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A Ilha dos Pregões
A Ilha dos Pregões
A Ilha dos Pregões
E-book504 páginas7 horas

A Ilha dos Pregões

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Sobre este e-book

A ILHA DOS PREGÕES ficou selecionada de entre as obras finalistas dos 179 romances candidatos ao PRÉMIO DE ROMANCE AZORÍN 2007.

SINOPSE

Um dia qualquer no primeiro quarto do século XXI, Perla Maria Cepeda, um espírito insubmisso libertino, regressa a uma Cuba pós-castro onde encontra a sua amiga de infância, Maria Quiñones, que tem de enfrentar uma acusação perante o recém-criado Fórum da Verdade e Reconciliação.

O que é que Maria fez durante o regime de Fidel Castro para receber esta notificação? O motivo constitui um enigma que vai ser revelado apenas no final da história e serve de justificação para um flash-back na vida de quatro meninas, todas com o nome de Maria, que passam as suas vidas numa sociedade que rege e controla cada minuto das suas vidas.

COMENTÁRIOS

Uma história apaixonante. Dura, crua e, ao mesmo tempo, ardente, caribenha, com um toque de mojito, lua cheia e oceano misterioso. Rafael R. Costa Escritor espanhol, best-seller na Amazon

Um romance excecional. Sindo Pacheco Escritor cubano Prémio Casa das Américas, EBEDE e UNEAC

Além de estar escrito numa prosa impecável, encerra nas suas linhas uma denúncia como poucas vezes tive a oportunidade de ler. Blanca Miosi Escritora peruana, best-seller na Amazon

A sexualidade das suas personagens não é o assunto central nem principal de A ILHA DOS PREGÕES, apesar da autora não a conseguir desenvolver de forma magistral. Baltazar Santiago Martín Escritor e promotor cultural

IdiomaPortuguês
EditoraBadPress
Data de lançamento25 de abr. de 2016
ISBN9781507138649
A Ilha dos Pregões

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    A Ilha dos Pregões - Marlene Moleon

    A ilha dos pregões

    ––––––––

    A ilha dos pregões

    Finalista do Prémio Azorín para Romance

    ––––––––

    Marlene Moleon

    ––––––––

    A ilha dos pregões

    Direitos de Autor © 2007 Marlene Moleon

    Direitos de Autor © 2012 Capa: Elena Blanco Moleon

    Direitos de Autor © 2012 Esta edição Eriginal Books

    www.eriginalbooks.com

    www.eriginalbooks.net

    ––––––––

    ISBN-13: 978-0-9829213-4-0

    Número de Cartão no Catálogo da Livraria do Congresso 2012952639

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, distribuída ou transmitida, através de qualquer forma ou meio, incluindo: a sua fotocópia, digitalização ou qualquer outro método eletrónico, sem a autorização prévia por escrito do autor, exceto no caso de pequenos excertos utilizados em críticas literárias e determinadas utilizações não comerciais dispostas pela Lei referente aos Direitos de Autor.

    Todos os direitos reservados

    Impresso nos Estados Unidos da América

    Em memória do meu pai,

    um dos comandantes da Revolução,

    e à minha mãe,

    que nunca pertenceu ao Partido

    ––––––––

    A Juan Antonio

    pelo amor e paciência, e

    a Elena,

    um desafio para que escreva ainda melhor

    Cuba é um ajiaco,

    antes de tudo, uma panela destapada.

    Isso é Cuba, a ilha,

    a panela colocada ao lume dos trópicos...

    panela singular da nossa terra,

    que deve ser em barro, muito aberta.

    Senhor Fernando Ortiz

    ––––––––

    Será que valeu a pena?

    Pergunto, não sei

    Será que valeu a pena?

    Respondo, não sei.

    Pablo Milanés

    PREÂMBULO

    A citação

    Um dia qualquer no primeiro quarto do século XXI

    Já? Só isso? Na memória de Maria surgiram uma a seguir à outra, como se tivesse folheado com urgência as páginas de um livro, as mil formas imaginadas da grande mudança. Maria iria recordar para sempre aquele dia ou, pelo menos, disse a si própria que deveria recordar-se de todos os pormenores por se tratar de um dia importante: Fidel tinha morrido.

    Quantos cubanos teriam desejado viver aquele momento? Quem sabe. Na realidade, o desejo comum era que terminasse o seu eterno reinado. Alguns tinham-no ansiado com raiva e desespero; outros rogado ora aos santos católicos ora aos deuses africanos, prometendo-lhes cumprir pesadas penitências se lhes concedesse aquilo que desejavam. Aqueles que tinham esperado de forma silenciosa, a pensar que aquilo simplesmente não podia continuar, viram passar com cansaço os primeiros meses de tumulto e, a seguir, um ano atrás do outro, até chegar aos dez, vinte, trinta e mais de quarenta. As expetativas de que abandonasse o poder ou fosse destituído diluíram-se com o sal na água. Alguns tinham apenas a esperança de sobreviver e conseguir ver o final daquela dinastia perpétua.

    No dia em que anunciaram a sua morte, tão prevista por jornalistas, especialistas, magos e bruxos, ainda ninguém conseguia acreditar. De tanto esperar, desconfiavam da veracidade da notícia; alguns tinham julgado que se tratasse de uma operação secreta da Segurança do Estado para apanhar exploradores. E se o barbudo voltasse a aparecer enraivecido a pronunciar um discurso interminável e incoerente?

    Os seus mais fanáticos seguidores confiaram na ressurreição do líder, até passarem três dias depois de ter sido dada a notícia da sua morte. Muitos cubanos choraram-no como se tivessem perdido um pai. A verdade é que não se sabia ao certo a data do seu falecimento e murmuravam a toda a ilha que não tinha sido tornado público até passarem alguns dias, quando o exército e as forças policiais já tivessem tomado todas as medidas de segurança para que não estourasse uma guerra. Temiam um tumulto de grandes dimensões.

    A seguir à morte do Comandante e da saída posterior de cena do seu sucessor, o governo provisório prometeu aos cidadãos que dentro de dezoito meses iria convocar eleições. A reação foi unânime: «Já me disseram isso uma vez e a coisa durou quase meio século». Tal como em 1959, as pessoas esperavam que um dia os jornais dissessem «eleições para quê?», como o ciclo maldito e fechado de uma história que se repetia de forma interminável.

    Maria não conseguiu conter um sorriso ao recordar-se, sendo uma criança, como é que ele justificava que não houvessem eleições: uma Revolução não se pode fazer em quatro ou cinco anos, são precisos vinte ou trinta para ultimar os planos que iriam transformar aquela ilha num paraíso terreno. Mas agora, contra todas as expetativas, aos dezasseis meses e um dia anunciaram os comícios. Nessa mesma tarde, Maria recebeu uma notificação que lhe destroçou a alma.

    Um breve e alucinante pesadelo abanou-a de madrugada e acordou completamente suada. Um Fidel clonado, jovem e sensual, voltava a declamar discursos inspirados que enfeitiçavam as multidões. Sentiu um novo arrepio ao recordá-lo. Continuou às voltas na cama sem conseguir dormir. Maria sabia que não iria dormir mais até ao final da noite, pelo que decidiu levantar-se e fazer café.

    Debruçada sobre o balcão, lançou um olhar rápido ao mar que se vislumbrava por detrás dos prédios altos de El Vedado. Amanhecia com suavidade, sem a agitação das últimas semanas. Tudo parecia mais sossegado sem o rebuliço dos apregoadores e o ruído sonoro dos automóveis. «É bom levantar cedo para colocar a cabeça em ordem», pensou enquanto inspirava com desejo o ar salobro. Os suaves matizes cor de rosa e dourados da cidade tornaram-se rapidamente um intenso reflexo vermelho sangue que flamejou tetos e fachadas e ficou sobressaltada como se estivesse perante um mau pressentimento. Ai Maria! Tu e as tuas superstições! Ninguém diria que és médica. Bebeu com satisfação o café bem forte e leu novamente o enorme letreiro na calçada contra Cuba com todos e para o bem de todos. Seria verdade desta vez? Para todos?

    No entanto, por vezes, ficava tão surpreendida por não ver aquela outra cerca eterna como se olhasse para ela todos os dias durante tantos anos e se tivesse tornado invisível. Quase esboçou um sorriso ao recordar a madrugada em que alguém colocava por baixo do imenso Fidel, estamos contigo, com letra pequena apesar de legível para aqueles que passavam, muito, muito descontentes; o que obrigou a turnos adicionais de guardas noturnos para que não aparecessem outras ofensas ao Comandante.

    Desde que tinha recebido a notificação para se apresentar numa audiência do Fórum da Verdade e Reconciliação, sentia-se invadida pela inquietação que tinha antecedido as catástrofes e, por vezes, a divagar incoerências, ao ponto de mais de um conhecido lhe ter perguntado se estava doente. Tinha ouvido a notícia da criação do Fórum num programa de rádio havia vários meses, mas naquela altura não tinha prestado grande atenção e agora não se conseguia recordar de todos os pormenores. Uma organização constituída por ex-comunistas, jornalistas, sindicatos independentes, líderes religiosos e outras organizações políticas da dissidência e do exílio tomaram a iniciativa de criar o Fórum e, até mesmo o futuro governo que tinha saído das eleições tinha dado resposta ao pedido de justiça que muitos cubanos tinham exigido. As notificações eram voluntárias, não implicavam dever judicial e diziam que a cooperação e arrependimento que pudessem ser alcançados em audiência privada entre vítimas e agressores seriam tidas em conta para um futuro perdão conjunto.

    «Não me sinto culpada», disse Maria em voz alta, sem convicção. A sério? Não és culpada? Pode ser pior dito dessa forma, mas a verdade é que não te recordas por nada do rapaz que te acusa, nem mesmo o nome dele te é familiar. De que é que me acusam, porquê ter de ir buscar esta porcaria agora? «Caramba, estou-me a cagar para Deus» grita com desespero para a cidade. Arrepende-se de imediato, olha para o céu, procura o sol nascente no horizonte e, como é hábito idolatrar, faz uma oração a olhar para o astro cor-de-laranja que já se iça em plena redondeza sobre as águas douradas do mar Caribe: «Deus, tu sabes que isto não tem nada a ver contigo».

    Com o olhar perdido nas memórias remotas, parece contemplar a cidade que já suavizou as cores e vai despertando com pesar do silêncio madrugador para uma incrível confusão. Desvia os olhos para o mar e respira fundo o salitre da fresca brisa do amanhecer. Como é que há cubanos que se conseguem habituar a viver longe do mar? Corrige: não foi por decisão própria, não tinham era alternativa.

    Bebe mais um gole de café que já está morno. Só querem saber a «verdade» para que nunca mais volte a acontecer outra coisa semelhante neste ilhéu que foi considerado o umbigo do mundo. Qual é a verdade para quem me está acusar? Será que se trata de algum oportunista de última hora, ou de alguma vítima que na verdade me considera culpada da sua desgraça? Qual é a verdade quando existem perguntas que têm mais do que uma resposta, como é que hão de saber?, será que existe apenas uma verdade? Ai Maria! Querias esquecer, mas o passado não se pode apagar.

    São sete da manhã. Entra para conectar o ladrão de água para que se encham os depósitos de plástico instalados há anos por um amigo canalizador como pagamento por um antigo televisor a cores. O dinheiro naquele tempo não valia muito, pelo que era comum fazer-se trocas de mercadorias e serviços como na pré-história. És uma das felizardas em Havana que recebe uma hora de água quente de dois em dois dias. Existem bairros que têm apenas uma hora por semana e noutros passam-se meses em que as tubagens estão completamente secas.

    A cidade está em ruínas. Não só edifícios e casas a apresentarem um aspeto lamentável; as ruas, aquedutos, redes de esgotos, instalações elétricas precisam de grandes reparações; estamos a falar de biliões que vão ser necessários para a reconstrução. Existem projetos para recuperar o antigo esplendor da capital. Alguns habitantes de Havana irradiam esperança, enquanto outros, ceticismo. São demasiados anos de promessas por cumprir.

    Sente palpitações e um sabor amargo na boca. Qual será a acusação? A cabeça vai estourar se continuar a tentar adivinhar. Caminha em direção à banheira, abre a torneira e deixa correr a água gelada sobre o corpo. Há anos que não desfruta de um banho quente. Os pequenos prazeres da vida diária foram desaparecendo aos poucos até esquecê-los por completo. As coisas mais simples como tomar um banho, comer um bom pão fresco acabado de sair de forno, ir a um restaurante numa ocasião especial eram tarefas difíceis, para não dizer impossíveis.

    É incrível a facilidade com que cada um consegue fechar moralmente os olhos, tapar os ouvidos e cruzar os braços. Agora é aquilo que vês. «Será que devo dizê-lo desta forma?» Esse foi o tempo em que te refugiaste no sexo. Procuravas corpos jovens com um desenfreamento e luxúria fora do comum. Querias que te espetassem um pau, lambessem e batessem para acalmar a consciência. Fazias amor de forma insaciável e violenta com rapazinhos que podiam ser teus filhos como se fosse o último dia da tua vida. Quase sorris ao recordar alguns momentos de prazer inesquecíveis. Será por isso que aqui se tempera e bebe tanto? Para silenciar as consciências sujas? Primeiro, querias esquecer o presente porque não vias um futuro, agora queres esquecer o passado porque compromete o teu futuro. Termina o banho com a última gota de água e olha para o relógio. Foi menos do que uma hora que durou. Será que fecharam os depósitos? O ladrão desliga a água.

    Ao ver o reflexo do seu corpo flácido no espelho da banheira não consegue conter uma careta e cobre-se de imediato. Que ironia, Doutorazinha! Resistes ao envelhecimento, tu que sempre apregoaste aos teus pacientes que o primeiro passo é aceitarem-se a si próprios. Vai à cozinha, descasca uma laranja, coloca o primeiro gomo na boca e chupa o doce sumo com satisfação. Um colega recomendou-lhe uma dieta de fruta e legumes para limpar o sangue de gorduras e toxinas. Ai, Doutorazinha! E como é que se limpa a alma? No final, justificavas-te a ti própria a dizer que eras uma simples profissional; que estavas acima da política. Na realidade, tinhas apenas a ambição de ser uma boa médica, nunca quiseste ser uma dirigente política. Então, de que é que me acusam? Qual é a minha culpa? Qual é o crime de que estou a ser acusada? Ai Maria! Será que não sabes mesmo?

    Terminou o último gole de café quase frio, vestiu-se de forma descontraída e saiu para a rua. O sol já estava forte e, quando olhou diretamente para ele, teve de semicerrar os olhos. A luz púrpura do amanhecer tinha-se transformado numa claridade translúcida como se a seguir a uma grande chuvada o mundo quisesse estrear novas cores.

    Capítulo 1

    As Quatro Marias

    1

    1960

    Eram quatro Marias, todas tão diferentes que o olhar alheio não conseguia encontrar aquilo que as poderia juntar em intermináveis tertúlias e coscuvilhices. A amizade remontava ao tempo em que a memória amadurece. Primeiro, começou por ser uma relação difusa, como um sonho de amanhecer em que apenas se recordam cenas fragmentadas. Ao recordar o início, todas chegaram à conclusão que foi no dia em que uma lancha aportou clandestinamente na costa de Havana como a data inaugural da relação intensa, corrosiva e tortuosa que iriam manter por muitos anos.

    Naquela manhã, chegou à escola um soldado vestido de verde oliva. Colocou-se sob o umbral da porta de entrada, com as pernas afastadas, como se daquela forma quisesse ocupar todo o espaço que ainda era demasiado amplo para o seu corpo franzino. As mãos agarravam de forma ameaçadora numa metralhadora e o olhar concentrado sem parar nos matagais cerrados que delimitavam a escola.

    A primeira coisa que o jovem rebelde fez foi informar o diretor de que não poderiam sair para o pátio até capturarem os bandidos contrarrevolucionários que tinham entrado no país de forma ilegal nessa madrugada e, agora, de certeza que se esconderiam como ratos imundos no Monte Barreto, uma florestazinha que era apenas uma espessura onde abundavam as resistentes uvas caletas, o irritante guão e as urtigas que picam. O monte claro nas imediações da escola estava aninhado no coração do bairro Miramar. O venho diretor, espantado e ofegante, depois de limpar o suor da testa, informou pelos altifalantes que não haveria recreio no pátio, só que, precisamente quando ia começar a transmitir aquilo que o militar lhe tinha dito, apesar de ser numa versão que tinha considerado mais adequada para crianças, o soldado numa rápida corrida entrou no escritório e tapou-lhe o microfone.

    —Espere, Espere. Você é burro ou faz-se? Por acaso, quer avisar o bandido?

    O diretor balbuciou mil desculpas sem concluir nenhuma de forma coerente.

    À hora do almoço, o guarda continuava parado à entrada da escola, na mesma posição ameaçadora, embora, até então, o seu olhar não fosse tão inquisitivo. As costas e os sovacos da camisa denunciavam grandes marcas de suor e o ato continuado de humedecer os lábios com a língua fazia antever um ser cansado e sedento. O diretor aproximou-se com um sorriso, embora mostrasse alguma timidez no andar, como se lhe pesassem os anos e estendeu-lhe um copo de água com cubos de gelo. O militar devolveu-lhe o sorriso, ou, talvez o ar de satisfação fosse direcionado para aquele líquido tão precioso. Bebeu com rapidez e, sem tempo para agradecer, queixou-se com dores enquanto tapava a testa e parte do nariz com a palma da mão e inclinava a cabeça para a frente:

    —Caramba, deu-me aquela pontada do camponês!

    —Se calhar, bebeu muito depressa —desculpou-se um pouco assustado o velho professor.

    Num único instante, o soldado recuperou e observou pela primeira vez o diretor. Era um homem de estatura média com cerca de cinquenta anos. O cabelo grisalho e os olhos escondidos por detrás de uns espelhins de armação dourada aristocrática com lentes grossas davam-lhe um ar de avô respeitável. Estava vestido de forma elegante uma camisa branca impecavelmente combinada com uma gravata sóbria e calças escuras. Na mão resplandecia um anel de ouro, recordação de final de curso da Universidade de Havana. O combatente de verde oliva viu o anel e, indubitavelmente, não percebeu o seu significado. Cheirou sem disfarçar ao sentir um aroma perfumado que lhe pareceu caro porque não tinha o mesmo cheiro da colónia barata 1800 de Crusellas que ele costumava usar desde que tinha chegado à cidade. A sua desconfiança incidia na presunção de que pudesse ser o mesmo diretor de quando o viveiro era privado. Tinham deixado continuar a trabalhar nas escolas nacionalizadas praticamente todos os que o quisessem, embora fosse do conhecimento de todos que não podiam confiar demasiado naquele tipo de pessoas por guardarem rancor, para não dizer ódio, relativamente àquilo que estava a acontecer no país. Fosse como fosse, Miramar era um antigo bairro da burguesia e aquele que estava à frente do seu nariz podia ser o mesmo diretor da outra escola para os filhos de burgueses.

    O jovem soldado era um camponês proveniente de uma zona problemática da Serra Maestra e um ano depois de ter chegado a Havana ainda se assustava com as luzes da noite da cidade. Proveniente de uma família muito pobre, tinha trabalhado desde criança por um salário miserável numas terras que não eram suas. A desconfiança em relação ao diretor da escola estava a aumentar, de forma inconsciente, pelo facto fortuito de aquele senhor de idade avançada lhe fazer lembrar o dono do latifúndio para o qual suavam sol a sol todos os camponeses da zona.

    Um dia, chegaram ao monte uns forasteiros a dizer que o mundo não tinha de ser daquela forma. Segundo diziam aqueles barbudos, os camponeses podiam e tinham o direito a ter as suas próprias terras e uma vida honrada; a aprender a ler, escrever e ir ao médico sem terem de pagar para isso. Sem pensar duas vezes, uniu-se aos rebeldes para se convencer mais tarde de que aquela tinha sido a melhor decisão da sua vida. Desde a madrugada do dia um de janeiro de 1959 que tinham começado a construir um mundo novo e 1960 foi proclamado o Ano da Reforma Agrária. Pela primeira vez, a sua família e muitas outras como a sua eram donas de um punhado de terra. Só que havia os mal-agradecidos que queriam deitar aquele sonho por terra, manter as suas riquezas à custa do trabalho alheio e, por isso, sentia-se na obrigação de defender a Revolução dos seus inimigos afastando-os como animais.

    — Tu és revolucionário? —perguntou franzindo a testa.

    —Claro, companheiro... que pergunta é essa? —sussurrou com alguma hesitação o velho diretor, que começou logo a suar como se o soldado lhe tivesse devolvido todo o calor com o copo vazio.

    O jovem de verde oliva permitiu que as crianças fossem almoçar ao refeitório na condição de regressarem logo a seguir à sala de aula. Os professores até então estavam tão nervosos que não conseguiam continuar a dar as aulas, decidiram empurrar as mesas e carteiras para permitir que os alunos se juntassem em grupos de quatro para jogarem jogos de mesa. As crianças estavam habituadas a ver armas grandes em todos os pontos da cidade e já não sentiam medo perante a presença de metralhadoras e revolveres - nem mesmo perante bazucas, tanques ou canhões -, pelo que, encararam com entusiasmo a interrupção das aulas. Essa foi a primeira vez que as quatro Marias conversaram.

    —Chamo-me Perla Maria —disse com um sorriso uma menina com um ar luminoso e olhos cor de mel de flor de laranjeira.

    —Chamam-me Toña... bem, Maria Antónia é o meu nome completo —respondeu uma criatura de pele escura e dentes muito brancos.

    —Eu sou apenas Maria —após uma breve pausa repetiu de forma tímida— Maria Quiñones —e como se fizesse parte da sua identificação acrescentou com um ar decidido— e vou ser médica.

    — Mariflor das Mercedes, mas em casa todos me tratam por Mery, com «e» como dizem os americanos, —exclamou uma voz estridente que ao perceber que não era entendida na matéria acrescentou—. O a pronuncia-se ei em inglês, é por isso que se diz Mery. Só a minha avó é que me chama Mariflor das Mercedes quando está zangada comigo —disse a menina rechonchuda com cara de lua, cabelo grisalho e muito liso.

    Perla esboçou um sorriso. Ela falava inglês na perfeição, mas não se gabava dessa nem de nenhuma outra das suas capacidades. Tinha vivido em Nova Iorque desde que era uma bebé chorona e comilona até toda a sua família regressar à ilha com grande entusiasmo, enquanto liam as notícias dos barbudos no New York Times. Regressaram para ajudar na construção de uma nova Cuba. A sua mãe, Letícia, da arte naif haitiana e sócia de uma galeria da Quinta Avenida, perto do Museu Guggenheim, não parava de repetir por aqueles dias que finalmente estava a surgir uma esperança para o país. O seu pai, um pintor famoso, considerava que a Revolução Cubana era o grande acontecimento do século XX. Ia ser maior do que a própria Revolução Russa, afirmava a todos aqueles que quisessem ouvi-lo e também àqueles que não partilhassem do mesmo enaltecimento.

    —Que divertido! Quatro Marias, bem, —corrigiu— quase quatro se contarmos com a Meery, —disse Toña prolongando o e— o que gerou uma gargalhada breve e coletiva.

    —Vamos ser amigas —afirmou Perla enquanto lançava com os seus grandes olhos cor de âmbar um olhar escrutinador a Toña que sentiu um calor repentino dentro de si e sem conseguir evitá-lo inclinou o olhar para o chão.

    As quatro Marias aborreceram-se logo do jogo de mesa e preferiram inventar os seus próprios entretenimentos. Aconteceu que Perla Maria tinha inovado o jogo favorito de todas as meninas da escola. Numa época em que o sonho de qualquer rapariga era casar, ter muitos filhos e uma bela casa com jardim, «Futuros» —como se chamava o jogo— era a diversão favorita. Consistia em fazer uma lista de perguntas, cujas respostas eram selecionadas de outra lista com dez possibilidades de respostas. As perguntas costumavam ser: Com quantos anos vais casar?, como é que se vai chamar o teu namorado?, onde é que vão dar o primeiro beijo?, qual vai ser a sua profissão?, quantos filhos vão ter?, onde é que vai ser a tua lua-de-mel?, onde é que vão viver? Algumas respostas eram boas e outras ridículas. De acordo com os números que apostasse, poderia acabar casada com um senhor chamado Sinforoso, ter vinte filhos, ter sido beijada pela primeira vez num cemitério e viver toda a sua vida em Cacarajícara, que não faziam ideia de onde se situava, embora parecesse bem primitivo.

    Alguns «Futuros» tinham só pouco mais de vinte perguntas e depois de jogarem várias vezes, começavam a memorizar as respostas mais adequadas, o que acabava por ser impossível com o de Perla Maria, porque chegou a elaborar perto de duzentas páginas. Mas ainda não satisfeita com o resultado, fez ainda mais. Modernizou o jogo com algumas perguntas escandalosas: onde é que vais fazer amor pela primeira vez? com quem é que vais enganar o teu marido?, em que posição? Não compreendiam de todo o sentido de algumas respostas, nem mesmo das perguntas, apesar de fazerem de conta que tinham compreendido por terem vergonha de admitir a sua ignorância. A pergunta sobre as posições, com expressões como «o sujeito», «a profunda» ou «o 69» era um código indecifrável. Riam-se como se fossem peritas do Kamasutra e, no entanto, não faziam a mais pequena ideia daquilo que estavam a falar.

    Perla Maria fez-se muito importante perante o olhar das colegas por ter tanta informação sobre sexo. Explicou com luxo detalhes como por exemplo, em que é que consistia ser «senhorita», como é que se consumava um matrimónio, ou em que circunstâncias é que podiam ficar grávidas sendo virgens, a importância de aprender a fazê-lo por trás e as consequências de um «passo errado». As suas explicações não eram muito precisas pelo que, sem saber, contribuiu para o suicídio de uma das duas tão fascinadas ouvintes que, muitos anos depois, ao ser beijada e acariciada pela primeira vez, pensou ter perdido a virgindade e atirou-se para o vazio do andar dezasseis de um edifício do El Vedado. Eram tempos em que a virgindade era o bem mais preciosos de uma mulher e ainda não eram muito conhecidos os trabalhos científicos de Kinsey.

    Mariflor era da opinião que a mulher devia resistir, o pior que podia acontecer a uma dama era ser uma conquista fácil, porque os homens perdiam o interesse depois de terem conseguido o que queriam. Aos homens é preciso fazê-los sofrer, afirmava convencida da sua sabedoria. E o que é que acontece quando finalmente te tiver? Vai-se cansar? Aqui vinha a divergência de opiniões. Havia quem acreditasse que sim, que se iriam aborrecer e partir para uma nova presa, era assim a vida. Outras eram da opinião que não iriam largar aquilo que lhes tivesse dado tanto trabalho a conseguir. A chave está em enfeitiçá-los. Fazer-lhes um feitiço funciona sempre, dizia outra ao mesmo tempo que apresentava receitas de candomblé.

    Quando de cansaram daquele passatempo, Mariflor propôs o jogo das palavras. Era dita uma palavra e respondia-se com outra relacionada com a primeira. Se a relação não estivesse clara, a lógica do sentido devia ser explicada e, por votação, decidiam se a resposta estava, ou não, correta. Mariflor era muito hábil com as palavras.

    —Rosa —Espinho.

    —Menino —Bola.

    —Paloma —Fidel.

    —Amigas —Marias.

    —Valente —Fidel.

    —Havana —Dique.

    —Revolução —Pátria.

    —Estados Unidos —Ianque.

    —Pátria —Fidel.

    —Comandante —Fidel.

    —Sol —Lua.

    —Revolução —Fidel.

    —Pátria —Fidel.

    —Mar —Espuma.

    —Cuba —Fidel.

    Este jogo de palavras tornou-se o favorito das Marias e, algum tempo depois, fizeram-no ainda de forma mais complexa: uma compunha uma frase e as outras Marias acrescentavam toda uma bacharelada. Dessa forma, durante muitos anos, escreveram juntas mais de uma centena de cadernos, nos quais aparecia todo o tipo de histórias. Foi tal o desfrute que sentiam com aquela diversão que o saco de gatos das escrituras se estendeu aos seus próprios diários. Cada maria emendava, dava opiniões e ampliava as memórias das outras três.

    Para alívio do velho diretor chegou a hora da saída. Um bando de crianças desatou aos gritos de alegria ao ouvir a tagarelice que anunciava o fim das aulas e correu em alvoroço para a rua. Ao mesmo tempo, a professora das quatro Marias repetia em voz alta:

    —Não se esqueçam de escrever a vossa opinião sobre a leitura de hoje. Quatro parágrafos —e insistia com teimosia no meio da algazarra—. Não se esqueçam de fazer o trabalho para amanhã!

    Muitas mães vieram buscar os filhos, outros saíram a andar depois de ouvirem os avisos do soldado para que acompanhassem uns aos outros no caso daqueles que vivessem ali perto.

    Maria Quiñones foi com Perla. Caminharam juntas por baixo da sombra das acácias rubras vermelhas e amarelas porque acontece que viviam perto uma da outra. O dia fora do comum não as impediu de pararem para comprar uma doce massa real ao vendedor da esquina. A seguir, contemplaram embevecidas durante alguns minutos uma grande fila de formigas coloridas e, mais tarde, entretiveram-se a caçar lagartixas que se penduravam nas orelhas como brincos vivos; não lhes cortavam o rabo como faziam os rapazes porque, apesar de toda a gente saber que lhes ia voltar a crescer, era uma crueldade desnecessária.

    Miramar era um dos bairros mais finos da Havana dos anos cinquenta. O cheiro a salitre misturava-se com o das plumárias e gardénias. Majestosas mansões irrompiam ao longo das grandes avenidas que se estendiam paralelamente ao mar. Eram muitos os palacetes neoclássicos com fontes brancas e esculturas em mármore italiano, rodeados de enormes jardins onde abundavam as rosas, sempre-vivas, coroas Imperiais, buganvílias, mar pacíficos e açucenas, no meio de choupos podados com caprichosas silhuetas e densas centúrias de loendros. No entanto, predominavam as ecléticas residências onde o arquiteto tinha misturado exuberantes ornamentos renascentistas e barrocos para satisfazer a pompa de uma burguesia em crescimento que pretendia refletir o prestígio da sua posição social. Em contraste, outras casas com menos pompa, mas mais bonitas, resgatavam os valores da arquitetura colonial rica; nelas, reapareciam vitrais que filtravam a luz cega do Caribe em vermelhos e azuis suaves; janelas panorâmicas amplas e portas envidraçadas, varandas em ferro fundido e telhados cobertos com telhas catalãs.

    O bairro tinha perdido o seu antigo esplendor dando uma sensação de total abandono. Em muitos jardins, as ervas daninhas crescidas em total liberdade escondiam as pomposas fontes em mármore branco. Ninguém podava as roseiras e as flores iam murchando. Algumas casas apresentavam paredes que começavam a perder a cor devido ao sol, janelas hermeticamente fechadas, vidros empoeirados e nas portas principais, várias marcas de papel engomado com carimbos oficiais até ao marco deixavam ler: «Zona congelada». Proibido caminhar».

    Perla parou em frente a uma das casas seladas. Ali tinha vivido um médico amigo da sua família, disse Maria e agarrou-lhe na mão ao mesmo tempo que lhe disse «anda comigo». Correram juntas por um saguão no meio de duas mansões abandonadas. «Todas as tardes entro numa casa vazia. É divertido».

    Escapuliram por uma estreita janela do fundo, saltaram lá para dentro e esperaram até os olhos se habituarem à escuridão. Com os dedos entrelaçados, começaram a avançar com passadas curtas, tentando não fazer barulho.

    A residência por dentro não dava a impressão de abandono que se vislumbrava do jardim, a não ser pelo cheiro a fechado que sufocava a respiração. Estava decorada com esmero, móveis sólidos de mogno trabalhado, pesadas cortinas cor de damasco, grandes quadros de paisagens exóticas e enormes espelhos biselados com elaboradas molduras douradas. Na monumental mesa da sala de jantar, por cima de uma imaculada toalha em renda ainda resplandecia um serviço de porcelana e guardanapos em linho com iniciais bordadas. Talvez as borras secas do café com leite nas chávenas fossem o único sinal do longo tempo passado desde que alguém tinha tomado ali o pequeno-almoço pela última vez.

    Subiram por uma enorme escada semicircular em mármore de Carrara. Nos quartos, os lençóis estavam mexidos. No chão, espalhadas, estavam fotografias a preto e branco num monte, muitas fotografias antigas em sépia e apenas algumas de antigas baixelas de prata. Senhoras finas destacavam-se com chapéus de palha com flores e plumas, meninos vestidos como marinheiros com calças curtas e meninas vestidas com lacinhos e tules.  Todos sorridentes, mulheres e homens de diferentes idades e épocas. No quadro que estava na parede, notava-se a marca de uma cruz, feita possivelmente ao tirar um crucifixo que tinha lá estado pendurado durante muito tempo. No chão, um ursinho de peluche e uma caixinha de música.

    —Só os deixam levar uma mala por pessoa —disse Perla ao mesmo tempo que olhava de forma um pouco distraída para as fotografias que estavam no chão—. Quando vais —não era necessário acrescentar «de Cuba», ir tinha adquirido a fatal conotação de uma ação irrepetível, ir não tinha volta a dar—, se os anéis têm muitos brilhantes, tiram-tos. Uma senhora engoliu a aliança de casamento para poder levá-la —permaneceu em silêncio e, a seguir, perguntou com tristeza, quase para si própria—: Onde é que estarão agora?

    Maria não respondeu.

    Deslizaram pelas escadas e entraram na biblioteca. Estantes altas em madeira, cheias de livros organizados de forma perfeita, cobriam as paredes. Todos encadernados de forma impecável: várias enciclopédias, romances, poesia, muitos livros sobre medicina e alguns volumes com títulos em inglês e francês. Numa estante junto à entrada vislumbravam-se alguns espaços vazios.

    —Faltam quatro livros —disse Maria— Quais foram os que tu levaste?

    —Três —respondeu Perla— faltam três, o quarto levei eu —Maria lançou um olhar de reprovação pelo que Perla acrescentou:

    —Não o roubei, levei emprestado para ler. Quando acabar de ler, devolvo-o e escolho outro.

    Perla tinha três paixões: a leitura, o mar e uma curiosidade precoce por sexo. Era uma leitora insaciável que ficava até de madrugada a devorar páginas. Alguns livros, lia devagar para não estranhar depois as personagens. Prolongava o prazer limitar-se a um determinado número de páginas por dia só que, na maioria das vezes, não se conseguia conter e terminava-os em duas noites de leitura. No ano seguinte, iria obter o diploma de «alfabetizadora», porque com apenas onze anos tinha ensinado a ler Cacha, a velha empregada da casa e Pancha, a avó de Toña. Nesses momentos, sentiu-se abençoada: via-se a si própria como uma espécie de Promessa das letras. Durante muitos anos, acreditou que a maior infelicidade era não ter acesso a livros e não podia imaginar que muitos anos depois viria a sofrer com essa desgraça.

    —Escolhe um, volto já —disse Perla ao mesmo tempo que se escapulia da biblioteca.

    Maria tentava decidir quais é que ela teria levado se estivesse na mesma situação. Recordou as suas últimas leituras: As mil e uma noites, os livros de Júlio Verne, Coração, Mulherzinhas, A Ilha do Tesouro, Os Três Mosqueteiros. Só três?», pensou. Não saberia escolher.

    Perla subiu pela pomposa escada e foi ter diretamente ao quarto principal. Registou várias gavetas de uma pesada cómoda ornamentada com paisagens orientais e detalhes em prata. Contemplou de forma detalhada um traje interior em seda preto e conjuntos de lingerie muito elaborados. A seguir, enfeitou-se com colares de pérolas e brincos dourados retirados de um antigo cofrezinho que servia de guarda-joias. Foi então que sentiu um ruído ao fundo do corredor. Primeiro, julgou que fosse Maria e continuou a enfeitar-se com braceletes e gargantilhas. Quando voltou a ouvir o som, como o de uma porta pesada a abrir-se, sentiu curiosidade e foi investigar. A única luz no segundo andar entrava esfumada por uma janela de olho de boi que irradiava um brilho acobreado no corredor. Entrou com cuidado no roupeiro, ao fundo da galeria e quase tropeçou em dois homens; um deles tinha na mão uma máquina fotográfica e outro estava a apontar-lhe um revólver.

    Ao início, Perla foi dominada por uma sensação de confusão e imobilidade, apesar daquilo que se seguiu ter sido inesperado. O homem da câmara fotográfica inclinou-se devagar até ficar de cócoras e começou a desenhar-se no seu rosto uma careta que Perla pressentiu ser irónica e amarga. A menina semicerrou os olhos como se daquela forma quisesse confirmar que não estava enganada sobre aquilo que estava a ver.

    — Tio Julian! O que é que estás aqui a fazer?... Tu não estavas em Miami? —gritou com surpresa ao mesmo tempo que lhe deu um abraço.

    — Estás tão grande! —disse Julian que respondeu ao abraço com ternura.

    Perla olhou com curiosidade para o outro homem que não compartilhou a alegria do encontro e mantinha um ar sombrio apesar de se ter esforçado por esboçar um sorriso ao guardar a arma atrás das costas.

    Julian foi o primeiro homem a tirar fotografias a Perla Maria tal como veio ao mundo, aos seis meses de idade. O tio Julian, perante a insistência da sua irmã Letícia, retratou a sua bela sobrinha entre fraldas e guizos. Como era um homem bem-disposto começava logo a brincar com Perla a dizer que se não se portasse bem, iria mostrar as fotografias ao seu namorado quando crescesse.

    Julian Cepeda do Vale não era um tio qualquer; era um tio especial. Para começar, era o único na família que não a avisava que tinha de se portar bem antes de sair para os passeios. Tinham muito em comum, a gargalhada aberta e estrondosa e a alegria de viver.

    Perla gostava de andar a cavalo nos seus ombros e puxar-lhe pelo cabelo com voluptuosos caracóis ondulados que deixava as mulheres loucas por fazê-las despertar para a ternura. Os caracóis de Julian Cepeda eram uma espécie de talismã para os momentos íntimos; ele sabia-o e aproveitava-se daquela virtude tão caricata. Facilitava o seu trabalho de fotógrafo. Depois de fazerem amor, as amantes ocasionais faziam-lhe confidências imprevistas enquanto com os dedos emaranhavam-lhe com suavidade aquela cabeleira encaracolada.

    Era famoso pelas fotografias tiradas a artistas, coristas e mulheres bonitas, bem como, a políticos e celebridades. Tinha a capacidade de captar imagens que despertavam os mais variados sentimentos e críticas. Tinha, como todos aqueles que faziam coisas fora do comum, admiradores fervorosos que denominavam de arte o seu trabalho e difamadores assíduos que o julgavam com uma palavra lapidar: pornografia. Ao fim de vinte anos, todas aquelas fotografias que naquela altura tinham sido catalogadas como escandalosas e indecentes, foram publicadas sob a classificação de «nus artísticos» num livro de belíssima edição e consideradas vanguardistas; alguns chegaram a chamar-lhes obras de arte.

    Depois do abraço inicial, Julian agarrou na sobrinha pelos ombros e, com um tom quase suplicante, pediu-lhe para guardar segredo sobre tê-lo visto. Era uma visita muito curta; explicou-lhe que não tinha tempo para ir ver toda a família pelo que preferia que ninguém soubesse; além disso, algumas pessoas poderiam fazer-lhe mal se soubessem que estava em Cuba. Perla jurou fazendo o sinal da cruz que seria um segredo.

    —Não digas nada à tua mamã nem ao teu papá —pediu-lhe mais uma vez, ao que Perla assentiu com a cabeça—. Estás muito bonita! —disse Julian ao suavizar o tom de voz e agarrar-lhe nas mãos. Ela esboçou um sorriso sensual.

    —Perla? —ouviram ao longe a voz de Maria.

    Os dois homens ficaram sobressaltados e trocaram olhares de preocupação. Perla explicou-lhes que era a sua amiga Maria. O tio Julian implorou-lhe para saírem da casa depressa e para se recordar da promessa.

    —Vão por favor. Já! —suplicou Julian, dando-lhe um beijo e um forte abraço—. Lembra-te: A ninguém! — Quando Perla assentiu com a cabeça e se começou a afastar, os

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