garcia de Resende.

    Estas quarenta e oito trovas fez Garcia de Resende por mandado do rei nosso senhor para um jogo de cartas se jogar no serão desta maneira. Em cada carta sua trova escrita, e são vinte e quatro de damas e vinte e quatro de homens, doze de louvor e doze de deslouvor. E baralhadas todas, hão de tirar uma carta em nome de fulana ou fulano e então lê-la alto: e quem acertar o louvor, irá bem, e quem tomar a de mal rirão dele.

    Começam logo os louvores das damas, os quais fez todos à Senhora Dona Joana de Mendonça.

    Não sei que possa dizer

    por vós que seja louvor,

    que se tão ousado

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