Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Luz - livro i
Luz - livro i
Luz - livro i
E-book337 páginas5 horas

Luz - livro i

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Clara é uma jovem Cubana, descontente com a Revolução. Planeia partir com o marido para os Estados Unidos, para iniciarem uma nova vida. Mas uma estranha Visitação pelo Anjo Gabriel, anunciando-lhe que está grávida da nova Filha de Deus, faz com que Clara reconsidere as suas opções. Irá ela ter a criança em solo Americano? Será feliz com o marido? E Jesus, o que acha Ele da ideia de ter uma irmã? Não percam esta história, original e absorvente.

IdiomaPortuguês
EditoraBadPress
Data de lançamento6 de jun. de 2016
ISBN9781507138731
Luz - livro i
Autor

Luis Gonzalez

Luis J. Gonzalez is the Dean of Libraries at the Indiana University of Pennsylvania. He has worked as a senior library administrator, and was Deputy Chief Librarian of Hunter College Libraries, Hunter College, City University of New York, from 2005 to 2010. He was also the Associate Director at the New York University College of Dentistry Library from 2001 to 2005. He has conducted research and published on the topics of information literacy and funding trends for academic libraries in the United States. He has an MLIS from Queens College and a Master in Public Administration from Baruch College, both campuses of the City University of New York.

Relacionado a Luz - livro i

Ebooks relacionados

Artigos relacionados

Avaliações de Luz - livro i

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Luz - livro i - Luis Gonzalez

    Luz: livro I

    Livro I: chegadas e partidas

    Milagres  1

    Contratempos 2

    Visitações  41

    Confusões   86

    Concepções  116

    Assunções  149

    Consolação  193

    LIVRO I

    Partidas e Chegadas

    ––––––––

    Por isso vou confiar no Senhor,

    todos os dias da minha vida.

    1

    Milagres

    ––––––––

    14 de Agosto de 1994,

    Anoitecer

    Um milagre.

    Foi assim que a maioria de nós interpretou aquilo. A única maneira que eu interpretei aquilo. Um milagre que surgiu sem que ninguém o esperasse e todos nós tínhamos de nos mexer rapidamente, todos nós tínhamos de atuar rapidamente. Como é que este milagre se materializou, ninguém percebeu realmente. Como é que se desdobrou tão rapidamente, ninguém tinha a certeza. Mas uma coisa era evidente. Uma coisa ficou clara. Deus respondia finalmente às nossas preces. Estava finalmente a aperceber-se dos longos anos do nosso sofrimento juntamente com as nossas petições à Virgem.

    Para ser sincera, nunca fui religiosa. Nem mesmo espiritual. A minha mãe era e por causa dela tinha testemunhado muitas coisas, principalmente nos dias dos santos. Todos os anos, a 8 de Setembro, a Mamã preparava um altar de flores e velas para comemorar o dia festivo da Virgem e transformava a nossa sala numa capela abençoada. La Virgen del Cobre. A nossa amada Santa padroeira. Mesmo na época em que era um suicídio completo alguém pôr os pés numa igreja, a Mamã sempre o fez, e até assistia à missa regularmente. A minha mãe era do tipo de morrer pela fé, uma mártir, se quiseres, e naturalmente que tinha tentado inculcar as suas crenças em mim. Mas nunca rezei a eles. Eu não era crente. Mitos e contos de fadas – era assim que eu via a religião. Saía mais ao meu pai, a educação e a política eram a minha religião. A escrita era a minha salvação.

    Mas deixou de ser assim. Tínhamos vivido um Período Especial nos últimos quatro anos, em Cuba. El Periodo Especial – como o governo lhe chamava – e eu já não acreditava em nada. Não havia nada de especial naquele período, nada de encantador ou enternecedor. Que mau uso das palavras. Que travestismo da terminologia. E isto vindo do mestre da linguagem em pessoa, o virtuoso do vocabulário e da verborreia. De fato, um Período Especial. Apenas mais uma coisa espantosa do nosso manipulador-mor, mais um eufemismo para o inferno que era a nossa vida quotidiana. Sem futuro. Sem liberdade. E seguramente sem comida. Mas o pior era que, graças aos nossos apagões diários, não havia eletricidade nem luz durante umas doze horas. Era isso que mais abominávamos: as horas intermináveis sem qualquer luz. Mas agora tudo tinha mudado e até eu reconheci o incidente por aquilo que era: um milagre. Agradeci a Deus pela sua misericórdia. Agradeci a Deus pela oportunidade. Um par de mãos benévolas tinha aberto as portas daquele inferno – não, escancarou-as – e tal como todos os outros, eu queria sair. Envolvia apenas um grande risco, um grande percalço: arriscava-se a vida. Mas não tinha importância. Eles já tinham ceifado o meu sonho, já me tinham destruído de dentro para fora. Os que governavam o poleiro retiravam prazer disso. Roubavam as nossas esperanças. Atavam-nos a alma com desespero. Toda a minha vida quis ser escritor mas isso nunca seria possível. Não nesta ilha. Viver em Cuba era existir derrotado. Derrotas diurnas, derrotas noturnas, derrotas grandes e pequenas que se perpetuavam interminavelmente. Derrotas que te corroíam por dentro e te minguavam por fora. Não estávamos simplesmente salpicados pela derrota mas afogávamo-nos nela: numa inundação de medo e desilusão. Continuar a viver aqui era permanecer nesta derrota e mesmo na minha tenra idade, sentia-me morto por dentro.

    Mas agora, todos os que combatiam aquele ciclo vicioso voltavam a ter esperança. Todos aqueles que lutavam por um ressurgimento da vida estavam a fugir. Iniciava-se um êxodo e como habitualmente, um frenesim de fugas através da água, uma escapadela forçada e febril. Mas desta vez, miraculosamente, aqueles que controlavam o portão não estavam a travar ninguém, não estavam a atirar ninguém para a prisão. Não o nosso líder de uniforme verde. Não os seus ministros com as suas roupas ameaçadoras. Nem mesmo as suas sentinelas anónimas ou os rafeiros mauzinhos de azul. Era assim que eu me referia à polícia, por aqui. Os rafeiros de azul.

    Que mais podia isto ser. Que mais se não um milagre? Seguramente que Deus lhes tinha atado as mãos. Seguramente que Deus os tinha cegado.

    Ele deve estar, inclusivamente, a colocar palavras nas suas bocas. Por que razão é que o homem de verde tinha feito aquele anúncio há algumas noites atrás? A declarar ao mundo que éramos livres de partir. Alegremente a ameaçar toda a gente que nos deixava fugir. Estava a dar-nos a sua bênção; isto é, se alguém achasse que ele era capaz de fazer uma coisa dessas. Soubemos nessa altura que aquilo tinha de ser um milagre. Percebemos que tinha de ser o trabalho de Deus. Acima de tudo eu sabia que tinha de tirar partido deste milagre e que também eu devia partir.

    Tudo começou a 5 de Agosto, o dia em que a ira de Deus se manifestou. Não só aos olhos da nossa terra-pátria mas aos olhos do mundo inteiro. O nosso milagre de 5 de Agosto no ano de Nosso Senhor de 1994. Aqui mesmo no Centro Habana. No Hotel Deauville, a alguns quarteirões de distância de onde eu morava.

    Alguma coisa tinha preordenado os eventos daquele dia inesquecível. Alguma coisa ou alguém ou alguma Força Invisível que lá se encontrava. Ninguém tinha dúvidas. Estávamos no auge desse Período Especial, e a tensão fermentava na ilha há semanas, desde 13 de Julho. Foi nesse dia que trinta e dois homens, mulheres e crianças foram mortos no mar, assassinados mesmo ao largo da nossa costa. O homem de verde e a sua matilha de rafeiros chamaram-lhe um acidente, um infeliz acidente. A sua legião de mentirosos insistiu que estavam apenas a tentar resgatar um barco sequestrado e a salvar os inocentes que seguiam a bordo.

    Mas então porque é que abalroaram o ferry com a lancha, vezes sem conta? Martelando no barco até que se partiu ao meio. Porque é que despejaram as mangueiras para cima das pessoas que iam a bordo para acelerar o seu afogamento? E porque é que, se se preocupavam assim tanto com os inocentes, esperaram uma hora antes de pedir ajuda pelo rádio, enquanto famílias inteiras se afogavam mesmo à vista deles? Enquanto os seus irmãos gritavam de agonia e os adultos seguravam nas crianças acima da cabeça para evitar que se afogassem? Assassinos! Terroristas! Sempre que pensava naquelas pobres almas que lutavam para se manter à tona e a sufocar com a água do mar, ficava tão cheio de raiva que só queria gritar. Desde 13 de Julho que se podia sentir a tensão nas ruas. Havana tinha-se tornado uma estufa de hostilidades e os meus irmãos e irmãs tornavam-se mais corajosos, a criticar abertamente a polícia, mesmo que não se tenham atrevido a desafiá-los antes – uma coisa completamente impensável. Os planos de fuga continuavam a surgir em força, mesmo que isso significasse outro sequestro, mesmo que a tentativa de fuga terminasse em tragédia. E que ano tinha sido, no que se refere às fugas. Só em 1994, os meus irmãos e irmãs tinham fugido em número recorde. O desespero era assim tão alto, a miséria era assim tão grande. Nunca o Cubano comum se tinha sentido assim tão faminto, tão amaldiçoado. Formava-se uma tempestade e desde os assassinatos de 13 de Julho, todos nos sentíamos possuídos por uma força imparável. Essa tempestade finalmente atingiu a terra quando, nos últimos dias de julho, se ouviu um rumor.

    Como muitos rumores, tinha partes que eram verdade e partes que não eram. Circulava uma história que a Poderosa Águia do Norte tinha enviado um ferry para apanhar todos os Cubanos que lá coubessem. Todos acreditámos naquele conto de fadas, por muito fantasioso que soasse; embora não parecesse assim tão impossível, para muitos. Não com o êxodo de Mariel ainda tão presente na nossa memória. Pouco depois, uma gigantesca multidão juntou-se ao longo do Malécon, esperando e rezando para que o ferry viesse. Segundo alguns relatos, cerca de cinco mil dos meus irmãos e irmãs tinham convergido ao longo do molhe à espera da sua chegada. Nunca apareceu. Era uma fábula nascida das elevadas esperanças e do desespero, um conto de ferrys. Mas dias depois dessa desilusão, a multidão ao longo do Malecón ainda não tinha dispersado totalmente. Resquícios dos esperançosos continuavam a deixar-se ficar por ali e a engonhar e a marinar lentamente, até que finalmente, a 5 de Agosto, o inferno subiu à Terra: El Maleconazo, como viria a ser conhecido. Conseguia ouvi-lo em casa, a alguns quarteirões de distância do epicentro. Eu queria correr para o alarido e juntar-me a ele mas o meu marido Rigo proibiu-me. Ele não me deixou sair de casa. De acordo com aqueles, afortunados o suficiente para testemunhar o incidente, privilegiados o suficiente para participar na História, um rapaz que não tinha mais de dezasseis anos tinha deliberadamente tentado entrar no Hotel Deauville: uma grave transgressão para qualquer Cubano: qualquer Cubano comum, banal.

    Aprendemos, desde o nascimento, a regra principal por aqueles lados: os únicos sortudos que podiam entrar pelas portas de qualquer hotel eram turistas e estrangeiros e membros da elite. Compreendíamos que era para nosso bem, para proteger os nossos olhos das riquezas que eles continham: sapatos que não eram para os nossos pés, comida destinada a barrigas que não eram as nossas. Aparentemente, aquele rapaz de dezasseis anos nunca tinha aprendido aquela regra primordial ou estava a borrifar-se para ela. Ninguém sabia exatamente o que é que lhe passou pela cabeça mas uma coisa sabiam. Enquanto ele discutia com o rafeiro que lhe bloqueava a entrada, outros transeuntes juntaram-se em defesa do rapaz e discutiam do lado dele. Porque é que ele não pode entrar? exigiam saber, Porque é que não pode?

    O que aconteceu a seguir deflagrou num piscar de olhos. Uma confusão aguda. Uma faísca espontânea. Alguém empurrou alguém e instantaneamente irrompeu uma luta, uma luta violenta. Os que se encontravam por perto intervieram e tentaram impedir o polícia de prender o rapaz. Mas desenrolou-se num ápice, esta maré célere. Apareceu demasiado rápida, esta onda que se movia velozmente, que trazia com ela uma aparição de vistas e sons que eram desconhecidas da nossa cidade. O som mais glorioso de todos tomou a forma de um vidro a partir-se. Sabe-se lá o quê ou sabe-se lá quem, tinha estilhaçado a grande janela frontal do Deauville e a vista mais esplêndida de se ver veio numa chuva de estilhaços de vidro. Nada nem ninguém podia travar o granizo de cristal que se precipitava para o chão.

    El Maleconazo. Eles chamaram-lhe um ato de terrorismo, os que davam as ordens por aqui. Era só paleio político, propaganda exagerada. El Maleconazo foi um ato de valor, um ato de coragem. Um hotel desfigurado – o símbolo mais odiado da distinção de classes por estas bandas e até mesmo um hotel que era uma referência no Malecón. Mas da desfiguração veio a determinação e aconteceu um motim. Todos estes sequestros e fugas e atos de desafio tinham desencadeado a resistência e, pela primeira vez em trinta e cinco anos, motins e manifestações surgiram nas nossas ruas. Pela primeira vez nas suas vidas sedentárias, os meus irmãos e irmãs sentiam-se inquietos e ardentes, e eu, como jovem insurreccionista que trabalhava para subverter este regime, não podia estar mais excitada.

    Era assim que eu me via, não como dissidente, não como pacifista, mas como insurreccionista. Dissidente era uma palavra demasiado bonitinha. Pacifista, patética. A palavra insurreccionista ressoava no âmago do nosso clamor como um toque estridente e impiedoso. Pedras e garrafas eram atiradas ao Deauville. Era uma insurreição. Cânticos de liberdade eram entoados pelos ares, uma verdadeira revolução desta vez, uma verdadeira revolta. Chegava de apatia. Nada do esmorecimento ou da estagnação que ameaçavam amainar-nos. O mito daquele ferry gigante desvaneceu-se rapidamente mas uma resolução de fugir e viver novamente tinha reaparecido.

    Mas nem todos viam os acontecimentos de 5 de Agosto como um milagre. Alguns, como o meu marido Rigo, viam-no como uma loucura. Outros, como a Mamã e as minhas irmãs, viam-no como pura estupidez. Eu era uma das três filhas na minha família: a irmã do meio, a que sobressaía ou a que ficava perdida no meio do baralho. Tinha uma irmã mais velha, Pilar, e uma irmã mais nova, Angélica. A minha mãe, Inez, estava bem viva mas o meu pai, Alejo, já não estava entre nós.

    Determinada como estava em concretizar os meus sonhos, naquela altura, esperava alguns obstáculos ao longo do caminho, nomeadamente por parte das mulheres na minha vida. Mas eu podia lidar bem com elas. Rigo era outra questão. Se sempre tinha pensado que tinha um parceiro infalível no meu esposo, nunca tinha esperado que o único homem que alguma vez amei se revelasse o meu maior obstáculo. Mas foi exatamente isso que ele se tornou nos últimos três dias: um obstáculo, e eu não sabia como é que o podia ultrapassar.

    Eles partiam no dia seguinte de Cojímar, a vila piscatória ali perto que Hemingway tornou famosa. Era de Cojímar que quase todos os meus irmãos e irmãs se catapultavam para o mar, e era daí que a minha melhor amiga Amalia e o seu namorado, Henry, também partiam. Não no dia depois de amanhã ou no dia a seguir a esse, mas amanhã, a 15 de Agosto.

    Henry, pintor e escultor talentoso, tinha construído a jangada com as suas próprias mãos. Ele conseguia fazer o que quer que seja com as suas mãos e construiu a nossa robusta embarcação num único dia, de talos de cana-de-açúcar e de maloja. Enquanto a grande maioria das jangadas eram montadas a partir de câmaras-de-ar e de outros plásticos flutuantes, Henry recusou-se a incorporar esses produtos. Desprezava tanto o plástico que até lhe custava admitir que o seu curso era de Artes Plásticas. Henry assegurou-nos que a nossa jangada não precisava de algo tão artificial como o plástico. Maloja – uma folha, basicamente, a rama exterior do caule da cana-de-açúcar que era descascada durante a colheita e queimada nos campos – tinha uma flutuabilidade natural muito superior e mais duradoura que a do plástico. Era um fato pouco conhecido. Por isso ele batizou a nossa jangada como La Maloja. Não era o nome mais auspicioso mas era adequado, dadas as circunstâncias. Ainda não tinha visto a jangada nem queria vê-la. Não antes de tempo. Admito que estava assustada. Mas também confiava nas suas capacidades. Se a La Maloja era suficientemente boa para a Amalia, era suficientemente boa para mim. O Henry queria sair daqui por duas razões: a sua arte e as suas ideias, que ele considerava serem uma e a mesma coisa. Arte e Comunismo, dois inimigos naturais. Dois irmãos que não só rivalizavam um com outro mas também se insultavam mutuamente. Quanto à Amalia, ela não se preocupava com nada exceto com o Henry. Se o namorado ia partir, ela também partia.

    ––––––––

    Era lusco-fusco, neste 14 de Agosto. Alguns viam o lusco-fusco como aquela hora mágica do dia em que a tarde e a noite se fundiam uma na outra com a suavidade do abraço de um amante. Mas o anoitecer era a parte do dia que eu menos gostava. Nunca gostei dele, daquele período de escuridão parcial em que nem a luz do dia nem a noite podiam chegar a acordo sobre qual deles devia prevalecer. O lusco-fusco não era de confiança. Eu achava-o dissoluto, indeciso. Seria a luz que se perdia no meio do baralho ou seria a luz que conspirava em segredo, mesmo no meio da ação? Seria a luz um ladrão foragido que tentava escapar ou seria a luz um ladrão à espera de atacar? Só havia uma coisa que eu gostava no anoitecer. Não era a suavidade das suas cores mas a rapidez da sua descida: aqueles momentos fatais da tarde em que a luz se fundia na escuridão com a rapidez de uma maré em retirada; aquela sua maneira de drenar todos os erros do dia e de devorar os seus desastres. Anoitecer, a deterioração do dia. Aurora, a morte da noite.

    Como eu queria que a noite chegasse. Como eu queria que a manhã já estivesse aqui. De manhã já eu estaria longe. Mas Rigo e eu continuávamos a discutir e não havia como dissolver a determinação tenaz do lusco-fusco. Este anoitecer do dia 14 de Agosto agarrava-se à luz do dia e mantinha-se firme, numa questão de vida ou morte. Se a escuridão geralmente a escoava com a facilidade de uma tempestade passageira, este anoitecer não ia ser removido nem restringido de nenhuma forma. Permaneceu à tona dos vestígios da luz do dia, recusando-se a misturar-se com a noite.

    Da mesma maneira, eu e Rigo arengámos durante horas. Daquela vez tínhamos a casa só para nós e podíamos discutir como um casal normal. Mas seguramente que não seria assim por muito tempo. A Mamã e as minhas irmãs estavam sabe-se lá onde e podiam voltar a qualquer instante e eu estava mesmo a chegar ao limite das minhas forças. Chegava de argumentações. Chegava de implorar. Chegava de gritos. Não havia tempo a perder. Só queria saber uma coisa do meu marido e ia perguntar-lhe pela última vez. Vou-me embora amanhã, Rigo. Vens comigo ou não? Tinha esperado uma eternidade pela resposta. O anoitecer permaneceu firme nas suas partículas de indecisão, tal como os pensamentos do meu marido. Depois, subitamente, enquanto Rigo pousava os livros e se virava para me encarar, olhei fixamente para ele e preparei-me. Aí vinha ela, a tão almejada resposta, a mesma resposta dos últimos três dias. Ele dirigiu-se a mim, lentamente, e ainda me lembro perfeitamente do visual dele naquele anoitecer do dia 14 de Agosto. Podia dizer-te exatamente o que ele vestia, exatamente o que eu vestia. Mas a única coisa digna de referência na nossa indumentária era a sua monotonia. Todas as roupas em Cuba eram monótonas ou desinteressantes ou simplesmente desbotadas. Quer as calças fossem azuis ou castanhas ou caqui, exsudavam monotonia. Quer as camisas fossem verdes ou beges ou cor de pele, lamentavam o seu desbotado. E quer as saias ou blusas fossem cor de mel ou lavanda ou verde marinho, languesciam numa vulgaridade desesperante. Tudo pendia dos nossos corpos, sem relevo e sem vida e apenas os nossos olhos continham um ligeiro indício de vida. Rigo olhou bem para dentro dos meus antes de me responder: os meus olhos inquietos à procura de uma pista; o meu rosto magro mas cheio de determinação que se preparava para ouvir a sua resolução. Demorou o tempo que quis, enquanto erguia as mãos para o meu rosto. Sorriu para mim, afetado, enquanto deslizava as mãos pelos lados do meu cabelo, tão longo e de um castanho sedoso e que me caíam abaixo dos ombros.

    Sim, murmurou suavemente, quase inaudível no escuro daquele persistente lusco-fusco. "Sim, amor de mi vida, eu vou contigo."

    Não o ouvi. Só conseguia ouvir a voz na minha cabeça que queria sobrepor-se à dele. Afastei-o de mim e recuei para a cómoda no meu quarto.

    "Mas, chico! reagi com agitação. Já te expliquei um milhão de vezes como é que isto funciona. Não percebes? Não acreditas em mim? Não temos de fazer a viagem toda através do estreito. Só temos de chegar a águas internacionais a doze milhas da costa. É aí que estarão os barcos de resgate, é aí que os americanos estão à nossa espera. Não percebes o que isso significa? Em apenas um ou dois dias, podemos estar nos Estados Unidos – the United States, Rigo!"

    Amor, tentou dizer. Ouve-me -

    Não, Rigo! Não me interrompas. Já sei o que vais dizer. Ouve-me tu. Só pretendes culpar a Amalia. Achas que isto é culpa dela mas não lhe ponhas as culpas em cima. Isto não é obra dela. Ela não me fez nenhuma lavagem ao cérebro. Não me encheu a cabeça com esquemas grandiosos. Fui eu que tomei a decisão, Rigo. A Amalia vai-se embora porque o Henry também vai. Ela quer estar com o amor da vida dela. Se me amasses tanto como ela ama o Henry, também vinhas – por isso não a culpes!

    Eu amo-te, amor, cala-te um bocadinho e ouve-me.

    Mas eu limitei-me a abanar a cabeça furiosamente e a gesticular para ele. "Não, Rigo. Não quero ouvir-te. Ouve-me tu. Já ouvi todos os teus argumentos. Já sei que não queres deixar a tua família. Sei que pensas que estás a abandoná-los. Mas nós estamos a fazer isto pela família. Irá chegar o dia em que eles vão querer sair de Cuba e vamos ser nós a levá-los daqui para fora, vamos ser nós a salvá-los. Claro, não conhecemos ninguém, mas temo-nos uns aos outros. Faremos novas amizades e teremos uma nova família. É isso que fazem os amigos, Rigo. Os amigos são a família quando não temos mais ninguém."

    Concordo contigo, amor. Não me ouviste? Eu disse que vou contigo.

    Ainda não o tinha ouvido. Não totalmente, pelo menos. Não com aquela inquietação que não me largava. Não com a ferocidade dos meus pensamentos que se agitavam, hiperativos e preparados para um confronto. Esperava que ele ripostasse, que rebatesse os meus argumentos um por um. O meu marido era um excelente orador, excelente na argumentação e habilidoso nas discussões e eu adorava travar batalhas mentais com ele. Era um dos nossos passatempos preferidos como casal: debater até morrer. Mas alguma coisa não encaixava. Ele tinha um problema qualquer. Deixou-se ficar ali, insensível e inerte, macambúzio e quase a afundar-se na minha presença. Tinha um olhar de rapazinho ferido e a sua expressão magoada era agora uma lança que penetrava em mim, tal como o fazia finalmente o eco das suas palavras – que se banhavam e afundavam bem fundo no meu crânio.

    Concordas com o quê? continuei, espumando de raiva. Com o quê?

    Com a partida, amor. Eu disse que «sim». Convenceste-me e eu vou contigo.

    Desta vez apanhei as palavras sem enganos, todas elas. Mas eu sabia que devia ter ouvido mal. Aquilo tinha de ser um engano e eu não conseguia falar. Não conseguia gritar dentro da minha cabeça porque não fazia sentido. A não ser que aquilo fosse outro milagre. E tinha que ser um. Estava a acontecer demasiado rapidamente, materializando-se do nada, como todos os milagres.

    Vais o quê? perguntei outra vez.

    "Eu disse que sim, amor- sim!"

    Era eu que queria responder mas as minhas palavras estavam a ser sequestradas. Eu queria pronunciar alguma resposta adequada mas a minha língua sentia-se encurralada ao mesmo tempo que a lancha das palavras de Rigo martelava e abalroava o ferry dos meus pensamentos, vezes sem conta, martelando a embarcação da minha teimosia até ela se partir ao meio. Era mesmo tola. Mesmo enquanto ele me aspergia de esperança e tentava acelerar o afogamento da minha dúvida, eu não conseguia escapar. Não conseguia fugir. Não se aquilo era tudo uma cilada. Eu tinha a certeza disso. Rigo sabia bem o que fazia. Não era nenhum inocente. Alimentava-me com falsas expetativas só para me calar. Se estava a falar a sério acerca da partida e aquilo não era um acidente, porque é que ele tinha demorado mais de uma hora a cair em si? Antes de enviar uma mensagem por rádio à razão e ver os meus objetivos de vida praticamente a afogarem-se perante os seus olhos? Enquanto o meu espírito gritava de agonia numa esperança estúpida e segurava ao alto o meu sonho para evitar que ele se afogasse. Assassino! Asesino! Foi nisso que ele se tornou. Enquanto o desespero da minha alma lutava para se manter à tona e para se impedir de saturar de estagnação, fiquei tão cheia de raiva que quis gritar. Mas eu estava demasiado esgotada para gritar. Depois de todo este arengar silencioso, formei as minhas palavras com suavidade e moderação.

    Vens? Foi mesmo isso que disseste?

    Foi isso que eu disse, amor. Eu vou contigo.

    "Mas como, chico? Há três dias que andas a dizer que... me dizes que... porquê? Até insististe que - "

    Esforcei-me para completar os meus pensamentos mas Rigo aproximou-se de mim e impediu-me, erguendo uma mão e colocando-a gentilmente sobre os meus lábios.

    Ouve, amor, tu conheces-me. Eu não acredito em milagres, no mínimo, mas tu tens razão. As coisas nunca irão mudar por estes lados e eu terei de aceitar isso. Nunca conseguirei realizar os meus sonhos a não ser que nos vamos embora daqui. Eu vou, amor, eu vou contigo!

    "Estás a falar a sério, chico? Estás mesmo a falar a sério?"

    Estou a falar muito a sério, disse ele. "Eu vou. Nós vamos."

    Mas apesar da ternura nos olhos dele, a dúvida consumia-me e eu não conseguia aceitar, mesmo que aquela fosse a resposta por que eu tinha esperado durante tanto tempo.

    Mas o que é que mudou? insisti. Há três dias que lutavas comigo e batalhavas e juravas aos quatro ventos que não ias fazê-lo. Disseste que era uma loucura. Porque é que agora -

    Rigo voltou a pousar a mão sobre os meus lábios, antes que a minha língua conseguisse sequestrar o resto dos meus pensamentos.

    Amor, respondeu. Porque é que não consegues deixar as coisas como estão? Porque é que tens sempre de insistir e insistir e insistir? Eu vou contigo e é só isso que importa.

    Foi então que aconteceu, que eu vi a luz a começar a drenar-se gloriosamente do interior do nosso quarto, que eu reparei na palidez das paredes, uma ferrugem suave e pálida, que se intensificava e escurecia até se tornar uma corrosão avermelhada. Finalmente! O anoitecer vinha finalmente a descer. O lusco-fusco finalmente a dissolver-se na maré da morte da tarde. Uma escuridão inconfundível erguia-se no horizonte mas, oh, eu conseguia ver mais claramente do que alguma vez tinha conseguido.

    Tens razão, Rigo. Eu insisto demasiado, não é? Vou tentar mudar, amor. Prometo que mudo, assim que chegarmos aos Estados Unidos.

    Um sorriso infantil e maroto iluminou-lhe a face, um vislumbre de excitação afluía-lhe aos olhos. "Ouve, amor. Para que saibas, só vou numa condição. Não vou assentar arraiais em Tampa ou em St. Petersburg. Não vou viver em Miami nem em nenhuma das Keys. Não quero parte nenhuma da Florida nem o cubaneo que lá há.

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1