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Os Serões do Convento
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E-book663 páginas8 horas

Os Serões do Convento

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Sobre este e-book

Em três noites, as freiras de um convento português divertem-se ao serão a contar onze narrativas eróticas, cuja finalidade é mais que criar uma “perfeita intimidade” entre elas: no final do primeiro serão, na cela de Soror Teresa de Jesus, as freiras saem aos beijos em casais ou trios, dirigindo-se às suas celas.

Segundo os autores do prefácio, Helder Thiago Maia e Mário César Lugarinho, "no caso de 'Os Serões do Convento', podemos dizer que a primeira comercialização do livro não acompanhou a liberdade experimentada pelos seus personagens. Enquanto a narrativa está marcada, em grande parte, por uma desterritorialização das normatividades de género e sexualidade, a forma de comercialização do livro, dentro da categoria 'romance para homens', não só indicava o conteúdo erótico da obra, como também sugeria uma limitação do público ao qual o gozo da leitura estava destinado. (...) Essa prateleira/categoria literária, no entanto, foi responsável pelas primeiras representações conhecidas, em português, de dissidentes de género e de sexualidade. Foi assim que, sob o signo da libertinagem e/ou da patologização, surgiram os primeiros personagens que se relacionam sexualmente e/ou afetivamente com personagens do mesmo género, assim como também aparecem personagens que transgridem as normatividades de gênero. Dessa forma, 'Os Serões do Convento' é também parte da historiografia literária LGBT brasileira e portuguesa, por apresentar personagens dissidentes, especialmente mulheres cisgéneras que se envolvem sexo-afetivamente com outras mulheres cisgéneras, assim como personagens que transitam entre a masculinidade e a feminilidade, ainda que seja com interesses principalmente sexuais."

IdiomaPortuguês
Data de lançamento20 de ago. de 2018
ISBN9789898575920
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    Os Serões do Convento - José Feliciano De Castilho

    Prefácio

    LITERA(MÃO): OS SERÕES DO CONVENTO DE JOSÉ FELICIANO DE CASTILHO

    Helder Thiago Maia

    Mário César Lugarinho

    Impresso originalmente em formato de livro de bolso, em tamanho suficientemente pequeno para o livro aberto caber inteiro em uma única mão, Os serões do convento (1862) é um projeto literário pensado em seu conteúdo e em sua impressão como litera(mão), ou melhor, como texto onde o leitor com uma mão segura o livro, enquanto com a outra realiza a recepção literária através de prazeres experimentados no próprio corpo. Litera(mão), portanto, são textualidades, como podemos inferir a partir de Jean-Jacques Rousseau (2006:21), que só podem ser lidas com uma única mão, uma vez que a outra mão está colaborando com a leitura a partir, principalmente, de carícias eróticas[3]. A leitura, assim, está atravessada pelo próprio prazer erótico do leitor. Entretanto, é importante advertir que nem toda a litera(mão) é necessariamente subversiva, ao contrário, muitas vezes o prazer da leitura, como argumenta Roland Barthes (2006), está associado à repetição das normatividades.

    No caso de Os serões do convento, podemos dizer que a primeira comercialização do livro não acompanhou a liberdade experimentada pelos seus personagens. Enquanto a narrativa está marcada, em sua grande parte, por uma desterritorialização das normatividades de gênero e sexualidade, a forma de comercialização do livro, dentro da categoria romance para homens, não só indicava o conteúdo erótico da obra, como também sugeria uma limitação do público ao qual o gozo da leitura estava destinado. Nesse sentido, podemos dizer que é antes a forma de comercialização do livro, mais do que a própria narrativa, que institui interdições sobre o desejo, o prazer e o gozo das leitoras.

    O livro não só foi vendido, mas também lido e entendido pela crítica como pornográfico. No entanto, é preciso dizer que essa categoria de romance para homens era também bastante heterogênea; como argumenta Leonardo Mendes (2017:177), dentro dessa prateleira eram vendidos quatro tipos de livros: romances libertinos franceses e ingleses do século XVIII, pornografia anticlerical portuguesa e francesa dos séculos XVIII e XIX, romances naturalistas portugueses, franceses e brasileiros contemporâneos e ficção pornográfica contemporânea portuguesa e brasileira. Nesse sentido, Os serões do convento oscila entre a pornografia anticlerical e a ficção pornográfica.

    Essa prateleira/categoria literária, no entanto, foi responsável pelas primeiras representações conhecidas, em português, de dissidentes de gênero e de sexualidade. Foi assim que, sob o signo da libertinagem e/ou da patologização, surgiram os primeiros personagens que se relacionam sexualmente e/ou afetivamente com personagens do mesmo gênero, assim como também aparecem personagens que transgridem as normatividades de gênero. Dessa forma, Os serões do convento é também parte da historiografia literária LGBT brasileira e portuguesa, por apresentar personagens dissidentes, especialmente mulheres cisgêneras que se envolvem sexo-afetivamente com outras mulheres cisgêneras, assim como personagens que transitam entre a masculinidade e a feminilidade, ainda que seja com interesses principalmente sexuais.

    Apesar de ter sido, no século XIX, o livro pornográfico de maior circulação no Brasil, conforme Alessandra El Far (2004), sendo vendido por mais de quatro décadas seguidas, e atingindo milhares de leitores, em uma época onde 80% da população brasileira não sabia ler nem escrever, Os serões do convento possui uma linguagem que é efetivamente pouco pornográfica, uma vez que o autor recorre principalmente a metáforas e a figuras de linguagem, não só para narrar os encontros eróticos, como também para descrever os corpos dos personagens. Como constata El Far (2007), enquanto muitos autores preferiam adotar as palavras pica, caralho ou porra para falar da genitália de seus personagens, o autor de Os serões adotava as expressões varinha de condão, lança, instrumento, serpente, furão, apêndice varonil; como podemos perceber nesse trecho do livro onde se narra a masturbação de um personagem que vive do comércio sexual:

    A estas palavras, e ao exemplo, que o Amor mesmo lhes deu, lançarão authomaticamente a mão ao lindo instrumento. A mão do Cupido, abraçou-o junto á raiz; a de D. Ifigenia logo por cima da do Cupido, e por cima da de D. Ifigenia a de D. Jacintha. Do alto d’aquella torre de tres mãos resahia ainda inteira a façanhosa cabeça, vermelha e brilhante como um farol; as duas irmãs forcejavão por abarcar em cheio, cada uma da sua parte, a porção que empunhava; mas os seus dedos erão muito curtos e o corpanzil tão rijo, que por mais que o apertassem para unirem as pontinhas dos dedos, não cedia á compressão (Castilho, 1862:209, tomo 2).

    Além disso, como já dissemos, outras duas características atravessam o livro: o anticlericalismo do século XVIII e XIX e a intertextualidade com livros libertinos do século XVIII. Como explica El Far (2004), no mesmo período em que se articulava a separação do Estado em relação à Igreja, com a retirada de bens e a expulsão de padres e freiras, a literatura também investiu literária e politicamente contra a Igreja. Nesse sentido, padres e freiras, em nosso caso especialmente as freiras, são descritos como libertinos e donos de uma sexualidade insaciável, afastando-se, assim, das ideias de serenidade, meditação e fé que costumavam narrar a vida eclesiástica. Como resume a mesma pesquisadora:

    Em toda a segunda a segunda metade do século XIX, o tema da igreja corrompida, com padres e freiras avessos à fé cristã e aos votos de castidade, continuou instigando o senso crítico dos escritores portugueses e a curiosidade do público. Ao lado das obras pornográficas, que criavam uma atmosfera de devassidão no clero, surgiram livros que evocavam escândalos ocorridos nos monastérios, solapando a legitimidade dessas instituições. Alertavam também os pais e educadores sobre os perigos da má educação recebida pelos jovens nos internatos e conventos, tendo em vista que esses locais congregavam um contingente de homens e mulheres renegados pela família e sem oportunidades sociais no mundo laico. Usavam o habito não pela crença em deus, mas sim por terem sido vítimas de um destino infeliz. Assim, os autores dessas obras, sob diferentes pontos de vista e estilos narrativos, ressaltavam as supostas fraquezas e faltas cometidas pelos eclesiásticos, conferindo força às reformas liberais que prosseguiam com o confisco de bens de várias ordens religiosas (El Far, 2004:230-231).

    Assim sendo, no capítulo de Introdução do livro, nosso autor apela à natureza, não só para criticar a antinaturalidade da castidade, como também para aproximar freiras a odaliscas, e o convento ao harém, através da sexualidade feminina; construindo assim um suposto discurso de verdade sobre o corpo da mulher, mas também sobre a narrativa, ao dizer que o texto seria originalmente um manuscrito de um velho padre confessor, como podemos ver nesses dois trechos abaixo.

    No habito, que repulsa pelo respeito, está a mulher, que attrahe pelo amor; está o coração, que respira; está a virgindade que protesta. Felizmente para ella, como ultimo refugio contra a desesperação, no meio de tanto captiveiro, fica-lhe a liberdade, o pensamento; o desejo; a imaginação; a solidão do apozento e da noite; os sonhos, que ninguem doma; os gostos, que, mesmo onde os não semeiam, se produzem espontaneos; e, emfim, os tacitos recursos da sympathia do infortunio, a amisade, que, na moeda que tem, paga, como pode, as dívidas do amor. Oh! Sem dúvida; a religiosa christã no seu encêrro melancolico, e a odalisca da Georgia, ou Circassia, nos salões de ouro e rubis do sultão de Constantinopla, são irmãs no pensar e no sentir (1862).

    A obra, que vamos hoje tirar da obscuridade de cincoenta annos, é extrahida das memorias secretas de um ancião, director de consciencias, n’um convento de senhoras, na provincia do Minho, em Portugal. É um manuscripto precioso de que um acaso feliz nos metteu de posse, e em cuja publicação julgamos fazer á moral um bom serviço, provando, pela millesima vez, aos pais e educadores, o perigo que pôde haver em se contrariarem os sentimentos naturaes. Foi talvez com esse mesmo intuito que o reverendo padre confessor que escreveu o que as innocentes servas de Deos lhe iam ingenuamente confiando de seus pensamentos, palavras e obras, como boas christãs que certamente eram. O sigillo imposto ao confissionario lhe vedou escrever nomes verdadeiros (1862).

    Quanto ao diálogo com obras libertinas, encontramos no livro significativa intertextualidade com o livro Decamerão, de 1348, do italiano Giovanni Boccaccio, não só quanto à estrutura do livro, uma vez que ambos os textos se constroem a partir de narrativas contadas em grupo, mas principalmente através da semelhança das histórias narradas, uma vez que muitas das histórias de Os serões são recriações de histórias de o Decamerão. Nesse sentido, a história O que umas ceroulas podem conter de pacificação, contada pela discreta Soror Teresa de Jesus, reconstrói o conto Elisa, assim como a História de um jardineiro mudo, contada pela Abadessa Maria da Natividade, reconstrói Masetto de Lamporecchio; O Cabide, contada pela desterrada Soror Clara, reconstrói Pânfilo; e A Eremitoa, narrado pela poetisa Soror Violante, reconstrói Dionéio. Além do diálogo com Decamerão, encontramos também paródias com passagens bíblicas, como na história da endiabrada Soror Margarida, O dízimo das casadas, que reconstrói pornograficamente Matheus, 25, e com folhetins, a exemplo da história da Soror Virgínia, Roberto do Diabo, que reconstrói o folhetim francês La vie du terrible Robert le Diable, de 1496.

    Além da Introdução, o livro é composto por onze narrativas eróticas contadas pelas freiras em três noites diferentes, cuja finalidade é não só criar uma perfeita intimidade entre as mesmas, mas também excitá-las eroticamente. No primeiro serão, que se passa na cela de Soror Teresa de Jesus, são contadas seis histórias e ao final delas as freiras saem aos beijos em casais ou trios para os quartos; no segundo serão, que se passa na cela da Abadessa, são contadas quatro histórias e ao final, no próprio local, as freiras trocam longos beijos e ardentes atritos de corpos; no último serão, que também se passa na cela da Abadessa, é contada apenas uma história e ao final é proposto que elas façam abstinência sexual, o que aumentaria o erotismo de quem conta e de quem escuta, uma vez que elas decidem que nos próximos encontros contarão apenas histórias pessoais. O próximo encontro fica marcado para o domingo, véspera da festa de São João, na casa de recreação do convento; o livro, entretanto, encerra-se neste momento.

    — Ora oução-me as minhas queridas amigas. Domingo é vespora do Sr. S. João; hade-se juntar este ranchinho todo, de tarde lá em baixo, no fundo da cêrca, na casa de recreação, por ser um perfeito retiro, ás 7 horas da tarde, e não falte nenhuma. Eu incubo-me de a arranjar, para as receber. A nossa abbadeça hade lá ter posto um excellente copo d’agoa. Estes dias, que decorrem até la proponho eu, que os empregue cda uma de nós em recordar-se muito bem da sua primeira aventura galante, para nol-a contar, e mais do que a primeira, se quizer.

    — Approvado, exclamou a abbadeça, e a exemplo d’ella algumas outras.

    — Proponho, emfim, concluio a oradora, que até a vespera do Sr. S. João nenhuma de nós se lembre, que tem em si o registo... do gaz.

    — Porque? perguntou a poetisa.

    — Porque esta abstinencia, que eu proponho, hade-nos fazer devorar com mais avidez as historias com que temos de ser regaladas, e o mais que a elleas se seguir, como espero.

    Separarão-se todas entre abraços, beijos e risos, e cada uma se retirou para a sua cella, imaginando maravilhas d’aquella vespera de S. João (1862).

    O livro termina, então, com uma promessa de continuidade, onde seriam narradas as histórias experimentadas pelas próprias freiras. É nesse sentido que afirmamos no começo desse texto que Os serões do convento são não apenas um livro, mas um projeto editorial, uma vez que ele parece ter sido planejado para ser retomado por qualquer outro autor, como de fato aconteceu. De acordo com os dados da única publicação encontrada do livro, os três tomos seriam uma Primeira Série, que contém apenas histórias de terceiros, enquanto isso, uma Segunda série, que continuaria na área de recreação do convento, conteria, como já dissemos, apenas as narrativas vividas pelas próprias freiras. Consequentemente, o fato de o livro ter sido publicado sem autoria, constando apenas as iniciais M. L., favorece essa continuidade da narrativa por outros autores. Entretanto, é obvio também que o anonimato era uma forma de preservar a reputação do autor, assim como de se proteger da censura pública, como argumenta El Far (2004).

    Importante dizer também que apesar da edição conhecida do livro ser de 1862, há relatos em jornais da venda da obra em 18 de dezembro de 1861, no Jornal do Commercio (RJ), onde se diz Aviso á policia: anda pelas ruas desta cidade um preto, capadocio, offerecendo a obra mais immoral que até hoje se tem visto, intitulada - Os serões do convento; assim como há notícias de novas edições em 29 de novembro de 1910, no jornal Pharol (MG), e em 18 de janeiro de 1913, no jornal Careta (RJ), no formato de folhetim. Quanto ao anonimato da obra, também encontramos jornais, como o Estado do Espírito Santo (ES), de 28 de maio de 1909, que diz que a obra mais immunda que até hoje veio á luz só pode ser produção de um padre. O fato de a obra ser comentada por jornais de vários estados do Brasil indica inclusive que a mesma não ficou restrita aos leitores do Rio de Janeiro.

    No entanto, é a morte de um velho alfarrabista carioca, João Martins, que termina por revelar publicamente a autoria do texto. Através de uma nota de falecimento, publicada em 25 de abril de 1926, nos jornais O Jornal (RJ), Jornal do Brasil (RJ) e Correio da Manhã (RJ), sabemos que José Feliciano de Castilho não só é o autor de Os serões do convento, mas também de outras obras pornográficas como Thereza Philosopha, em sua versão brasileira. Além de autor e tradutor de textos pornográficos, de acordo com crônicas de Agrippino Grieco, publicadas em O Jornal (RJ), em 22 de julho de 1928 e 9 de fevereiro de 1930, e de Mucio Leão, publicada no Jornal do Brasil (RJ), em 10 de setembro de 1955, José Feliciano era também um importante ghost writer, como podemos perceber no trecho abaixo.

    Entre nós foi escriptor de alquiler, abrindo no Campo de Sant'anna, no predio em que mais tarde funccionou uma academia de direito, um escriptorio para confeccionar a tanto por linha, acrosticos, sonetos, discursos relatorios e outros trabalhos em prosa e verso, graças a um operoso corpo de amanuenses letrados, rasistas do parnaso e varejistas da esthetica. Esse especulador das letras, redigiu os Serões do Convento, livro que é uma gamella, ou um bebedouro para animaes, livro que tem sido a cantharida mental de muito quinquagenario em mal de amores. (O Jornal)

    Nascido em Lisboa, em 1810, José Feliciano de Castilho mudou-se para o Rio de Janeiro em 1847, onde morou até à sua morte em 1879. Dessa forma, é provável que Os serões do convento tenha sido escrito no Brasil, ainda que a única publicação encontrada seja uma edição portuguesa da Typographia do Bairro Alto, de Lisboa. Irmão do poeta lusitano Antonio Feliciano de Castilho, José Feliciano, de acordo com Helio Vianna (1950), era um intelectual que se relacionava com D. Pedro II, gozando de grande prestígio na corte, sendo fundador e editor de importantes jornais e revistas, além de conhecido tradutor. No campo literário, teve desavenças públicas importantes com José de Alencar, a quem acusava de defeitos de linguagem, erros e artificialidade dos temas; além disso, há rumores que essa briga foi financiada pelo próprio Imperador, que desejava destruir a reputação de Alencar.

    O projeto editorial de Os serões do convento foi continuado pelo escritor português Alfredo Gallis, que publicou o livro A história de cada uma: os serões do convento, sob o pseudônimo Rabelais, em uma edição sem data de publicação. De acordo com Antonio Ventura (2011), o livro foi publicado entre 1906 e 1907; entretanto, de acordo com Natanael Azevedo (2017b), o livro teria sido publicado provavelmente em 1882. O livro de Gallis cumpre exatamente o prometido pelo livro de José Feliciano de Castilho (1862), como podemos inferir a partir desse resumo elaborado por Azevedo:

    O romance pornográfico é dividido em 11 capítulos, a saber: O passado de uma abadessa, Uma freira modelo, História da Clarinha: ao que leva à curiosidade, História de D. Violante: guardar uma mulher, História de D. Margarida: quadros realistas contra a virtude, História de D. Angélica: o que uma menina viu e fez... até os 15 anos, História de D. Guilhermina: ver é bom, gosar é melhor, História de D. Virginia: quadros defesos, História de D. Cecília: a mocidade de uma noviça, História de D. Delfina: virgem! e, por fim, o último capítulo: Conhecimentos antigos. Este último se divide em 4 partes que caminham para o arremate da narrativa, findando o dia de véspera de São João após as mais voluptuosas histórias narradas, culminando em um apogeu do desejo. Primeira parte, Conhecimentos antigos: D. Margarida ao sair da casa do recreio na manhã de 23 de junho de 18... se depara com o novo hortelão que está a cuidar dos craveiros. A freira empolga-se com o robusto homem e é revelado ao leitor que se trata de Manoel, seu antigo amante e pai de sua filha. Ao final do encontro, eles marcam às onze da noite para conversarem e se entregarem aos prazeres acumulados. Na segunda parte, O novo capelão, chega ao convento um jovem e belo padre que aguça os mais luxuriosos desejos das freiras, em especial D. Margarida, que toma para si a missão de seduzir o capelão. Na terceira parte, Entre noviças: as religiosas se queixam que estão à tempos satisfazendo-se umas com as outras, fazendo às vezes do homem. Cogitam então seduzirem o capelão e o hortelão. De imediato, D. Margarida tenta subverter esse plano, alegando que mais cedo tentara seduzir o hortelão, mas não conseguira êxito. Apesar da tentativa de despistar as irmãs em relação à sedução do hortelão, as religiosas tomadas de desejos luxuriosos armam um plano para arrebatar Manoel, o hortelão, e padre Francisco, o novo capelão. Na quarta e última parte, Às onze da noite: D. Margarida, disposta a não dividir o cetro de seu amado com as outras freiras, decide contar-lhe os planos de sedução de D. Delfina. Após fecharem a porta da cela de D. Margarida, entregam-se às mais lúbricas ações de gozo até o cair da madrugada. A narrativa encerra com a descrição da cópula e do tesão acumulado de três anos entre Manoel e D. Margarida (Azevedo, 2017b:366).

    Os serões do convento, apesar de ter sido o romance pornográfico mais vendido no Brasil, conforme El Far (2007), e apesar de pairar sobre ele, hoje, o mais profundo silêncio, esteve presente durante quase oitenta anos na memória de jornais e de críticos literários brasileiros, aparecendo em críticas, mas também em outros textos literários. Em O Aborto (1893), do escritor Alberto Figueiredo Pimentel, os primos Maricota e Mário, construídos sob a égide do naturalismo, de forma patologizante, leem não só Os serões do convento, de José Feliciano, mas também Volúpias, de Alfredo Gallis. Nesse mesmo sentido, no conto publicado em A Maça (RJ), em 26 de agosto de 1922, o personagem Mário sugere a Carlinda a leitura de Os serões do convento e de outros textos pornográficos como forma de corrompê-la moralmente; assim como na comédia publicada no Jornal das Moças: Revista Semanal Illustrada (RJ), Beldemonio dá uma lista de livros obscenos para que Esmeralda também seja corrompida moralmente.

    Atualmente, entretanto, o livro não aparece em nenhuma historiografia literária brasileira ou portuguesa, além de ter poucos críticos dedicados à sua leitura. Nesse sentido, destacamos os recentes trabalhos de Azevedo (2017) e Mendes (2017). A este fato atribuímos, principalmente, o teor erótico da obra, como podemos perceber em inúmeros textos críticos que abordam o livro através de jornais.

    Em Revista Ilustrada (RJ), 1880, por exemplo, ao criticar a peça Antonica da Silva, de Joaquim Manoel de Macedo, que aborda o travestimento masculino, o jornalista diz que depois de uma peça de imoralidade crua e descabelada só resta ao autor montar Os serões do convento. Nesse mesmo sentido, no jornal pernambucano A Provincia: Orgão do Partido Liberal, em 14 de setembro de 1909, assinada por Gonçalvez Maia, o autor diz que é preciso estabelecer medidas severas e eficazes para evitar a circulação de obras obscenas como Os serões do convento e Thereza Philosopha. Por fim, no jornal carioca Careta, de 21 de novembro de 1914, encontramos uma gravura onde o presidente Venceslau Brás é criticado pelo estado de sítio, recém-revogado. Nesta, o presidente é acusado de imoralidade por ter encontrado Os serões do convento, mas não ter encontrado a própria Constituição.

    Assim sendo, podemos dizer que a crítica e a historiografia literária foram, e talvez ainda sejam, extremamente conservadoras no momento de abordar narrativas que desconstroem os papéis normativos de gênero e sexualidade, utilizando muitas vezes critérios como literalidade, valor estético, escola literária, etc., para esconder, em verdade, sua repulsa aos sujeitos que não vivem a partir da heteronormatividade e da cisgeneridade. Como diz um dos textos críticos, assinado por V. M e publicado em 20 de novembro de 1895 no jornal carioca A Notícia, que também analisava o livro Bom-crioulo (1895), de Adolfo Caminha, a tarefa da crítica era produzir uma análise que matasse nos leitores a vontade de conhecer esses livros imundos, que continham apenas pornographia grossa e brutal. No entanto, apesar dos esforços da crítica, o livro durante muito tempo serviu ao gozo dos seus leitores.

    Agora, em sua nova edição, esperamos que o livro, que deve ser segurado apenas como uma mão, sirva não só para revelar uma outra parte da produção literária de José Feliciano de Castilho e reconstruir a historiografia literária de dissidentes de gênero e sexualidade, mas principalmente para que gozemos junto e com os seus personagens.

    Uma imagem contendo texto, livro Descrição gerada com muito alta confiança

    Jornal Careta, Rio de Janeiro, 21 de novembro de 1914

    Os Serões do Convento

    Primeira Série

    Tomo I

    Introdução

    A geração atual não viu os mosteiros nos dias da sua glória, como ainda os alcançaram nossos pais. Estes edifícios profanados, secularizados hoje; convertidos em vivendas prosaicas de ricaços, em quartéis, em oficinas, em escolas ou em tribunais, eram nos seus dias áureos, para a imaginação fervente dos devotos, outros tantos vestíbulos do céu; para a fantasia dos moços namorados, umas solidões onde o amor se apascentava de silêncio, onde a natureza comprimida rebentava com mais violência; onde a castidade nos votos recatava mistérios inesgotáveis de voluptuosidade. Um convento de mulheres era para os reis a quem tudo sobra, para os mundanos a quem os prazeres não faltam, para os artistas e para os poetas, cuja vida é toda de privações, um centro da mais irresistível atração, e uma vertente misteriosa de idealidade sensual, se assim nos podemos exprimir. Os poetas e os músicos sentiam-se elevar acima de si mesmos nos outeiros noturnos daqueles pátios, cantando para aquelas formosas aves presas e mudas, que, por trás das grades do seu viveiro se divisavam por intervalos com um realce angélico, ao clarão intermitente da fogueira do abadessado. No locutório os mundanos se esqueciam das assembleias e dos teatros, embevecidos na contemplação, na cobiça daquelas flores viventes, daquelas sensitivas medrosas de ser tocadas, a vicejarem com fragâncias amorosas para as alturas e sem frutos para a terra, na estufa onde a piedade as reunira. Os soberanos, com a varinha de condão do seu cetro, eram os únicos para quem o talismã da clausura se quebrava; mas a esses mesmos (por verem o paraíso mais de perto, por terem, uma ou outra vez colhido nele, a furto, alguma violeta bem modesta, ou alguma saudade bem vivaz) nem por isso deixavam, às sombras dos claustros e mais ainda às dos dormitórios, de lhes entremostrar a existência de muito arcano, fechado a sete selos, para todo o homem que não fosse o tântalo confessor.

    Em vão se envolviam em mortalhas as moradas daquele universo feminil; em vão se intitulavam ora as virgens, ora as esposas do Senhor; ardia-se por aquelas amortalhadas; disputar-se-iam a Deus aquelas beldades do gineceu celestial; tudo se daria por poder afoguear com beijos aqueles rostos pálidos da sombra e da penitência; por poder apertar ao peito aquelas frontes cândidas, que o ferro bárbaro despojara das tranças, como de ornamento supérfluo; oh! por uns frutos assim proibidos, trocar-se-iam decerto os gozos fáceis e triviais de acariciar, em leito de seda e rendas, as mais aplaudidas e sedutoras dançarinas teatrais, ou casquilhas de clubes.

    Quem nunca avistou, ao longe, uma freira no seu mirante, com um livro na mão, ora lendo, ora desvairando os olhos pelo espaço até parar em algum ponto da paisagem; quem viu outra meditativa, aparecendo e desaparecendo por entre as árvores da cerca, ou colhendo e enlaçando flores no seu jardim, que não engenhasse logo, para si, um romance, que bem poderia em parte ser histórico?! Sim, debalde as instituições humanas, mesmo seguidas pelas crenças religiosas, aspiram a mudar a natureza, no que ela tem de mais essencial. No hábito, que repulsa pelo respeito, está a mulher, que atrai pelo amor; está o coração, que respira; está a virgindade, que protesta. Felizmente para ela, como último refúgio contra a desesperação, no meio de tanto cativeiro, fica-lhe a liberdade, o pensamento, o desejo, a imaginação; a solidão do aposento e da noite; os sonhos, que ninguém doma; os gostos, que, mesmo onde os não semeiam, se produzem espontâneos; e, enfim, os tácitos recursos da simpatia do infortúnio, a amizade, que, na moeda que tem, paga, como pode, as dívidas do amor. Oh! sem dúvida; a religiosa cristã no seu encerro melancólico e a odalisca da Geórgia, ou Circássia, nos salões de ouro e rubis do sultão de Constantinopla, são irmãs no pensar e no sentir. Que importa que uma recenda ao incenso; a outra, às rosas de Alexandria? que uma case a sua voz aos gemidos do órgão; a outra, aos suspiros da guitarra castelhana? que os eunucos de lá sejam substituídos cá por capelães e confessores? que a estamenha da cristã encubra tudo, enquanto a roupa diáfana da maometana deixa tudo transparecer; como aquele seio, que nunca se encobre, arfa este que nunca se mostrou; os olhos desta desentranham das páginas da Bíblia imagens tão tentadoras, como os da outra dos versículos do Alcorão; os corações pedem instintivamente o mesmo deleite; em ambos há um foco mimoso, oculto e intacto de voluptuosidade, que por si mesmo a está ressumando, como em olhos ternos se vê uma lágrima diluída. Ambas são tristes porque a filha do Profeta não sabe se não murchará flor inculta antes de ter aberto; e a reservada para as bodas de além-mundo possui, vê, palpa em si um tesouro que, se o descerrasse, a endeusaria e de que não é lícito servir-se.

    Então a asiática e a europeia, pelo mesmo instinto de conservação e de prazer, dão e aceitam às suas consócias no cativeiro tudo quanto a arte pode criar de mais encantador para suprir o que a natureza lhes devia, e que a sociedade lhe recusou.

    As conversações, do harém e do convento, são pois essencialmente idênticas, rolam perenemente sobre o mesmo fundo: o amor, os prazeres da mocidade, os presentes de Deus e de Alá a todas as suas criaturas, a atração mútua, irresistível dos dois sexos em toda a criação, e o culto dado por obras ao autor da fecundidade.

    No convento, como no serralho, o manto das trevas sonega ao mundo, que morreria de gosto, se os contemplasse, segredos, mistérios, abismos, – de fraquezas, dirá alguém – não; de delícias, que são desagravos à natureza.

    A obra, que vamos hoje tirar da obscuridade de cinquenta anos, é extraída das memórias secretas de um ancião, diretor de consciências, num convento de senhoras, na província do Minho, em Portugal.

    É um manuscrito precioso, de que um acaso feliz nos meteu de posse, e em cuja publicação julgamos fazer à moral um bom serviço, provando, pela milésima vez, aos pais e educadores, o perigo que pode haver em se contrariarem os sentimentos naturais. Foi talvez com esse mesmo intuito que o reverendo padre confessor escreveu o que as inocentes servas de Deus lhe iam ingenuamente confiando de seus pensamentos, palavras e obras, como boas cristãs que certamente eram. O sigilo imposto ao confessionário lhe vedou escrever nomes verdadeiros.

    Os que lhes deu

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