Sonho que sou alguém cá neste mundo: Antologia de escritoras portuguesas do século XV ao XIX
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Sonho que sou alguém cá neste mundo - Conceição Flores
Copyright © 2024 Conceição Flores e Constância Lima Duarte
Copyright © 2024 Editora Luas
Direção e coordenação editorial: Cecília Castro
Revisão: Cecília Castro
Projeto gráfico, diagramação e capa: Bia Menezes
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Índices para catálogo sistemático:
1. Literatura portuguesa : Crítica e interpretação
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129
Este livro não pode ser reproduzido, no todo ou em partes, sem a prévia autorização da editora.
Belo Horizonte – 2024 – 1ª edição.
Editora Luas
contato@editoraluas.com.br
Agradecimentos
Diva Maria Cunha Pereira de Macêdo
Eduardo da Cruz
Fabio Mario da Silva
Isabel Lousada
José Andrade
José Manuel Medina Garcia
Maria das Mercês Coelho
Maria Teresa Horta
Vânia Pinheiro Chaves
Zenóbia Collares Moreira
Por um mundo onde sejamos socialmente iguais,
humanamente diferentes e totalmente livres.
Rosa Luxemburgo
Este trabalho é dedicado a
todas as mulheres que desapareceram da
memória cultural e social de seus países.
Sumário
Na contramão do memoricídio
Século XV: as poetisas do Cancioneiro Geral
Dona Filipa de Almada
Senhora Dona Filipa
Dona Joana de Mendonça
Dona Maria de Bobadilha
Dona Mécia Henriques
Esparsas em Castelhano
Século XVI: escritoras pioneiras
Joana da Gama
Luísa Sigeia
Públia Hortênsia de Castro
Século XVII: escritoras do barroco
Dona Bernarda Ferreira de Lacerda
Maria de Lara e Meneses
Mariana Alcoforado (Sóror)
Mariana de Luna
Paula da Graça
Sóror Madalena da Glória
Sóror Maria do Céu
Sóror Maria de Mesquita Pimentel
Sóror Violante do Céu
Século XVIII: escritoras das luzes
Ana Bernardina Pinto Pereira de Sousa e Noronha
Catarina Damásia Borges Teixeira
D. Catarina Micaela de Sousa César Lencastre
D. Leonor de Almeida Portugal Lorena e Lencastre
D. Teresa Josefa de Mello Breyner
D. Teresa Margarida da Silva e Orta
Século XIX: escritoras da modernidade
Alice Moderno
Alice Pestana
Amélia Janny
Ana Amália Moreira de Sá
Ana de Castro Osório
Ana Maria Ribeiro de Sá
Ana Plácido
Angelina Vidal
Antónia Gertrudes Pusich
Beatriz Pinheiro de Lemos
Branca de Gonta Colaço
Carolina da Veiga Castelo Branco
Catarina Máxima de Figueiredo Abreu Castelo Branco
Cláudia de Campos
Clorinda Máxima de Macedo
Emília Eduarda
Guiomar Torresão
Henriqueta Elisa Pereira de Sousa
Hermenegilda Telles de Lacerda
Joana Margarida Mancia Ribeiro da Silva
Júlia de Gusmão
Luthgarda Guimarães de Caires
Maria Amália Vaz de Carvalho
Maria Augusta da Conceição Vilar
Maria Benedita de Sousa Soares de Andréa
Maria Cândida Pereira de Vasconcelos
Maria da Felicidade do Couto Browne
Maria José Alvarrão Pacheco Simões
Maria Peregrina de Sousa
Maria Rita Chiappe Cadet
Mariana Angélica de Andrade
Mariana Belmira de Andrade
Matilde Isabel de Sancta Anna e Vasconcelos Moniz de Bettencourt
Sobre as organizadoras
Sobre a Editora Luas
tituloSonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!
Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!
Sonho que sou Alguém cá neste mundo...
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a terra anda curvada!
E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais alto ando voando,
Acordo do meu sonho... E não sou nada!...
(Florbela Espanca, Vaidade
,
Livro de mágoas, 1919)
Os belos versos de Florbela Espanca expressam com absurda precisão o sentimento de tantas escritoras que a antecederam, e mesmo surgidas depois, diante do desejo e da impotência em ter reconhecido seu valor num mundo vedado às mulheres. A Vaidade
que intitula o soneto nada mais seria que o justo direito ao reconhecimento de sua contribuição às letras nacionais.
Se hoje testemunhamos a presença efetiva da autoria feminina nos catálogos das editoras, e as mulheres parecem finalmente ocupar o espaço que lhes cabe nas artes, na política e na sociedade como um todo, nunca é demais lembrar que durante séculos elas permaneceram na sombra, esquecidas e pouco valorizadas. A produção das primeiras escritoras – apesar de presentes no cenário literário desde o século XV – foi sistematicamente deixada de lado pelos críticos e historiadores, e (quase) desapareceu como se nunca tivesse existido.
E chegamos ao cerne do problema: aquelas que ousaram exibir o brilho de seu intelecto e romperam os limites impostos pelo poder patriarcal, publicando livros, fundando jornais, tornaram-se depois ilustres desconhecidas e foram sistematicamente alijadas da memória e do arquivo oficial. Em outras palavras, foram vítimas de memoricídio, ou seja, apagadas do acervo e da memória cultural. Memoricídio designa também, no caso feminino, o processo de opressão e negação da participação da mulher ao longo da história, por ignorar as iniciativas de resistência ao patriarcado e impor o silêncio e invisibilidade às pioneiras.
Foram, portanto, razões históricas e ideológicas as responsáveis por jogar no limbo do esquecimento as primeiras produções intelectuais femininas, em Portugal e no Brasil, bem como sua participação nas lutas sociais. E o apagamento de seus nomes teve como consequência um grave dano ao acervo cultural dos dois países, bem como à identidade feminina, pois resultou numa espécie de amnésia social e no desconhecimento generalizado da história de opressão e de resistência das mulheres.
A pesquisa que ora trazemos a público teve início há quase três décadas e contava também com a participação das professoras Diva Cunha Pereira de Macêdo e Zenóbia Collares Moreira, ambas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Apesar das interrupções sofridas, a pesquisa nunca foi completamente abandonada, uma vez que a sua razão de ser – dar voz a mulheres que permaneciam à margem da história – continuava latente em nós. Esta publicação pretende, pois, somar às que têm surgido na última década com o mesmo propósito, e contribuir para a reflexão da historiografia literária e da participação feminina neste campo do conhecimento. Temos aqui reunidos oitenta nomes de mulheres que produziram literatura do século XV ao XIX, com dados biográficos, relação de obras e excertos selecionados de sua produção literária.
No caso de algumas escritoras não foi possível, apesar de muito empenho investigativo, encontrar dados mais precisos a seu respeito devido à ausência de seus nomes nos dicionários bibliográficos e manuais de literatura. Ainda assim optamos por incluí-las por considerá-las merecedoras de serem resgatadas do esquecimento a que estavam relegadas. Ao lado dos verbetes e excertos, foram incluídas imagens ilustrativas de domínio público, bem como referências e fontes consultadas, visando auxiliar outras investigações. Em muitos casos, os textos foram transcritos segundo a ortografia da época, em outros, foi feita a atualização.
Resta-nos desejar que novas pesquisas surjam trazendo luz a estas vozes que merecem ser ouvidas e iluminando uma legítima constelação de estrelas por tanto tempo apagada.
Conceição Flores
Constância Lima Duarte
Primeira edição do Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende¹.
O primeiro registro de poesia de autoria feminina, em Portugal, surge no Cancioneiro Geral , organizado por Garcia de Resende. O livro, publicado em 1516 pelo impressor de D. Manuel I e dedicado ao futuro rei D. João III, foi dos primeiros a ser impresso em Portugal.
Provavelmente houve poetisas na Idade Média, porém em nenhum dos cancioneiros medievais² há presença de mulheres-autoras. A hipótese é ter havido jograis e trovadores que se apropriaram de cantigas que as mulheres cantavam e as difundiram como se suas fossem. Myriam Coeli³, poetisa e estudiosa norte-rio-grandense de poesia medieval, em Fundamentos
, poema de abertura de Cantigas de amigo (1981), escreve que houve cantigas de amigo medievais compostas por mulheres enquanto faziam a sua lida em teares que teavam
ou entre ovelhas no prado/ Que sozinhas pastoravam/ Cantavam com voz sentida/ Saudades que descantavam
. Essas mulheres de outrora entretinham seus cismares/ [...] Com cantigas de amigo/ Que elas mesmas inventavam
. E Myriam Coeli acrescenta que os jograis [recolhiam] essa tristeza/ [que] Em violas cantigavam
.
Seguindo os ensinamentos de Paul Zumthor (1993, p. 9) em relação à oralidade medieval, entendemos que a voz foi então um fator constitutivo de toda obra que [...] foi denominada literária
. Sabendo da subalternidade feminina, restrita ao espaço privado, e do domínio masculino no espaço público, acreditamos com Ria Lemaire⁴ que, no processo de divulgação e fixação dos textos literários, foi estabelecido o primado dos homens, em consonância com a sociedade patriarcal vigente.
Apagadas da história, as mulheres-autoras, só em 1516, têm sua poesia publicada. São 30 poetisas, damas da Corte, que têm seus nomes inscritos no Cancioneiro Geral, obra que reúne poesia palaciana de 1449 a 1516. O compilador, no prólogo, avalia que muitas coisas de folgar e gentilezas estão perdidas sem haver delas notícias
, entre elas a arte de trovar que em todo tempo foi muito estimada
, por isso propôs-se a registrar na gentileza, amores, justas e momos
(Resende, 1910, p. 2). Garcia de Resende, poeta e homem da Corte, tem consciência das perdas havidas, pois até então a poesia circulava em manuscritos que se perdiam ou iam para a fogueira quando seus autores morriam. Sensível a essa questão, reúne e publica com o beneplácito régio o Cancioneiro, precioso documento da poesia palaciana.
Trata-se de uma compilação em que a maioria das composições se destinava aos serões palacianos, onde se recitava e se disputavam concursos poéticos. As damas da Corte participavam do convívio palaciano e dos espetáculos que se realizavam no paço e comparecem no Cancioneiro Geral com composições poéticas, aceitando os desafios que lhes são propostos. A sua participação ocorre, regra geral, em grupo, identificado como Donzelas da Senhora D. Filipa
, em que todas as participantes são identificadas nominalmente e respondem ao mote proposto pelos poetas. Contudo, há também menção às Donzelas da Infanta
⁵ e às Damas da Rainha Leonor
⁶, sem, no entanto, haver identificação dos nomes.
A desproporção entre o número de autores – Teófilo Braga anotou 351 (1984, p. 307) – e o de autoras (30) revela a sociedade patriarcal em que as poetisas estavam inseridas. A maioria das participações poéticas femininas ocorre em grupo, como já dissemos. Vale, no entanto, referir que há algumas exceções. D. Filipa de Almada, cuja cantiga O que recobrar não posso
recebe a ajuda⁷ de cinco poetas, tem a primazia a nenhuma outra dama concedida ao propor mote respondido apenas por homens, inversão do que é habitual, ou seja, o poeta indicava o mote e recebia a ajuda das donzelas. D. Mécia Henriques, autora da cantiga Quem viu nunca louçainha
, responde ao desafio de outro poeta. Já D. Maria de Bobadilha e D. Joana de Mendonça, isoladamente, respondem ao refrão proposto por D. Diogo, o que revela que deveriam gozar de prestígio na Corte. Em relação à última, sabe-se que é uma jovem linda e querida na Corte, como revelam as composições poéticas a ela dedicadas.
O Cancioneiro apresenta, inicialmente, O Cuidar e Suspirar
, parte que corresponde a um processo poético de que participam diversos fidalgos, uns defendendo o cuidar e o suspirar, outros condenando. Por fim, tem-se a sentença em defesa do amor, na qual entrevém o deus do amor (cf. Resende, 1910, vol. I, p. 5-129). Destacam-se, no entanto, poemas líricos em que o sofrer por amor está presente, e Coisas de folgar
, poemas circunstanciais, que constituem um valioso documento sobre o cotidiano e as intrigas da vida na Corte. A maioria dos poemas é escrito em português, mas também os há em castelhano, caso de um conjunto de esparsas escritas por oito damas.
Quanto aos aspectos formais, destacamos: a cantiga, constituída por um mote de quatro ou cinco versos e uma glosa de oito, nove ou dez versos, com a repetição parcial ou total do mote no final da glosa; o vilancete, por um mote de dois ou três versos e de uma glosa de sete, em que o último verso é repetição, com ou sem variantes, do verso final do mote; a esparsa, por uma única glosa de oito, nove ou dez versos; quanto à métrica, predominam as redondilhas.
Sobre as poetisas inscritas no Cancioneiro e aqui nomeadas, esclarecemos que a maioria é citada com o título de Dona
, outras não, porém decidimos antepor o título a todas, seguindo o organizador da edição que consultamos, considerando que todas frequentavam a Corte e teriam esse título. São elas:
Dona Beatriz de Ataíde
Dona Branca
Dona Catarina Henriques
Dona Filipa de Almada
Dona Filipa Henriques
Dona Filipa de Vilhena
Senhora Dona Filipa
Dona Guiomar
Dona Guiomar de Castro
Dona Inês da Rosa
Dona Isabel Pereira
Dona Isabel da Silva
Dona Joana Henriques
Dona Joana de Melo
Dona Joana de Mendonça
Dona Joana de Sousa
Dona Leonor Mascarenhas
Dona Leonor Moniz
Dona Leonor Pereira
Dona Margarida Henriques
Dona Margarida Furtada
Dona Maria de Bobadilha
Dona Maria da Cunha
Dona Maria de Melo
Dona Maria de Sousa
Dona Maria de Távora
Dona Maria Jácome
Dona Mécia Henriques
Dona Orraca
Dona Violante
Como vemos, a maioria dos nomes vem acompanhada de sobrenomes, uns poucos apresentam só o nome próprio. Por outro lado, há senhoras com o mesmo sobrenome: cinco assinam Henriques (Catarina, Filipa, Joana, Margarida, Mécia); duas, Melo (Joana e Maria); duas, Pereira (Isabel e Leonor), duas, Sousa (Maria e Joana). Seriam da mesma família, irmãs ou primas? Provavelmente, mas não é possível responder a essa questão. Em relação à identificação da Senhora Dona Filipa, a única que comparece acompanhada das suas donzelas, as evidências apontam para D. Filipa de Lencastre, educadora da Princesa D. Joana de Portugal, filha de D. Afonso V.
Quanto à organização dos textos poéticos, transcrevemos a didascália e, em seguida, as ajudas femininas devidamente identificadas, tal como constam no Cancioneiro. Em relação à biografia da maioria das autoras, infelizmente não dispomos de dados, não tendo sido possível elaborar notas biográficas. O que se sabe é que as trinta senhoras que constam da compilação são damas da Corte, mulheres letradas, cujos nomes, ora resgatados, ficam inscritos na história da literatura portuguesa.
Referências
BRAGA, Marques. Gil Vicente. In: VICENTE, Gil. Obras completas. Vol. I. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1942, p. IX-LXXIV.
BRAGA, Teófilo. História da literatura portuguesa: Idade Média. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984.
COELI, Myriam. Cantigas de amigo. Natal: Clima, 1981.
LEMAIRE, Ria. As cantigas que a gente canta, os amores que a gente quer: o papel da mulher na passagem da tradição oral à escrita. In: GOTLIB, Nádia Battella (org.). A mulher na literatura. Vol. III. Belo Horizonte: Imprensa da Universidade Federal de Minas Gerais, 1990, p. 13-33.
RESENDE, Garcia de. Cancioneiro Geral. Vol. I. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1910.
SARAIVA, António José; LOPES, Óscar. História da literatura portuguesa. 17. ed. Porto: Porto Editora, 1995.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz – A literatura
medieval. Tradução de Amálio Pinheiro (parte I) e de Jerusa Pires Ferreira (parte II). São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Dona Filipa de Almada
Filha de João Vaz de Almada, Senhor de Pereira, e de Dona Violante de Castro, nasceu em Coimbra e, durante sua infância e juventude, teve uma educação privilegiada, integrando a Corte Real, sendo instruída por tutores e amas que a versaram na literatura portuguesa e estrangeira, além de outras disciplinas. Mais tarde, tornou-se donzela da Casa da Infanta D. Leonor, irmã de D. Afonso V. Em 25 de março de 1451, casou com Rui Moniz, tesoureiro da Casa da Moeda e um dos poetas do Cancioneiro Geral. Segundo a pesquisadora portuguesa Aída Fernanda Dias (1998, p. 368), Moniz foi o mais libertino dos poetas da compilação e alguns de seus poemas foram censurados no Index auctorum danatae memoriae (1624). O casal teve quatro filhos: Garcia Moniz, tesoureiro da Casa da Moeda⁸; Leonor Moniz, segunda mulher de Jorge de Souza; Francisco de Almada, Comendador de Esgueira e Frei Nicolau Moniz, carmelita. Dona Filipa faleceu em 1497, em Lisboa.
É poetisa de destaque na compilação, tanto pela qualidade dos seus versos quanto pela primazia que recebe ao ter tratamento igual ao de seus pares que respondem ao seu refrão. Os versos da cantiga revelam uma mulher que tem plena consciência da subalternidade feminina, mundo de ordem desigual
, bem como parece conhecer os amores de seu marido, os tristes amores
que lhe dão vida cativa
.
Refrão
O que recobrar non posso
mundo de ordem desigual,
faz, que não desejo vosso
bem, nem quero vosso mal.
Mais me agrada, que assim viva
no limbo destes favores,
que vossos tristes amores
me darem vida cativa,
pesa-me que o mal vosso
já cuidei de não ser mal;
apraz-me porque sei e posso
crer agora de vós al.⁹
Ajuda do coudel-mor¹⁰
Visto quanto aventuro
pelo pouco bem qu’ espero,
vosso mal sentir não quero
nem de vosso bem não curo.
Deixo-vos enquanto posso,
pois vos conheço por tal,
que não é bem o bem vosso,
nem é mal o vosso mal.
Rui de Sousa
Não ei por coisa segura
nenhum vosso bem que veja,
e sei bem que nunca vos dura
vosso mal, que muito seja.
Conhecer este erro vosso
é ser coisa mui geral,
não ser bem nenhum bem vosso
nem ser mal o vosso mal.
Rui Gonçalves
Desamo vossos favores,
nem quero vossas alianças,
pois usais de tais mudanças,
vós e vossos fazedores.
Amigo fazer não posso
de vós bem comunal,
pois desespero de vosso
bem, não quero o vosso mal.
Fernão Peixoto
Conhecendo bem agora
de vós mais que conhecia,
do mal vosso, que sentia,
me lanço de todo fora.
E do bem, que fica vosso,
por ser coisa em geral,
eu o deixo, se bem posso,
pois que tudo pouco vale
Rui Gonçalves e fim
Por sentir vosso subir,
e ver vossa grã descida
teme o bem o mal imenso
que de vós se foi seguir.
E do bem, e favor vosso,
pois vejo que pouco vale,
eu me arredo quanto posso,
pois vos conheço por tal.
(Resende, 1915, p. 63-65.)
Referências
DIAS, Aída Fernanda. Cancioneiro Geral de Garcia de Resende – A Temática. Maia: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1998, vol. V.
RESENDE, Garcia de. Cancioneiro Geral. Vol. IV. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1915.
VICENTE, Gil. Auto da Barca do Inferno. In: VICENTE, Gil. Obras completas. Vol. II. Lisboa: Editora Livraria Sá da Costa, 1942, p. 39-123.
Senhora Dona Filipa
Filha de D. Pedro, Duque de Coimbra, e de D. Isabel de Aragão, neta de D. João I e de D. Filipa de Lencastre, nasceu em Coimbra em 1435 e faleceu em 11 de fevereiro de 1493 no Mosteiro de Odivelas, para onde havia se retirado. Foi educadora da Infanta Dona Joana (1452-1490), filha de D. Afonso V e de D. Isabel de Avis, que, em 1475, entrou para o Convento Dominicano de Jesus, em Aveiro. Provavelmente, nessa mesma época, a Senhora Dona Filipa também se terá retirado para o Mosteiro de Odivelas onde viveu até a sua morte.
Erudita, dominava várias línguas, especialmente o latim, tendo publicado diversas obras, entre elas: Conselho e voto da Sra. D. Filipa, filha do infante D. Pedro sobre as terçarias e guerras de Castelo, publicado em Lisboa, em 1643; Tratado da vida solitária, composto por Sr. Lourenço Justiniano (tradução do latim). Também são de sua autoria algumas obras que ainda não foram localizadas: Livro dos Evangelhos, escrito em francês; Nove estações ou meditações de paixão, mui devotas para as que visitam as Igrejas quinta-feira de Endoenças; Prática feita do senado de Lisboa em tempo que receava algum tumulto (manuscrito); Livro de devoção que compôs a Infanta D. Filipa; Evangelhos e Homilias de todo o ano (tradução do latim).
Diogo Barbosa Machado, na Biblioteca Lusitana, publicou o seguinte poema de autoria de Dona Filipa:
Não vos sirvo, não vos amo,
Mas desejo-vos amar
De sempre vossa me chamo
Sem quem não há repousar
Ó vida, lume e luz
Infinito Bem, e inteiro
Meu Jesus Deus verdadeiro.
Por mim morto na Cruz
Se mim mesma não desamo,
Não vos posso bem amar
A me ajudar vos chamo
Para saber repousar.
(Machado, 1747, p. 65-66.)
No período em que viveu na Corte, a Senhora Dona Filipa, junto com seu grupo de donzelas, participava dos desafios que recebia dos poetas; mas também comparece com composição individual.
Resposta da Senhora Dona Filipa.
Respondo o que perguntastes
como estavam as donzelas
e digo que todas elas
estão quais vós as deixastes.
Senão que estão saudosas,
dizem, que nelas errastes,
pois tão curto perguntastes
por elas tanto formosas.
(Resende, 1910, p. 324-325.)
Do coudel-mor Francisco da Silveira em que pede que lhe respondam a esta cantiga.
Faz-me muito recear
de servir uma donzela,
ver muita gente queixar
sempre dela.
Receio de me meter
onde depois não possa
nenhuma coisa valer,
por que sei que mui formosa,
e mui airosa.
É mais para recear,
senhores, a tal donzela,
ou é mais para folgar
perder por ela.
Acuda todo galante
c’ uma copla este refrão,
e diga sua tenção,
ponde estas ambas adiante.
Responde a Senhora Dona Filipa
Formosa dama servir
receio deve fazer,
mas mais se deve sentir
por ela se não perder.
Nem se me pode negar,
em Portugal e Castela,
que perder é maior folgar
por tal donzela.
Beatriz de Ataíde
Não pode bem responder
quem destas vive tão fora,
mas pois que meu parecer
quereis tomar, e saber,
perdeu logo nessa hora.
Não é nada recear
servir galante donzela
em respeito de folgar
perder por ela.
Dona Catarina Henriques
A tais perguntas não sei,
senhor primo, responder,
mas, pois quereis, eu direi
e vos aconselharei
o que deveis de fazer:
Devê-la de recear,
se tal como eu é donzela,
mas mais deveis de folgar
perder por ela.
Dona Orraca
Conquanto vejo quebrada
toda vossa presunção
e vossa vida gastada,
que me dá muita paixão,
não vos hei d’aconselhar
senão que por tal donzela
é muito per’ estimar
morrer por ela.
Dona Guiomar
Quem ousa de me servir
em grão perigo se mete,
há mil despreços de ouvir
com que lhe sue o topete!
Mas que devais recear
a perigosa donzela,
mui mais é para folgar
perder por ela.
Dona Branca¹¹
Por quanto mal vos já fiz,
vos aconselho agora,
que olheis bem o que diz
esta formosa senhora.
Há vos certo de matar
de amores, que eu o sei dela,
mas eu escolho o folgar
de ser por ela.
Dona Margarida Henriques
Não me é mais de responder
a isto nem aconselhar,
que se vos visse morrer
ante mim sem vos poder
em nada remediar.
Mas pois não posso escusar,
não temais esta donzela,
que não é morte matar,
se é por ela.
Dona Joana de Melo
Pois vos hei de aconselhar
tudo o que me parecer,
Convém-me de vos chorar,
que se não pode escusar
ver-vos morte padecer.
Não cureis de recear,
perdei-vos ante por ela,
folgai de vos ver matar
a tal donzela.
Dona Margarida Furtada
Vendo-vos dissimular
a dor que muitos afoga,
vos quero sem me chamar,
senhor primo, aconselhar,
porque o sangue não se roga.
E digo que se apartar
vos não podeis de querela,
que é mais para folgar
perder por ela.
Inês da Rosa
Donde mil partem chorando,
porque ousais de vos meter,
andamos todas cuidando
como nada receando
tanto folgais de morrer.
Mas em ser vosso penar
por quem não tem par a ela
a vantagem tem folgar
ter morte dela.
Dona Isabel Pereira
Não quisera responder,
pois vou contra tanta gente
e mais por quão descontente
sei eu vos hei-de fazer.
Esta parte hei-de tomar,
que a galante donzela
o mais forte é ousar
de cometê-la.
Maria Jácome
Se meu conselho tomar
quiserdes, não curareis
em tal perigo entrar
como este em que vos meteis.
Que hei dó de vos ver matar
a esta crua donzela,
e por isso o afastar
é melhor dela.
Dona Maria de Távora¹²
O prazer de ser perdida
por dama destes sinais
não vos nego ser subido,
por quem perder vos ganhais.
Mas mais deveis recear
o ousar de cometê-la,
pois fazê-la é acabar
de perdê-la.
(Resende, 1915, p. 272-277.)
De Nuno Pereira a D. João Pereira quando casou porque a primeira noite foi dormir à pousada de João de Saldanha.
Dai ora o demo tal manha
do noivo que vai casar,
e a primeira noite passar
na pousada de Saldanha.
D. João depois que ceou
sopas, pastas de pote,
um rabo de porco achou,
que, por muito, que se regou,
não pode fazer virote.
E diz que, por não passar
uma vergonha tamanha,
que se lançara ao mar,
se não achara Saldanha.
Ajuda das donzelas da Senhora D. Filipa.
Dona Maria de Sousa¹³
Sua feição me não engana,
sois em tudo gracioso,
e agora quão pomposo
andareis com vossa cana.
Diante das iguarias
com guarda porteiro,
com o rol das moradias,
já agora neste janeiro.
Leonor Moniz
Que mandar fazer de lume,
que mandar armar de panos,
que chamar os moços manos,
que castigos de queixume.
Que cortes v’ mostrareis
agora do oficial,
que carretos que trareis,
para não falar em al.
Dona Maria da Cunha
Sem vos ver e lá estar
vede se sou adivinha,
quis cem vezes a cozinha
por v’ mais negociar.
E sei que já v’ retrocha
a infanta com vergonha
de mandar acender tocha
primeiro que o sol se ponha
Maria de Sousa
O que dar de consoada
pêros, castanhas e figos,
e contar aos amigos
ordenanças na pousada.
Culpar muito a infanta,
e os seus oficiais,
dizendo que de hoje avante
pode ver quanto noivais.
[...]
Dona Joana Henriques
Aguardai, pois aguardastes
a vida toda do pai,
enfadando sua mãe,
e vós não v’ enfadastes.
Pois v’ ajuda a ventura,
sabe vos ajudar,
que quem no paço atura
nunca deixa de medrar.
Dona Isabel da Silva
Que vós já tenhais um e ele
que cinquenta se monta,
veador¹⁴, não façais conta
de fazer pregas na pele.
Servi bem vosso senhor,
que sejais o derradeiro,
podeis ficar veador
como estrigua¹⁵ de cenceiro.
(Resende, 1915, p. 251-255.)
Referências
FLORES, Conceição; DUARTE, Constância Lima; MOREIRA, Zenóbia Collares. Dicionário de escritoras portuguesas: das origens à atualidade. Florianópolis: Editora Mulheres, 2009.
MACHADO, Diogo Barbosa. Bibliotheca Lusitana. Vol. 2. Lisboa: Oficina de Ignacio Rodrigues, 1747.
RESENDE, Garcia de. Cancioneiro Geral. Vol. I. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1910.
RESENDE, Garcia de. Cancioneiro Geral. Vol. IV. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1915.
SENHORA Dona Filipa. Disponível em: http://www.escritoras-em-portugues.eu/1445956735-Cent-XV/2015-1009-Filipa-Senhora-Dona. Acesso em: 17 fev. 2022.
Dona Joana de Mendonça
Filha de Diogo Furtado Mendonça, Alcaide-mor de Mourão, e de Dona Brites Soares de Albergaria, nasceu, provavelmente, na última década do século XV. Casou, em 1520, com D. Jaime, 4o Duque de Bragança, com quem teve oito filhos: Joana de Bragança (1521-1588), casada com Bernardino de Cardenas, 3o Marquês de Elche; Constantino de Bragança (1528-1575), 7o Vice-Rei da Índia; D. Teotônio de Bragança, arcebispo de Évora; Fulgêncio de Bragança, 11o prior do Colegiado de Guimarães; Jaime de Bragança; Eugénia de Bragança, casada com D. Francisco de Melo, 2o Marquês de Ferreira; Vicência de Bragança, freira no Mosteiro das Chagas de Vila Viçosa; e Maria de Bragança, freira no mesmo mosteiro onde sua irmã professara. Faleceu em 1580.
Dona Joana de Mendonça tem especial visibilidade no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, visto haver 16 cantigas e trovas a ela endereçadas pelos poetas Simão da Silveira e Simão de Sousa¹⁶. As composições poéticas revelam sempre a paixão que dedicam à jovem, famosa na corte pela sua beleza. Garcia de Resende, respondendo a Manuel de Goyos, que estava ausente na África, escreve:
Dona Joana de Mendonça
que deixastes à partida
uma muito gentil moça,
não é coisa desta vida,
que mata os homens por força.
Cresceu tanto em formosura,
em manhas, desenvoltura,
graça, saber, diferença
que não sinto coração,
a que não de má ventura.
(Resende, 1917, p. 312.)
A sua única composição é uma resposta a D. Diogo, filho do marquês, à Senhora Dona Beatriz de Vilhena, a que ele chamava a perigosa
(Resende, 1915, p. 90), que desafia os poetas com o seguinte refrão:
Não se espera outro remédio
de quem vir a perigosa
se não vida duvidosa.
Dona Joana de Mendonça assim responde:
Por acudir ao refrão
não sei coisa que não faça,
até confessar na praça
tudo o que nele vos dão.
E parece-me razão
que pois sois tão perigosa,
não sejais despiedosa.
(Resende, 1915, p. 99.)
O prestígio que ela gozava na corte está patente nos louvores das damas
, feitos em sua homenagem, mas que não estão identificados. Levando em conta que esses louvores
vêm antecedidos pelo seguinte texto, fica a dúvida se as trovas são de autoria feminina ou do próprio Garcia de Resende.
Estas quarenta e oito trovas fez Garcia de Resende por mandado do rei nosso senhor para um jogo de cartas se jogar no serão desta maneira. Em cada carta sua trova escrita, e são vinte e quatro de damas e vinte e quatro de homens, doze de louvor e doze de deslouvor. E baralhadas todas, hão de tirar uma carta em nome de fulana ou fulano e então lê-la alto: e quem acertar o louvor, irá bem, e quem tomar a de mal rirão dele.
Começam logo os louvores das damas, os quais fez todos à Senhora Dona Joana de Mendonça.
Não sei que possa dizer
por vós que seja louvor,
que se tão ousado