A Lei 11.645/ 2008: Uma Década de Avanços, Impasses, Limites e Possibilidades
()
Sobre este e-book
Leia mais títulos de Giovani José Da Silva
Histórias e culturas indígenas na Educação Básica Nota: 5 de 5 estrelas5/5Entre Fronteiras Brasil-Bolívia: Relações Internacionais, Diplomacia e Política Nota: 0 de 5 estrelas0 notas
Relacionado a A Lei 11.645/ 2008
Ebooks relacionados
Uma década da Lei 10.639/03: Perspectivas e desafios de uma educação para as relações étnico-raciais Nota: 0 de 5 estrelas0 notasAs Leis na Escola: Experiências Com a Implementação das Leis n. 10.639/03 e n. 11.645/08 em Sala de Aula Nota: 0 de 5 estrelas0 notasUm olhar além das fronteiras - educação e relações raciais Nota: 0 de 5 estrelas0 notasEducação das Relações Étnico-Raciais: Caminhos para a Descolonização do Currículo Escolar Nota: 0 de 5 estrelas0 notasDa Trajetória Escolar ao Sucesso Profissional: Narrativas de Professoras e Professores Negros Nota: 0 de 5 estrelas0 notasNos Rastros de Sujeitos Diaspóricos: Narrativas sobre a Diáspora Africana no Ensino de História Nota: 0 de 5 estrelas0 notasFormação Inicial de Professores: Conversas Sobre Relações Raciais e Educação Nota: 0 de 5 estrelas0 notasNa sua Escola tem Racismo? Na Escola do Brejinho Tem! Contornos do Racismo Institucional na Educação Escolar Nota: 0 de 5 estrelas0 notasFormação de Professores e Condições de Trabalho em Classes Multisseriadas Nota: 0 de 5 estrelas0 notasInstituições escolares no Brasil: conceito e reconstrução histórica Nota: 0 de 5 estrelas0 notasHistória e Historiografia da Educação Brasileira: Teorias e Metodologias de Pesquisa Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA Formação Territorial dos Povos Indígenas no Brasil Império: uma discussão sobre ausência de direitos Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA cor da cultura e a cultura da cor: reflexões sobre as relações étnico-raciais no cotidiano escolar Nota: 0 de 5 estrelas0 notasDiferenças e Especificidades Culturais dos Afrodescendentes no Espaço Escolar Nota: 0 de 5 estrelas0 notasNegritudes em tempo de cólera: Relações raciais no brasil contemporâneo Nota: 0 de 5 estrelas0 notasColonialidade e Resistências Nota: 0 de 5 estrelas0 notas(In)Justiça Social: Demandas da e na Educação Nota: 5 de 5 estrelas5/5Educação Em Direitos Humanos E Diversidade Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPesquisa (auto)biográfica e formação de professores alfabetizadores Nota: 0 de 5 estrelas0 notasRelações Étnico-Raciais no Contexto Quilombola Currículo, Docência e Tecnologia Nota: 0 de 5 estrelas0 notasAfricanidades e Brasilidades: Literaturas e Linguística Nota: 0 de 5 estrelas0 notasQuestão Racial e Ações Afirmativas no Brasil: resgate histórico de um debate atual Nota: 0 de 5 estrelas0 notasEnsino de História - Tradicional X Emancipador: a quem serve o ensino positivista da história do Brasil? Nota: 0 de 5 estrelas0 notasTrajetórias compartilhadas de um educador de jovens e adultos Nota: 0 de 5 estrelas0 notasInterdisciplinaridade, Interculturalidade e Interseccionalidade: Faces Negras na Escola Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPolíticas públicas antirracistas: análises sobre racismo estrutural e programas de transferência de renda Nota: 0 de 5 estrelas0 notasDireito Constitucional às Cotas Raciais: A Constituição de Joaquim Nabuco Nota: 5 de 5 estrelas5/5
Ciências Sociais para você
As seis lições Nota: 0 de 5 estrelas0 notasSegredos Sexuais Revelados Nota: 0 de 5 estrelas0 notasTudo sobre o amor: novas perspectivas Nota: 5 de 5 estrelas5/5Apometria: Caminhos para Eficácia Simbólica, Espiritualidade e Saúde Nota: 5 de 5 estrelas5/5Um Poder Chamado Persuasão: Estratégias, dicas e explicações Nota: 5 de 5 estrelas5/5Manual das Microexpressões: Há informações que o rosto não esconde Nota: 5 de 5 estrelas5/5A perfumaria ancestral: Aromas naturais no universo feminino Nota: 5 de 5 estrelas5/5Os Segredos De Um Sedutor Nota: 0 de 5 estrelas0 notasComo Melhorar A Sua Comunicação Nota: 4 de 5 estrelas4/5A Prateleira do Amor: Sobre Mulheres, Homens e Relações Nota: 5 de 5 estrelas5/5O martelo das feiticeiras Nota: 4 de 5 estrelas4/5O Manual do Bom Comunicador: Como obter excelência na arte de se comunicar Nota: 5 de 5 estrelas5/5Coisa de menina?: Uma conversa sobre gênero, sexualidade, maternidade e feminismo Nota: 4 de 5 estrelas4/5Liderança e linguagem corporal: Técnicas para identificar e aperfeiçoar líderes Nota: 4 de 5 estrelas4/5Psicologia Positiva Nota: 5 de 5 estrelas5/5Seja homem: a masculinidade desmascarada Nota: 5 de 5 estrelas5/5Pele negra, máscaras brancas Nota: 5 de 5 estrelas5/5Detectando Emoções: Descubra os poderes da linguagem corporal Nota: 4 de 5 estrelas4/5Jacques Lacan: Além da clínica Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO Ocultismo Prático e as Origens do Ritual na Igreja e na Maçonaria Nota: 5 de 5 estrelas5/5Introdução à Mitologia Nota: 5 de 5 estrelas5/5Ragnarok - O Crepúsculo Dos Deuses Nota: 5 de 5 estrelas5/5Teoria feminista Nota: 5 de 5 estrelas5/5O lado sombrio dos contos de fadas: A Origem Sangrenta das Histórias Infantis Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO marxismo desmascarado: Da desilusão à destruição Nota: 3 de 5 estrelas3/5Fenômenos psicossomáticos: o manejo da transferência Nota: 5 de 5 estrelas5/5Mulheres que escolhem demais Nota: 5 de 5 estrelas5/5Quero Ser Empreendedor, E Agora? Nota: 5 de 5 estrelas5/5
Avaliações de A Lei 11.645/ 2008
0 avaliação0 avaliação
Pré-visualização do livro
A Lei 11.645/ 2008 - Giovani José da Silva
USP
SUMÁRIO
CAPÍTULO 1
O EQUILÍBRIO DE HISTÓRIAS: EXPERIÊNCIAS NO ENSINO DE HISTÓRIA POR MEIO DE NARRATIVAS AFRICANAS E INDÍGENAS
Estamos numa empreitada de descolonizar as nossas mentalidades e a universidade tem papel fundamental nisso
Somos povos! Somos ancestralidade
Vamos realizar o sacrifício e deixar a culpa na soleira da porta dos espíritos
Um ser humano é humano por causa de outros seres humanos
Referências
CAPÍTULO 2
BALANÇOS, COMPARAÇÕES E SENSIBILIDADES: O LUGAR DA LEI NO 11.645/2008 NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS DO PARÁ
Introdução
Entrecruzando percursos: as africanidades nos currículos de História no ensino superior no Pará
O (não) lugar dos índios nos currículos dos cursos de História no Pará
Considerações finais
Referências
CAPÍTULO 3
OS EMBARAÇOS DA CIVILIZAÇÃO
:INDÍGENAS NOS MANUAIS DE HISTÓRIA DO BRASIL ADOTADOS NO COLÉGIO PEDRO II (1838-1898) E A PERSISTÊNCIA DA TRA(D)IÇÃO DIDÁTICA NO TEMPO PRESENTE
Novos
protagonistas para uma velha
História do Brasil
O colégio modelo
de ensino seriado e os quatro primeiros manuais de história do Brasil
Os indígenas do Brasil no Resumo e Compêndio dos militares e nas Lições dos médicos-professores
O (não) lugar do indígena na História do Brasil
Fontes
Referências
CAPÍTULO 4
INCLUSÃO DAS HISTÓRIAS AFRO-BRASILEIRA, AFRICANA E INDÍGENA NOS CURRÍCULOS DA EDUCAÇÃO BÁSICA NO AMAPÁ: UMA ANÁLISE DO PLANO CURRICULAR DE 2009
Introdução
Currículo, diversidade e ensino de História
Inclusão das temáticas afro-brasileira, africana e indígena nos currículos de História do estado do Amapá
Considerações finais
Referências
CAPÍTULO 5
AS FORMAÇÕES INICIAL E CONTINUADA CONSTROEM NOVOS APORTES PARA A REFLEXÃO SOBRE DIVERSIDADE APONTADA PELOS ARTIGOS 26 E 79 B DA LDB: REALIDADE OU UTOPIA?
Introdução
Diversidade e crença religiosa: um desafio na efetivação da educação plural?
A formação continuada e inicial, as práticas religiosas e a diversidade
Referências
CAPÍTULO 6
ONDJAKI E RENÊ KITHÃULU: UMA PROPOSTA DECOLONIAL AO CUMPRIMENTO DA LEI Nº 11.645/ 2008
Introdução – ecologia de saberes
Lei nº 11.645/2008: descolonizar a educação para emancipação social
Ondjaki: conversas sobre literatura africana e afro-brasileira
Renê kithãulu: uma vida entre a aldeia e a cidade
Considerações finais: Não existe pecado ao sul do Equador
Referências
CAPÍTULO 7
DO CABURAÍ AO CHUÍ: ENTRELAÇANDO SABERES DE POVOS INDÍGENAS À REALIDADE BRASILEIRA – SUBSÍDIOS À LEI 11.645/ 2008
Introdução
Povos indígenas em Roraima: das muralhas do sertão
à atualidade
Povos indígenas no Rio Grande do Sul
Povo Guarani: sociedade de horticultores
O povo Kaingang: sociedade sociocêntrica
Modelo tradicional
Modelo atual
Povo Charrua: a etnogênese
Considerações finais
Referências
CAPÍTULO 8
RAZÃO E SENSIBILIDADE NO ENSINO DE HISTÓRIA NO BRASIL: REFLEXÕES SOBRE CURRÍCULOS, FORMAÇÃO DOCENTE E LIVROS DIDÁTICOS À LUZ DA LEI Nº 11.645/ 2008
Considerações iniciais
Currículos de História e a BNCC: múltiplas versões
(De)Formação do professor de História
Livros didáticos de História: eurocentrismo, estereotipagem e negação
Considerações finais
Referências
SOBRE AUTORES E COLABORADORES
CAPÍTULO 1
O EQUILÍBRIO DE HISTÓRIAS: EXPERIÊNCIAS NO ENSINO DE HISTÓRIA POR MEIO DE NARRATIVAS AFRICANAS E INDÍGENAS
Claudia Mortari e Luisa Tombini Wittmann
A promulgação das Leis Federais nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008², que instauraram a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana, afro-brasileira e indígena em todo âmbito do currículo escolar brasileiro, contribuiu para a discussão, proposição, ampliação e produção de conhecimentos no campo das Ciências Humanas, possibilitando a visibilização de diversas experiências de sujeitos de origens africanas e indígenas. Juntamente a esses dispositivos legais, é preciso referenciar as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e as Diretrizes Operacionais para Implementação da História e das Culturas dos Povos Indígenas na educação básica, instituídas em 2004 e 2016, respectivamente. Como sabemos, os relatórios que acompanham ambas as diretrizes são portadores de orientações significativas para sua implementação. Tais dispositivos legais contribuíram para que ocorresse, também, um alargamento essencial da reflexão histórica que coloca em cena histórias e culturas distintas e diversas, porém conectadas, em diferentes épocas e lugares. No entanto, tal tarefa encontra um desafio pontual: superar uma concepção eurocêntrica/colonial sobre o mundo que resulta no epistemicídio, ou seja, na invisibilidade e exclusão de saberes e histórias das Áfricas³ e Américas, ainda significativamente presentes no cotidiano brasileiro e, especificamente, nos diversos espaços de produção de conhecimento, incluindo o universitário, espaço em que nos situamos. Tal permanência torna necessário o posicionamento epistemológico e político de questionamento do saber epistêmico ocidental/colonial e o descentramento do eurocentrismo e a valorização das teorias e epistemologias do sul que pensam com e a partir de corpos e lugares étnico-raciais/sexuais que foram subalternizados pelo processo histórico da colonialidade (GROSFOGUEL, 2008).
Nesse sentido, o objetivo deste capítulo é explicitar, a partir da experiência de ensino no Curso de História da Udesc (Universidade do Estado de Santa Catarina), as possibilidades e os desafios do uso de narrativas nas disciplinas de História de África e História Indígena⁴. As narrativas africanas e indígenas evidenciam experiências, visões e formas de ser, estar, viver e ler o mundo e, portanto, expressam dinâmicas, histórias, lutas e memórias de grupos diversos, contribuindo para a ampliação do conhecimento e para a dignidade humana (CASTRO-GÓMEZ, 2007; MBEMBE, 2014; MUDIMBE, 2013; QUIJANO, 2005; MIGNOLO, 2003)⁵. O trabalho, pautado nas questões teóricas colocadas pelos estudos pós-coloniais e decoloniais⁶, comprometido com a interpretação decolonizada acerca das histórias de populações indígenas e africanas, propõe uma posição de construção de conhecimento sobre, com e a partir de lócus de enunciação⁷ e epistemologias outras. Objetiva-se contribuir para fomentar o desenvolvimento de reflexões em torno da construção do conhecimento histórico e de ensino de História que coloquem em pauta, no âmbito universitário, e para além de ele, a discussão acerca da colonialidade do poder, do ser e do saber e que proponham não só a inclusão de conhecimentos novos, mas o questionamento do saber epistemológico.
Estamos numa empreitada de descolonizar as nossas mentalidades e a universidade tem papel fundamental nisso
⁸
Somos gente verdadeira
⁹, ressalta Daniel Munduruku, literato, indígena do grupo Munduruku. A África é gente de verdade
¹⁰, afirma Chinua Achebe, escritor, africano do grupo Igbo e de nacionalidade nigeriana. Ambos, ao partir de seus lócus de enunciação, expressam uma perspectiva central acerca de suas próprias existências: a humanidade e a agência, em contraponto a uma visão hegemônica de objetificação das populações indígenas e africanas, no passado e no presente. Tal afirmação, que pode parecer simples e óbvia, tem como objetivo realizar uma provocação, visando a abrir possibilidades para o reconhecimento e as ações de aprendizados novos e mútuos que, necessariamente, devem partir de um posicionamento desestabilizador e decisivo na leitura dos aportes discursivos que fundamentam e moldam o pensamento ocidental, deslocando o lugar no qual modelos de análise, em especial os históricos, são pensados. Nesse sentido, trata-se, efetivamente, de considerar as visões e as formas de ser e de estar no mundo expressas em diferentes suportes de memórias e, em especial, as narrativas históricas não ocidentais (africanas e indígenas) como conhecimento e teoria, rompendo com uma perspectiva de pensamento colonial que as subalternizam, colocando-as apenas como produtoras de folclore ou cultura.
Essa postura está pautada no que se denomina giro-decolonial, que se constitui de um movimento teórico, ético, político, prático e epistemológico, que busca questionar a lógica da modernidade/colonialidade (MIGNOLO, 2003). Tal perspectiva implica, também, o exercício da crítica às antigas dicotomias periferia/centro, cosmopolitismo/ruralismo, civilizado/selvagem, negro/branco, norte/sul. Assim, a tarefa de imaginar o nosso mundo pós-colonial implica, dentre outras questões, necessariamente, a deslocação, inversão ou até implosão do pensamento dual eurocêntrico (COSTA, 2006). Nesse sentido, torna-se possível o diálogo de saberes, a convivência de diferentes formas culturais de conhecimento sem que estejam submetidos à hegemonia da episteme ocidental, constituindo-se num dos caminhos possíveis para a árdua empreitada de decolonização (CASTRO-GÓMEZ, 2007, p. 87).
Como coloca Chinua Achebe:
Não, não há nenhuma obrigação moral de escrever de maneira específica. Mas há a obrigação moral, eu acho, de não se aliar com o poder contra os oprimidos. Eu acho que um artista, na minha definição da palavra, não é alguém que toma partido do governo contra seus governados oprimidos. Isso é diferente de prescrever um jeito que um escritor deve escrever. Mas eu acho que a decência e civilidade insistiriam que você tomasse o partido do oprimido. (ACHEBE, 2000, s/p)
Evidentemente, trata-se de um enorme desafio para o trabalho desenvolvido na academia e nas escolas. Por outro lado, é preciso reconhecer que já houve avanços na ampliação da produção do conhecimento e na prática pedagógica no campo da história indígena, dos estudos africanos e no ensino de História, principalmente, devido à atuação das próprias populações indígenas, africanas e afro-descendentes em suas lutas por direitos.
A história da escola dentro de territórios indígenas no Brasil é repleta de violências físicas e simbólicas. Até recentemente, as experiências escolares dos indígenas envolviam proibição da língua materna e até mesmo castigos físicos. Essa escola tradicional colonial tinha o objetivo de educar para civilizar, ou seja, integrar pessoas cuja identidade era considerada transitória pelo Estado. Para a política indigenista, pelo menos até a conquista do direito à diferença com a Constituição Federal de 1988, os indígenas estariam fadados ao desaparecimento; ideia que marca, inclusive, o pensamento historiográfico oitocentista com ressonâncias no senso comum contemporâneo. Atualmente em crescimento populacional e num processo de reforço identitário, povos indígenas distintos exigem uma escola (quando a reivindicam) diferenciada e intercultural que valorize de maneira equilibrada os conhecimentos indígenas e não indígenas. Essa visão, afirma o antropólogo Gersem Baniwa, tem a ver com a necessidade dos índios aproveitarem as coisas boas da escola e da universidade para estabelecer uma relação menos assimétrica com a sociedade dominante e construir correlações de forças menos desiguais
(2012, p. 130). A educação formal tornou-se, nesse sentido, um caminho para o fortalecimento de culturas e de comunidades originárias. Domina-se os códigos da sociedade não indígena sem deixar de ser quem se é.
A inserção dos indígenas no ensino superior aumentou significativamente a partir do início do século XXI, garantida pelas políticas públicas hoje ameaçadas. São inúmeras as instituições universitárias que não só inserem, mas têm que garantir a permanência de estudantes indígenas por meio de apoio financeiro e, também, psicológico. O que se verifica é que jovens indígenas empenham-se para conviver num espaço preponderantemente branco e alicerçado na escrita, encaram o desafio de estabelecer um diálogo intercultural e se apropriar de novos saberes. A pergunta fundamental, invertendo a lógica colonial é: o que as universidades aprendem com os saberes indígenas?
As universidades ainda aproveitam muito pouco dos conhecimentos, da sabedoria que os índios levam consigo para a universidade. Eu não tenho a menor dúvida do inverso: os povos indígenas aproveitam tudo. […]. Porque se houver reciprocidade no aproveitamento dos diferentes saberes indígenas e não indígenas na academia, todo mundo ganha com isso. Se um dia a gente conseguisse, por exemplo, aproveitar bem complementarmente os conhecimentos dos índios com relação a plantas medicinais e da medicina tradicional com a medicina científica, todo mundo sairia ganhando, índios e não índios. Nossa, que riqueza teríamos! (BANIWA, 2012, p. 140)
O escritor Daniel Munduruku é categórico ao afirmar que os indígenas se aproveitam mais do conhecimento ocidental do que o Ocidente se aproveita do conhecimento indígena. Ora, quem será mais inteligente nessa história? O indígena faz muito mais esforço para entender o Brasil, do que o Brasil para entender os indígenas. E nisso quem perde é o próprio Brasil
(MUNDURUKU, 2016). Aílton Krenak, uma das maiores lideranças do movimento indígena brasileiro, partilhou, na ocasião do recebimento do título de doutor honoris causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), em 2016, que estava honrado e que mantinha a serenidade diante de tamanha celebração por ser um sujeito coletivo, e não um sujeito no sentido singular da palavra. Aquela era uma vitória dos povos indígenas, das comunidades negras, dos quilombolas e de outras comunidades invisibilizadas que se sentiam reconhecidos por aquela homenagem. Indo além, instigou.
Eu acredito que nossas universidades devem considerar a possibilidade de radicalizar no entendimento de que existe um notório saber em diferentes segmentos da nossa comunidade, da nossa sociedade, que não são apenas honoríficos, são notórios conhecimentos. Nós devemos respeitar, avaliar e trazer para o conceito da pesquisa, do fazer conhecer, do fazer saber, para que esses saberes não sejam só simbólicos, para que eles não sejam só referências simbólicas ou folclóricas, que a gente não insista em chamar de conhecimento popular aquilo que cura, aquilo que prolonga a vida, aquilo que cria maneiras de relacionamento sociáveis, que diminui a violência, que diminui os atritos entre diferentes segmentos da nossa comunidade. (KRENAK, 2016a, s/p).
Aílton Krenak é professor do projeto federal Encontro de saberes nas universidades brasileiras
, que busca propiciar um espaço de experimentação pedagógica e epistêmica que coloque em diálogo o mundo acadêmico, alicerçado (ainda) na escrita e num modelo eurocêntrico, e o mundo dos saberes tradicionais, centrado na oralidade de grupos subalternizados, entre eles, indígenas e africanos. Nesse sentido, Krenak é certeiro:
O mundo exige novas posturas com relação à ideia da ciência, da pesquisa, do conhecimento. Os cânones que orientaram o conhecimento até hoje, eles ficaram muito limitados à visão europeia, à visão colonial. Nós estamos numa empreitada de descolonizar as nossas mentalidades e a universidade tem papel fundamental nisso (KRENAK, 2016a, s/p).
A caminhada foi e é de muita luta, por isso, Krenak considerou aquele um momento de partida, e não de chegada.
Por sua vez, no que diz respeito às populações afro-brasileiras, essas também, devido às políticas públicas, têm adentrado os muros das universidades, exigindo serem reconhecidas e respeitadas (e não somente incluídas). Tal posicionamento tem implicações nos questionamentos em torno da permanência do eurocentrismo/colonialidade nos componentes curriculares de forma que se tem exigido a visibilização e incorporação de temáticas que evidenciem, no passado e no presente, experiências, trajetórias, fazeres, percepções de mundo de populações africanas e afro-descendentes. E encontram ressonância no campo da historiografia e, em especial, foco de abordagem dessa discussão, no dos chamados Estudos Africanos¹¹, de forma que, nos últimos anos, tem ocorrido uma ampliação de produções acadêmicas¹² com temáticas diversas, bem como perspectivas de análise e aportes teóricos e metodológicos, contribuindo para a problematização e visibilização das experiências de diferentes sujeitos históricos. No entanto, considera-se, ainda, a necessidade de abertura para a incorporação de narrativas expressas em diferentes suportes de memórias, produzidas pelos próprios africanos (e indígenas), bem como a sua produção acadêmica. Como pensar a produção do conhecimento histórico e o ensino de História de África, por exemplo, se nos voltássemos ou deslocássemos o lócus de enunciação, para homens e mulheres de diversas nacionalidades africanas? O que as universidades aprendem com os saberes africanos?
Aqui, de forma bastante sutil, está colocada essa perspectiva no uso do próprio termo de e não da África. De acordo com o marfinês radicado na República do Benin, Paulin Hountondji: "quão africanos são os chamados estudos africanos? Por exemplo, por história africana entende-se normalmente o discurso histórico sobre África, e não necessariamente um discurso histórico proveniente de África ou produzido por africanos [...]" (2010, p. 133; grifo do autor). Nessa direção, de acordo com Macedo (2016a, p. 283), o pesquisador senegalês Ousmane Oumar Kane, recentemente, apontou a necessidade de repensar os pressupostos ocidentais (europeus ou africanos) para a produção do conhecimento e do entendimento de África, incorporando a contribuição intelectual do islã e dos autores (africanos ou não) de língua árabe, ampliando o repertório de possibilidades de interpretação sobre o continente e suas populações. Esses dois exemplos nos convocam para a necessidade de reconhecer o protagonismo dos africanos na construção de interpretações e narrativas marcadas pelos seus loci de enunciação e, portanto, pela sua experiência social e histórica pautadas numa tradição de conhecimento em todas as disciplinas e com base em África
(HOUNTONDJI, 2010, p. 141), e que precisam ser conhecidas e ouvidas. Evidentemente, esse posicionamento não implica considerar que apenas africanos possuam a exclusividade como produtores de conhecimentos e que possam falar sobre si, desconsiderando ou negando narrativas outras realizadas por estudiosos de diferentes nacionalidades na Europa ou nas Américas. É imprescindível assumir uma postura sensível para que seja possível ouvir as suas vozes, suas criações culturais e históricas, seus conhecimentos ou forma de concebê-los enquanto tal. Por outro lado, pesquisadores(as) não africanos poderiam contribuir nesse sentido a partir da sua própria perspectiva e contexto histórico (HOUNTONDJI, 2010, p. 142). Tal postura implica, ainda, a incorporação de amplo suporte de memórias e corpus bibliográfico: narrativas literárias, filosóficas, históricas, sociológicas, orais, visuais, corporais, tendo como perspectiva central o princípio da diversidade, de forma que seja possível construir uma interpretação e uma explicação da existência de contextos e de sociedades diversas e complexas constituintes do continente africano.
Nesse sentido, o alcance das políticas de ação afirmativa e dos dispositivos legais educacionais como as leis federais nº 10.639/03 e nº 11.645/08 depende, também, desse alargamento das formas narrativas. Entendemos que esse é um caminho importante para a construção da diversidade praticada, rumo ao que poderíamos chamar de um equilíbrio das histórias (ACHEBE, 2013), em que essas populações deixam de ocupar espaços predeterminados nas narrativas sobre o passado para tornarem-se pessoas ativas, não só da história, mas de suas formas de fazer e contar. Esses e outros elementos funcionam não apenas como produtores de sentido, mas como canais de identificação, de construção da empatia. O processo de geração de empatia, durante a absorção de uma história, acontece quando a narrativa nos transporta para o mundo da personagem, fazendo com que nos identifiquemos com ela, com seu grupo, com suas lutas. A nosso ver, a implementação dos dispositivos legais depende de uma compreensão de histórias e culturas africanas e indígenas que seja fruto desse processo de empatia, de modo que sejam incorporadas no todo social suas reivindicações.
Como afirma Chinua Achebe,
[...] se alguém conta uma história sobre algo que você não gosta, conte outra história sobre você mesmo que você gosta, que também é verdade e contrapõe a que lhe foi contada – não vamos entrar no mérito da deslegitimação da outra história, especialmente se esta é verdadeira, mas criar uma situação em que existe uniformidade. Nós temos que fazer esse tipo de coisa em larga escala – para mudar a imagem dominante de África que tem sido formada há centenas de anos. [...] E isso é realmente algo que eu desejo ver neste século – a balança das histórias, onde todas as pessoas estarão hábeis para contribuir com a própria definição, onde nós não somos vítimas dos relatos de terceiros. Isso não quer dizer que ninguém nunca mais possa escrever sobre outro alguém – eu acho que podem, mas aqueles que vêm escrevendo [colonizados], poderiam também participar no fazer dessas histórias. (ACHEBE, 2013, s/p).
É, portanto, necessário e urgente o conhecimento e o aprendizado a partir de saberes diversos em uma sociedade que é plural. Nesse sentido, as instituições educacionais brasileiras devem construir práticas educativas que colaborem com um equilíbrio de histórias, ao aprender com conhecimentos indígenas e africanos, por meio da discussão de materiais diversos produzidos por eles mesmos. Constrói-se, assim, conhecimento por meio de sabedorias provenientes de pessoas que foram marginalizados pelo processo histórico, no passado e no presente, mesmo dentro de uma estrutura universitária eurocêntrica.
Como nos alerta Castro-Gómez (2007), o pensamento e a estrutura universitários são partes da estrutura triangular da colonialidade: colonialidade do poder, colonialidade do ser e colonialidade do saber. Ambos sendo, portanto, lócus privilegiado (e ainda hegemônico) na produção e fiscalização do conhecimento pautado no modelo epistêmico moderno/colonial. No entanto, mudanças são possíveis por meio da flexibilização transdisciplinária e da transculturização do conhecimento. O diálogo de saberes e a convivência de diferentes formas culturais de conhecimento, sem que estejam submetidos à hegemonia da episteme ocidental, seriam um dos caminhos para a árdua empreitada de decolonização da universidade (CASTRO-GÓMEZ, 2007), como apontado nas reflexões realizadas até aqui a partir dos próprios africanos e indígenas citados.
Diante das questões colocadas até o momento, que foram centrais para a reflexão de nossas práticas de ensino, pesquisa e extensão no âmbito da universidade¹³, o que podemos aprender com indígenas e africanos, a partir de suas narrativas, que nos possibilita construir interpretações outras do passado? É possível a formulação de categorias novas de análise histórica a partir de seus saberes compartilhados? É a partir dessas questões que podemos refletir sobre tempo e ancestralidade, categorias essenciais para a História e para os povos originários e africanos.
Somos povos! Somos ancestralidade.
¹⁴.
No que diz respeito aos povos originários, é necessário que se reconheça, por um lado, a sua pluralidade étnica e cultural; por outro, a vivência comum pautada na ancestralidade. Nesse sentido, Daniel Munduruku é provocativo.
Não existem índios no Brasil! É comum se afirmar que os antigos habitantes do Brasil são índios. Isso não é verdade. Este é um equívoco muito grande, que tem diminuído a complexa diversidade indígena. É um apelido engendrado na mente do povo brasileiro. Somos mais que um apelido. Somos mais que um conceito vazio. Somos povos! Somos gente verdadeira. Somos ancestralidade. (MUNDURUKU, 2013 apud KAYAPÓ, 2014, p. 52).
Ao refutar o genérico termo índio
, Munduruku ressalta a diversidade e a ancestralidade como essência do ser indígena, que vivencia o tempo numa articulação constante entre passado e presente. Para o povo Munduruku, diz ele, só existem dois tempos: o tempo do passado, que é o tempo da memória, e o tempo do presente, que é o tempo do agora. Na língua Munduruku, não existe a palavra futuro, simplesmente porque o futuro não existe
(MUNDURUKU, 2016, s/p). Não se almeja, como no tempo linear ocidental, congelar um tempo que não temos por meio de uma expectativa de felicidade futura. A quebra no tempo Munduruku, todavia, é feita justamente pelos chamados rituais de passagem. Nós cortamos, dividimos, digamos assim, o presente de cada fase
(MUNDURUKU, 2016, s/p). Ao vivenciar cada presente de maneira adequada, um Munduruku pode se tornar um dia um avô, ou mesmo um respeitado ancião tataravô. Esses são os referenciais da comunidade, aqueles que criam o espírito das crianças por meio do contar histórias. É um processo educativo que faz os sujeitos perceberem seu pertencimento àquela cultura específica. Daniel Munduruku anuncia, inclusive, que se expressa como um cidadão que pertence a uma cultura ancestral, não como um suposto porta-voz do índio
romantizado ou desqualificado que está na cabeça do não indígena. Revela, porém, aspectos que conectam culturas indígenas distintas, como por exemplo, o pensamento circular, que vincula história, memória, oralidade, ancestralidade, tempo.
As histórias indígenas, sobretudo, mas as histórias em geral, têm um componente que a gente esquece: normalmente elas são cíclicas ou circulares. O pensamento indígena é um pensamento circular. O que significa isso? Significa que a gente pensa em forma de espiral. Espiral é aquela mola que dá uma volta e se encontra novamente no mesmo ponto. A espiral como pensamento é essa volta ao passado necessária – é importante que a gente faça esse caminho de buscar no passado os sentidos da nossa existência para podermos dar valor ao momento em que a gente vive. O povo indígena não nega a sua memória, não nega a sua história. O tempo inteiro ele busca no passado os sentidos para atualizar sua existência no presente. Então, quando pensamos nas populações indígenas vivendo nos dias de hoje, temos que considerar que elas estão fazendo uma atualização da própria história. Vocês sabem que a cultura é algo dinâmico. Não existe cultura parada no tempo.