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Educação das Relações Étnico-Raciais: Caminhos para a Descolonização do Currículo Escolar
Educação das Relações Étnico-Raciais: Caminhos para a Descolonização do Currículo Escolar
Educação das Relações Étnico-Raciais: Caminhos para a Descolonização do Currículo Escolar
E-book387 páginas5 horas

Educação das Relações Étnico-Raciais: Caminhos para a Descolonização do Currículo Escolar

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Sobre este e-book

Esta coletânea traz o resultado de fecundas pesquisas em torno dos temas: descolonialidade curricular e formação de professores, diferença indígena, políticas de diversidade étnico-racial no novo PNE, diferença negra e indígena no livro didático, igualdade racial no PPP da escola, desconstrução do preconceito racial na literatura infanto-juvenil, literatura afro-brasileira, diversidade étnico-racial no programa Biblioteca na Escola, interculturalidade e educação indígena.

Os textos propõem reflexões críticas sobre a formação do professor, o currículo e o deslocamento epistêmico trazido pelas Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que possibilitaram questionar a lógica hegemônica de uma cultura comum, de base ocidental e eurocêntrica, que subjugou, silenciou e inviabilizou outras lógicas e outros saberes. Por isso os estudos acenam para a necessidade de uma revisão epistêmica na formação docente, para a ressignificação do currículo e das práticas pedagógicas institucionalizadas nas escolas, a fim de problematizá-las e instigar a construir lógicas diferentes para a educação das relações étnico-raciais, assentadas no diálogo intercultural.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento17 de out. de 2018
ISBN9788547313258
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    Pré-visualização do livro

    Educação das Relações Étnico-Raciais - Eugenia Portela de Siqueira Marques

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO EDUCAÇÃO, TECNOLOGIAS E TRANSDISCIPLINARIDADE

    Aos alunos pardos, pretos, negros e indígenas,

    e a todas as vítimas de preconceitos e discriminações...

    APRESENTAÇÃO

    Este livro nasceu num processo dinâmico de estudos e pesquisas desenvolvidos no Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação, Relações Étnico-Raciais e Formação de Professores (Geprafe), da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Grande Dourados. Apresenta, especialmente, os resultados da pesquisa Educação para as relações étnico-raciais e a descolonização curricular: o ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Indígena no estado de Mato Grosso do Sul de 2012 a 2016, aprovada e financiada pela Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia do Estado de Mato Grosso do Sul (Fundect), agência de financiamento e fomento à pesquisa de Mato Grosso do Sul.

    Os capítulos são resultados de estudos, reflexões teóricas e pesquisas relacionados às temáticas discutidas no grupo, a saber: tratamento da diferença negra e indígena na educação nacional; atendimento escolar aos afro-brasileiros e indígenas em escolas de Mato Grosso do Sul; educação das relações étnico-raciais e o respeito à diferença, desconstrução de estereótipos, preconceitos e racismo; atendimento às Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que tratam do ensino da História e Cultura Afro-brasileira e indígena, interculturalidade e (des)colonização curricular; formação de professores para a educação em contexto de diferença cultural e étnica; entre outros temas correlatos.

    Os estudos apresentados denunciam omissões, lacunas e desafios para a implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações étnico-raciais no Brasil. Apresenta análises de práticas e de propostas pedagógicas, de documentos curriculares, da legislação nacional, estadual (MS) e municipal dos municípios de Dourados e Campo Grande, de livros didáticos, os quais indicam que há muito ainda a avançar no caminho da desconstrução de estereótipos, de preconceitos e do racismo. Há muito a avançar no caminho da descolonização curricular e pedagógica!

    Vivenciamos um tempo no qual o discurso sobrea diferença se faz latente e, continuamos a construir um mundo onde os povos africanos, afrodescendentes e indígenas e suas histórias, culturas e saberes são subjugados e subalternizados, onde ainda enfrentamos o discurso colonial vigente, na educação, no currículo e nas práticas pedagógicas de forma efetiva e consistente.

    Esperamos que os artigos publicados neste livro possam contribuir para processos de formação inicial e continuada de docentes, na perspectiva da construção de uma educação pública de qualidade, democrática e antirracista.

    As organizadoras

    PREFÁCIO

    Reflexões à primeira leitura!

    Caminante, son tus huellas

    el camino y nada más;

    Caminante, no hay camino,

    se hace camino al andar¹.

    ~

    Antonio Machado

    Os caminhos para a descolonização do currículo escolar estão sendo traçados sob nossos passos ao caminhar. Rever as trajetórias percorridas não nos permite voltar atrás, mas é condição para projetar a direção que decidirmos trilhar. Juntos. Porque:

    Sonho que se sonha só

    É só um sonho que se sonha só

    Mas sonho que se sonha junto é realidade (Raul Seixas, 1974).

    Os estudos aqui compilados trazem informações preciosas para refletir sobre os avanços e tropeços que já experimentamos nas políticas e práticas educacionais no campo das relações étnico-raciais. E avaliar nossas práticas, repensando criticamente nossas teorias, é condição para continuar a sonhar e a construir propostas de educação intercultural em perspectivas descoloniais e não coloniais.

    No decorrer dos últimos 13 anos, as Leis Federais nº 10.639/2003 e 11.645/2008 instituíram a obrigatoriedade de ensino da história e cultura africana, afro-brasileira e indígena nas escolas brasileiras. A promulgação dessas leis resulta de consensos construídos pela densa e complexa trama de lutas tecida por inúmeros movimentos socioculturais. Geradas por lutas político-socioculturais, as leis configuram instrumentos de lutas. Pois com amparo dessas leis, realizaram-se inúmeras atividades institucionais, grupais e pessoais voltadas para a valorização das relações étnico-raciais: no campo da pesquisa e da produção literária – inclusive com protagonismo de autores afro-brasileiros e indígenas – no programa nacional de distribuição de livros literários às escolas públicas brasileiras, nos programas de formação inicial e continuada de professores, nos projetos político-pedagógicos de escolas, entre outras.

    É importante reconhecer e valorizar as experiências que vêm legitimando os saberes populares, indígenas, afro-brasileiros e africanos no contexto brasileiro, particularmente nas práticas educacionais populares e escolares. Tendo sido historicamente silenciados, esses saberes e seus autores ancestrais são os principais agentes de resistência não colonial e de movimentos de descolonização, em face do processo de globalização do modo moderno capitalista liberal e neoliberal de ser e de viver, bem como das instituições de saber e de poder, no mundo contemporâneo.

    A leitora e o leitor, ao acompanharem as pesquisas apresentadas neste livro, encontrarão certamente elementos instigantes de reflexão.

    Já na minha primeira leitura, chamou-me atenção, de modo especial, a forma como as professoras e os professores interpretam a diversidade étnico-racial e implementam o seu fazer pedagógico. Ou seja, refletindo pelo reverso do silenciamento dos preconceitos interétnicos induzido pelo mito da democracia racial, podem-se entrever os questionamentos que educadoras e educadores, a partir das interações pessoais cotidianas, levantam a respeito do caráter racista e discriminatório dos dispositivos disciplinares em sua prática pedagógica.

    Daí a importância de promover, durante os processos de formação continuada aos profissionais da educação, a reflexão crítica sobre as experiências interpessoais vividas no cotidiano escolar. A escuta dos significados que as pessoas, particularmente crianças e jovens, constroem a partir de seus diferentes contextos histórico-sociais permite compreender e valorizar a originalidade cultural e a relevância política desses significados tecidos pelas pessoas em interação. Pois as pessoas se diferenciam e se articulam mediante o intenso intercâmbio de suas produções e coproduções culturais originais.

    O reconhecimento do potencial criativo e autoral das pessoas, na interlocução educativa, descontrói a pressuposição de superioridade-inferioridade racial (definida a partir de critérios epidérmicos e fenotípicos) que sustenta a colonialidade. A matriz do poder colonial historicamente vincula a ideia de raça, como critério de classificação e controle social, com o desenvolvimento do capitalismo global (moderno, colonial, eurocêntrico), iniciado como parte da formação histórica da América².

    O reconhecimento das diferenças étnicas interpessoais mediante experiências educacionais dialógicas, ao serem estas contextualizadas histórica e culturalmente, possibilita desconstruir o mito da democracia racial. Ou seja, damo-nos conta de que cometemos inadvertidamente atos de discriminação em nossas relações cotidianas, na medida em que refletimos sobre os dispositivos racistas que herdamos de nossa história. Compreendemos que, do ponto de vista legal, todas as pessoas devem ser consideradas iguais em direitos e oportunidades, independentemente de sua raça. Mas, para além da concepção democrática de igualdade, liberdade e solidariedade entre todos os cidadãos, entendemos que o próprio conceito de raça é contraditoriamente uma invenção para justificar a subalternização, a dominação e a exploração de grupos socioculturais majoritários por setores minoritários, oligárquicos.

    Com efeito, a dominação e a subalternização de um grupo por outro são legitimadas, na perspectiva racista, pela diferença da pigmentação da pele. Mas a sujeição é efetivamente produzida pela ilegítima apropriação e pelo uso privado dos contextos socioambientais, pela privatização dos meios de produção econômica e dos dispositivos de gestão política da vida social coletiva, bem como pelo controle oligárquico dos processos de produção cultural e científica. A apropriação privativa dos bens e dos meios de produção sociocultural é ilegítima e injusta, porque os processos de produção social e cultural da vida pertencem a todos, por resultarem da ação e da interação do conjunto dos seres vivos e dos seres humanos que constituem os contextos socioambientais.

    Chamou-me atenção também a constatação de que a escolarização indígena tem sido circunscrita aos territórios indígenas, às suas reservas, às escolas específicas e diferenciadas. E pouco se tem valorizado a presença e as identidades dos indígenas como estudantes nas escolas nacionais não específicas, que deveriam acolher a diversidade. Esse fato evidencia o ingente desafio de promover processos educacionais interculturais, seja mediante intercâmbio e interação das escolas indígenas com as outras unidades educacionais do sistema nacional de educação, seja mediante potencialização do diálogo e da cooperação intercultural entre os diferentes sujeitos socioculturais que constituem os contextos e o cotidiano das escolas. Ao dar voz e vez aos sujeitos de grupos étnicos (que tradicionalmente têm sido invisibilizados e subalternizados, como os indígenas e afrodescendentes), abre-se a possibilidade de aprender com suas diferentes culturas, histórias e saberes a descolonizar nossa sociedade, promovendo relações não coloniais de bem-viver.

    O bem-viver significa a boa maneira de ser e viver, ou seja, de conviver em comunidade e em harmonia com a natureza. Essa sabedoria, presente em todas as culturas ameríndias, leva-nos a compreender que a relação entre todos os seres do planeta tem que ser encarada como uma relação social, entre sujeitos, em que cultura e natureza fundem-se em humanidade. Para além da concepção moderna eurodescendente de oposição binária entre natureza e sociedade, o bem-viver promove a relação milenar entre mundos biofísicos, humanos e espirituais que dá sustentação aos sistemas integrais de vida dos povos ancestrais.

    Ao repercorrer, na escola e na formação de professores, a história dos povos originários africanos e indígenas, bem como de seus descendentes em nosso continente ameríndio, podemos aprender com suas culturas ancestrais a revalorizar a relação holística, tecida mediante práticas comunitárias dialógicas integradas com o mundo natural. Essa aprendizagem é que nos permite somar forças com os movimentos sociais dos povos ancestrais em suas lutas por desconstruir a matriz racista e especista constitutiva das relações coloniais e neocoloniais que vem tentando capturar nossos modos de ser e de viver, de saber e de poder.

    Ao ler os relatos das pesquisas aqui apresentados sobre o ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Indígena no estado de Mato Grosso do Sul de 2012 a 2016, senti-me efetivamente instigado a refletir sobre a educação para as relações étnico-raciais e a reconsiderar criticamente minha prática e meus pensamentos na busca de descolonizar a educação. E fico imaginando o que também você, leitora, leitor, vai experimentar e refletir diante dos achados desta pesquisa!

    Prof. Dr. Reinaldo Matias Fleuri

    Professor titular da Universidade Federal de Santa Catarina no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas. É pesquisador do CNPq (1C) e professor honorário na University of Queensland e na Griffith University (Austrália, 2014-2017).

    Sumário

    capítulo 1

    TINHA UMA PEDRA NO MEIO DO CAMINHO…: A AUSÊNCIA NA FORMAÇÃO DO PROFESSOR

    Introdução

    Os desafios epistemológicos para a descolonização do fazer docente

    Conhecimento profissional em números

    A voz dos/as educadores/as: mudanças necessárias

    A voz dos educadores: reflexos de uma lacuna formativa

    Considerações

    Referências

    capítulo 2

    DISCURSO OFICIAL PARA O TRATAMENTO DA DIFERENÇA INDÍGENA

    NA EDUCAÇÃO NACIONAL: VALORIZAR A DIVERSIDADE!

    Introdução

    O tratamento da diferença/diversidade na educação nacional

    O discurso presente nos Parâmetros Curriculares Nacionais

    O discurso nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica e na LDBEN/1996

    (Art. 26 A – redação da Lei 11.645/2008)

    Considerações

    Referências

    capítulo 3

    A TEMÁTICA INDÍGENA NA ESCOLA: POR ENTRE HISTÓRIAS, PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES EM PROL DA DESCONSTRUÇÃO DE ESTEREÓTIPOS E PRECONCEITOS

    Introdução

    Da construção dos estereótipos: a historiografia

    Da veiculação dos estereótipos: o livro didático

    Estereótipos e preconceitos mais recorrentes

    Considerações

    Referências

    capítulo 4

    O PLANO NACIONAL E ESTADUAL DE EDUCAÇÃO: UMA ANÁLISE DAS METAS E ESTRATÉGIAS DE ATENDIMENTO AOS AFRO-BRASILEIROS E INDÍGENAS EM MATO GROSSO DO SUL

    Introdução

    Análise das metas e estratégias dos Planos Nacional e Estadual de Educação

    Análise da legislação estadual para a educação escolar indígena 

    Considerações 

    Referências 

    capítulo 5

    ESCOLA, LEITURA E DESCOLONIALIDADE: OS LIVROS DISPONÍVEIS EM ESCOLAS SUL-MATO-GROSSENSES E A proposta da educação DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

    Introdução 

    Movimentos sociais negros e indígenas: por uma política de igualdade étnica e racial 

    Materiais didáticos e paradidáticos: dados da pesquisa 

    Considerações 

    Referências 

    capítulo 6

    PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO: POSSIBILIDADES E LIMITES PARA A PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA

    Referências 

    capítulo 7

    A LITERATURA INFANTIL E INFANTO-JUVENIL: UMA POSSIBILIDADE DE DESCONSTRUÇÃO DE PRECONCEITOS E RACISMO

    Introdução 

    A literatura infanto-juvenil e as possibilidades para a afirmação da identidade negra 

    A literatura infanto-juvenil nas escolas da rede estadual de ensino de Mato Grosso do Sul 

    Considerações 

    Referências 

    capítulo 8

    POR QUE OS LIVROS INFANTIS SÃO INDICADOS TAMBÉM PARA OS ADULTOS?

    Introdução 

    Uma perspectiva teórico-crítica: reflexão sobre literatura infantil 

    Três obras a serem lidas também pelos adultos 

    Considerações 

    Referências 

    capítulo 9

    LITERATURA AFRO-BRASILEIRA, PRESENTE!

    Literatura afro-brasileira ou literatura negra? 

    Não me vejo, não compro! 

    As mulheres negras como escritoras e personagens 

    Carolina Maria de Jesus 

    Conceição Evaristo 

    O cardápio literário nas escolas de ensino básico 

    Referências 

    capítulo 10

    O TEMA DA DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL NO PROGRAMA NACIONAL DE BIBLIOTECA DA ESCOLA: O QUE DIZEM AS PESQUISAS ACADÊMICAS

    Introdução 

    As perspectivas diversas sobre a diversidade étnico-racial no PNBE 

    Considerações 

    Referências 

    capítulo 11

    A INTERCULTURALIDADE COMO FERRAMENTA PARA (DES)COLONIZAR: REFLEXÕES A PARTIR DA EDUCAÇÃO SUPERIOR INDÍGENA

    Introdução 

    A interculturalidade como ferramenta pedagógica para (des)colonizar 

    Educação superior intercultural indígena em Mato Grosso do Sul 

    Para que uma educação superior intercultural? 

    Considerações 

    Referências 

    SOBRE OS AUTORES

    capítulo 1

    TINHA UMA PEDRA NO MEIO DO CAMINHO: A AUSÊNCIA NA FORMAÇÃO DO PROFESSOR

    Eugenia Portela Siqueira Marques

    Fernanda Alexandrina de Almeida

    Wilker Solidade da Silva

    Hígor de Siqueira Marques

    Introdução

    A implementação da Lei 10.639/2003 e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana instiga reflexões sobre o desafio estabelecido para a concretização de uma pedagogia decolonial³ que possibilite construir ou ressignificar o espaço que essa cultura ocupa nas escolas brasileiras. Tendo como referência os estudos pós-coloniais, investigamos nas escolas públicas estaduais de Mato Grosso do Sul evidências de como se concretiza, dentro da escola, a adequação curricular proposta nessa lei de 2003 e de que forma ocorrem as interpretações dos professores sobre a diversidade étnico-racial, sua relação com o currículo escolar e seu fazer pedagógico. Como orientação metodológica, optamos pela aplicação de questionários semiestruturados, disponibilizados e acessados on-line pelos professores, bem como pela efetivação de pesquisa documental.

    Os movimentos sociais, em especial o movimento negro, denunciam as desigualdades históricas que foram se naturalizando no tecido da formação do povo brasileiro. As reivindicações desses movimentos tensionaram a dinâmica social, política e cultural que produziu novos sujeitos coletivos sociais e políticos, sujeitos que se colocam em face do rompimento com a inferiorização e a subjugação impostas e naturalizadas pela colonialidade.

    No âmbito educacional, o conteúdo que simboliza os reflexos desse momento, alterando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.694/1996), é a promulgação da Lei 10.639/2003, que obriga a inserção de conteúdo programático sobre o ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Africana, além do reconhecimento histórico das lutas dos homens e das mulheres negras no Brasil, assim como a cultura negra brasileira, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política, pertinentes à História do Brasil⁴.

    A legislação, por meio de diretrizes do Plano Nacional de Educação das Relações étnico-raciais, trouxe orientações norteadoras sobre a necessidade de valorização e o reconhecimento da diferença nas diversas esferas sociais, incumbindo aos profissionais da educação a busca por mecanismos que possibilitassem aos alunos o acesso ao conhecimento, até então ocultado da história nacional, não do negro representado apenas como sujeito escravizado, mas principalmente como protagonista da construção da história nacional.

    Como consequência direta do processo, livros didáticos passaram a ser alterados, de forma progressiva, visando ao cumprimento das exigências dessa modificação curricular, iniciando um processo de transformação do conteúdo referente ao paradigma da representação do povo negro no Brasil. Tensionando, dessa forma, a estereotipação de toda uma sociedade negra brasileira, evidencia outros caminhos para as relações étnico-raciais no Brasil, estimulando e evidenciando possibilidades para outras minorias lutarem por espaço junto à reescrita dessa nova história nacional, como pôde ser confirmado pela promulgação, cinco anos depois, da Lei 11.645/2008⁵.

    Nesse viés, acreditamos que a Lei 10.639/2003 simboliza a maior conquista do século XXI dentro da luta por reconhecimento da diversidade étnico-racial no país, dando a educadores, gestores e alunos caminhos para discutir a história silenciada no currículo da educação básica e do ensino superior.

    Silenciamento que, para Gonçalves⁶, atuou, e atua, de duas formas no ideário social: uma negando a existência de discriminação racial, bem como seus processos; e outra que opta por não citar particularidades culturais da população negra, julgando-as como não necessárias à compreensão do indivíduo brasileiro, tampouco ao desemprenho escolar do alunado.

    Silva, visando à compreensão do porquê de tais estruturas sociais, afirma que, a partir das pesquisas já realizadas sobre a temática, é possível identificar que a estratégia ideológica do silêncio é particularmente atuante no fortalecimento do estabelecimento do branco [...] como norma e como superior hierarquicamente⁷, reflexo evidente do colonialismo europeu, sendo esse silêncio o mantenedor de um discurso nos espaços sociais, e, por conseguinte também na escola, que defende a construção de uma a igualdade entre os alunos a partir de um ideal de democracia racial⁸, ocultando os processos de discriminação, naturalizando-os em sua prática cotidiana.

    Instigados pela inquietação oriunda do refletir sobre tais silêncios, e tendo as escolas públicas de Mato Grosso do Sul como cenário de análise, este capítulo é fruto de uma investigação que tem como objetivo geral identificar e debater as formas de interpretação da implementação da Lei 10.639/2003 pelos professores da educação básica e verificar, a partir disso, caminhos de uma perspectiva decolonial para a aplicabilidade dessa lei. A pesquisa interinstitucional foi desenvolvida pelos pesquisadores do Grupo de pesquisa Estudos e Pesquisas sobre Educação, Relações étnico-raciais e Formação de professores⁹, o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros¹⁰ e o Fórum Permanente de Educação e Diversidade Étnico-Racial de Mato Grosso do Sul¹¹.

    Utilizando do uso focal das relações de silêncio escolar, preconceito racial e prática docente, a escrita traz reflexões resultantes da aplicação de um questionário semiestruturado aos professores de 169 escolas distribuídas em 79 municípios de Mato Grosso do Sul, tendo os dados expostos neste texto nas seguintes seções: inicialmente propomos uma interpretação da legislação como ferramenta para a prática docente decolonial, na sequência um diálogo sobre os resultados alcançados a partir do trato com os dados, e por fim alguns apontamentos sobre as possíveis interpretações, as inquietações e os caminhos evidenciados pela pesquisa.

    A Lei 10.639/2003 e as contribuições para a decolonialidade curricular

    Nas últimas três décadas, as discussões sobre as relações entre educação e diferenças culturais têm sido objeto de inúmeros debates, de reflexões e de ressignificações. As reivindicações e pressões dos movimentos negros e a emergência de novas produções acadêmicas sobre as desigualdades raciais, o mito da democracia racial e a subalternização da diferença étnico-racial fomentaram a criação de políticas públicas afirmativas e legislações educacionais para garantir processos educativos interculturais, e colocaram sob rasura a herança colonial¹² presente no currículo escolar nacional.

    O termo herança colonial é utilizado aqui como referência às práticas que residem no currículo escolar e que perpetuam posicionamentos de valoração dos conhecimentos/saberes eurocêntricos em detrimento dos africanos e afro-brasileiros. A origem dessa herança, de acordo com os escritos de Maldonado-Torres¹³, centra-se na execução do colonialismo, tendo sua organicidade mantida por todo o processo de construção de uma concepção de sociedade brasileira moderna e democrática. Para esse autor, falar sobre o período colonial remete à explanação de relações políticas e econômicas, nas quais o domínio de um povo está no poder de outro povo, forjando no interior destes uma subalternização subjetiva, intrínseca, denominada de colonialidade.

    [...] essa colonialidade se refere a um padrão de poder que emerge como resultado do colonialismo moderno, mas em vez de estar limitado a uma relação formal de poder entre dois povos ou nações, se relaciona à forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se articulam entre si através do mercado capitalista mundial e da idéia de raça. Assim, apesar do colonialismo preceder a colonialidade, a colonialidade sobrevive ao colonialismo. Ela se mantém viva em textos didáticos, nos critérios para o bom trabalho acadêmico, na cultura, no sentido comum, na auto-imagem dos povos, nas aspirações dos sujeitos e em muitos outros aspectos de nossa experiência moderna. Neste sentido, respiramos a colonialidade na modernidade cotidianamente.¹⁴

    A subjetividade, nesse ponto, serve para manter uma pseudoaceitação de todo indivíduo como membro de uma sociedade normativa, colaborando na invenção de um indivíduo formulado para o cumprimento e para a replicação dessas estruturas, situando-o numa realidade social construída. Para Mignolo¹⁵, as ciências humanas, incluindo a história, legitimada pelo Estado, cumpriram um papel crucial nesse processo de construção de um outro, situando-o aquém da definição de civilizado e o tornando referência de atraso em contraposição ao moderno, sofisticado e civilizado – no caso da América Latina, foram os europeus colonizadores. Fanon¹⁶, numa perspectiva similar, explana que o colonizador foi tão a fundo nesse processo da colonização que conseguiu estabelecer uma forma maniqueísta de entender a sociedade, não se contentando apenas em limitar fisicamente o espaço do colonizado.

    O colonizador faz do colonizado uma quinta-essência do mal. A sociedade colonizada não somente se define como uma sociedade sem valores [...]. O indígena é declarado impermeável à ética, aos valores. É, e nos atrevemos a dizer, o inimigo dos valores. Neste sentido, ele é um mal absoluto. Elemento corrosivo de tudo o que o cerca, elemento deformador, capaz de desfigurar tudo que se refere à estética ou à moral, depositário de forças maléficas.¹⁷

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