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A fraude perfeita
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E-book374 páginas5 horas

A fraude perfeita

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Sobre este e-book

Ser mãe é difícil. Mas ser filha também. Quando conhecemos Claire, ela vive com o namorado Cal em Sedona, no Arizona, e evita as chamadas da mãe. A mãe é uma reputada médium da Costa Leste e Claire não quer que descubra a verdade. É que apesar de Claire trabalhar na mesma profissão e se intitular médium, na realidade não tem o "dom". E não o tem há muito tempo. É uma fraude.
Entretanto, no outro lado do país, a jovem mãe Rena também tem problemas familiares. É divorciada e a sua filha de quatro anos, Stephanie, sofre de misteriosos problemas de estômago, aparentemente incuráveis. Por mais que Rena a arraste a diversos especialistas, por muitas publicações que faça no seu blogue de mamãs sobre os problemas de saúde da filha, tentando arranjar ajuda e apoio da sua comunidade online, Stephanie não deixa de piorar.
Quando Claire e Rena se encontram por acaso num avião, as suas vidas cuidadosamente construídas começam a explodir. Será que estas duas mulheres se podem ajudar uma à outra? Poderão ajudar Stephanie antes que seja tarde de mais?
"A estreia de LaCorte é o tipo de thriller que aumenta o suspense de forma tão lenta que só dá para perceber algures a meio a habilidade com que traçou o enredo do romance… Um thriller envolvente e bem executado."
Crime Reads
"Este é um thriller mesmo muito negro, com uma vilã inquestionável, mas alternar vozes permite criar uma tensão mais complexa… LaCorte mergulha profundamente em coisas horríveis que os seres humanos fazem — e, tal como na vida, nem todo o mal é punido —, mas ainda oferece esperança e recuperação no final."
Kirkus Reviews
"O romance de estreia de LaCorte combina um enredo sombríamente perverso com uma excelente construção de personagens e um cenário sinistramente realista que apoia muito bem a narrativa inquietante e assombrada. Isto é suspense psicológico com um final angustiante, perfeito para os leitores da Gillian Flynn e do Brandon Massey."
Booklist
"A fraude perfeita proporciona o veículo perfeito da obsessão atual da cultura pop com burlões. Este misterioso thriller segue a relação entre uma joven chamada Claire, cuja mãe é médium enquanto ela o finge ser, e uma mulher que conhece por acaso com uma filha irremediavelmente doente."
Thrillist Summer Books Roundup
IdiomaPortuguês
Data de lançamento26 de mai. de 2020
ISBN9788491394907
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    A fraude perfeita - Ellen Lacorte

    Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.

    Núñez de Balboa, 56

    28001 Madrid

    A fraude perfeita

    Título original: The Perfect Fraud

    © 2019, Ellen LaCorte

    © 2020, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.

    Publicado originalmente pela HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A.

    Tradutor: Mariana Mata

    Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.

    Esta edição foi publicada com a autorização da HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A.

    Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.

    Desenho e imagens da capa: Lookatcia

    1ª edição: Abril 2020

    ISBN: 978-84-9139-490-7

    Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

    Sumário

    Créditos

    1

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    Agradecimentos

    Para o Michael,

    Para Sempre

    1

    CLAIRE

    — Claire, o teu telemóvel está a vibrar. Outra vez — grita o Cal.

    Não levo nada comigo quando vamos correr e o meu namorado Cal, que se lamenta do seu papel como meu Sherpa particular, normalmente fica com os bolsos cheios de coisas, tais como rebuçados de menta, lenços de papel e o meu telemóvel, para além do que quer que possa precisar.

    — Quem é?

    — A tua mãe.

    — Rejeita, rejeita, rejeita — grito-lhe por cima do ombro.

    No mínimo, as conversas com a minha mãe são descargas formais de como estás, estou bem, como estás tu, tudo bem, como está o pai, a descansar, isso é bom, está bem, tenho de ir, eu também, adeus, adeus.

    Mas, às vezes, devido ao seu estado natural de repouso ser a preocupação — uma condição agravada pela doença prolongada do meu pai —, os seus telefonemas são abastecidos por preocupações delirantes e infundadas em relação a mim, a sua filha única.

    Uma vez que a minha mãe é médium, tal como a mãe dela foi, e a mãe da mãe dela, os seus telefonemas duas vezes por semana são muitas vezes apimentados com mensagens do além: não te aproximes de nenhum carro verde no dia dez; a tua trisavó diz que deves ir ao dentista por causa do teu molar do fundo no lado direito; deita as tuas calças vermelhas fora (por causa do perigo de fogo). Eu não tinha a certeza de se esta última era mesmo uma previsão de desastre ou se era por as calças na minha estatura de um metro e oitenta me fazerem parecer um palhaço a cambalear sobre andas de cores berrantes. Obstinadamente, a seguir àquela chamada, usei aquelas mesmas calças durante seis noites seguidas, com todas as velas acesas no nosso apartamento, sem me deparar com nenhum destino catastrófico.

    A Miss Madeline, como a minha mãe é conhecida, é uma espécie de celebridade na Costa Leste. Ela faz tudo: prever o futuro com tarot, canalizar espíritos de falecidos através da mediunidade e intuição médica, em que examina o corpo com a mente para identificar zonas de achaques ou doenças. A única coisa que ela não pode ou quer fazer é leitura de auras. Diz que os aparelhos eletrónicos todos que as pessoas atualmente têm interferem com os campos energéticos, e que isso a impede de ver com precisão as cores que pairam sobre as cabeças.

    Os clientes acorrem de todos os Estados e, não raramente, de outros continentes, para uma oportunidade de se sentarem diante dela. Não é só para saberem se o genro aproveitador irá aparecer com os pagamentos da pensão de alimentos exigida pelo tribunal, para que a filha igualmente irresponsável e os seus dois filhos hiperativos não tenham de viver com eles até que expire a última oportunidade de se mudarem para a costa oeste da Flórida, e que finalmente tenham alguma paz, por amor de Deus. A minha mãe é também uma venerada curandeira, tendo aprimorado as suas capacidades no opulento jardim de ervas medicinais das traseiras de uma casa suburbana na Filadélfia onde ainda vive e exerce. Ela consegue argumentar durante horas sobre as virtudes de se beber leite de cabra em vez de vaca, ou debater ferozmente se os benefícios de uma existência sem glúten são mais uma moda passageira do que um facto. Por isso, para além de oferecer garantias à vó e ao vô de que o universo prevê uma mudança para climas mais quentes (e bem longe da descendência rebelde), a minha mãe também pode vender-lhes raiz de valeriana para acentuar, saborear e acalmar-lhes os nervos em franja.

    Claro que, como me foi dito quando tive idade suficiente para compreender, é esperado que eu perpetue o dom da família.

    Três dias por semana leio tarot e providencio «orientação psíquica» na Mystical Haven, a sétima ou oitava — perdi a conta — de uma série de entidades patronais com nomes como Sandi Spirit Spot, Soul Center e Psychic Circle. Antes de nos termos mudado para Sedona, no Arizona, trabalhei na Tea and See, uma loja na Central Avenue, em Phoenix, especializada em leitura de folhas, mas que, na verdade, era uma fachada para o negócio florescente de droga do dono que dispunha de tipos completamente diferentes de folhas.

    — Carreguei no ‘rejeitar’ seis vezes, mas ela não para de ligar.

    — Boa. Carrega outra vez.

    — Talvez seja importante — sugere o Cal.

    — Carrega em ‘rejeitar’, por favor.

    Uma vez que a minha mãe insiste, parto do princípio de que esteja numa das suas disposições irrequietas, e recuso-me a passar o que será mais de uma hora ao telefone a ouvi-la a contar-me a visão que teve onde eu era salva de areias movediças por uma raposa ou um porco-espinho, ela não sabia dizer qual, ou tê-la a perguntar se eu tinha lido o artigo sobre «As propriedades reparadoras do olmo», que tinha chegado à nossa caixa de correio no início da semana. Ela tinha sublinhado um parágrafo — a roxo fluorescente — sobre «digestão lenta». Isto depois de me ter queixado de dor de barriga, embora eu tivesse praticamente a certeza de que o meu sofrimento vinha de uma enchilada picante de frango e do dobro das margaritas, detalhes que negligenciei mencionar.

    Saltei por cima de uma figueira-da-índia, com muitas das suas polpas com forma de meia-lua por causa dos javalis, um facto comprovado pelo fedor residual de trazer lágrimas aos olhos. Imaginei que tivessem marcado a área e tomado ali o pequeno-almoço, provavelmente por volta da última hora ou assim, e esperava que tivessem continuado para procurar comida pelos caixotes de lixo da vizinhança ou dormitar debaixo de algum arbusto de mesquite.

    Uns metros atrás de mim, ouço o Cal a tropeçar. Para ele tem tudo a ver com movimento de avanço, com pouca graciosidade. Eu fazia corrida de obstáculos na secundária, o que me treinou para avaliar onde colocar a perna e evitar passos vacilantes perante um obstáculo — como a agave contra a qual o Cal voou, em vez de passar por cima, a julgar pelo chorrilho de asneiras que se seguiu.

    — Toma cuidado — gritei para trás, a rir.

    Esta manhã estávamos a correr no Little Horse, um trilho que a maioria das pessoas evitava depois de uma chuvada, coisa que eu não percebia, pois era precisamente a altura em que queria estar aqui. Depois da chuvada da noite passada, os riachos secos poeirentos estão a transbordar, transformando o trilho em cascatas brilhantes em miniatura. É uma corrida que podemos fazer antes de ir trabalhar, uma vez que nunca vamos para o lado de Chicken Point por ser onde as visitas guiadas da Pink Jeep depositam os seus clientes. Tenho a minha dose de turistas na loja durante o dia, com os seus ténis brancos, «diamantes» gigantes de vidro e camisolas parolas a dizer: CONDUZI ATÉ AQUI VINDO DO CAFÉ DO BOBBIE EM TOPEKA E AINDA TENHO GASOLINA NO TANQUE.

    Para além disso, ouvi tantas vezes os truques dos motoristas-guia de visitas que provavelmente podia conduzir um grupo. Primeiro, posicionam a traseira do jipe quase até até ficar a centímetros da beira do planalto para que as mulheres gritem a imaginar que mergulham para a morte. Depois, após todos saírem, o motorista grita: «Quem quer uma fotografia a saltar?» e todos os miúdos fazem fila. Enquanto ele tira a fotografia, eles pulam o mais alto que conseguem para parecer que estão suspensos no ar sobre uma ravina. Na verdade, são só cerca de dez metros até lá abaixo, mas é uma foto espetacular para mostrar às pessoas lá no Minnesota.

    Um lagarto tigre de cauda de chicote cruza o trilho a correr, com o seu corpo cor de laranja acastanhado quase camuflado pelas nuvens de poeira vermelha no seu rasto. Entra num arbusto de creosoto na base de um zimbro retorcido.

    A fazer a curva final do trilho, quase embato numa família que está a fazer caminhada. Percebo que estão todos juntos pelas camisolas vermelhas a condizer, com letras brancas à frente onde se lê: MALOVECKIO, VIVA A AVENTURA, 2018. Decididamente, não são locais. Estão sem boné, vestidos com tops sem mangas e de chinelos de enfiar no dedo. A rapariga exibe um mero top de renda, pestanas postiças e brincos pendurados até aos ombros, e um batom de um castanho profundo. O homem mais velho (o pai, presumo) tem a cara vermelha e suada e a careca a brilhar como o asfalto em dia abrasador. A mulher (mãe) e outra criança mais nova (filho) esforçam-se por acompanhar, atrás. Tenho vontade de tirar o telefone da mão da filha, marcar o cento e doze e depois devolver-lho. Desse modo, estará preparada para salvar a vida do pai quando desmaiar devido à insolação.

    — Telefone, Claire. Anda lá. Ela não para de ligar — grita o Cal e depois ouço-o a trocar cortesias (que belo dia para uma caminhada; faltam só mais cerca de três quilómetros até ao cimo; arrefece à noite) com os Maloveckios enquanto contorna a caravana deles. Apesar de eu lhe implorar sempre para não dar conversa, já vi o Cal a ter conversas de quinze minutos com o tipo que entrega as nossas encomendas. Observei isto da janela da nossa sala e imaginei que provavelmente estivessem a discutir o preço exorbitante dos portes de envio. Quando saí para recordar o Cal de que só tínhamos dez minutos para chegar ao cinema, interrompi a história do homem das entregas sobre o apego da filha ao seu coelho que, quase com onze anos, tinha morrido recentemente, deixando a menina de coração despedaçado. A acenar a cabeça com simpatia, o Cal dizia que foi uma vida bastante longa para um coelho e que esperava que a filha dele se sentisse melhor em breve. Também aconselhou o tipo a não substituir o coelho para já, para permitir um período de luto.

    — Está bem — gritei-lhe. — Ligo-lhe quando chegar à loja. Vamos só terminar isto, está bem? Parece que estás prestes a desmaiar. — Olhei para trás para confirmar o que sabia que ia ver: o Cal, de cara vermelha a ofegar, de t-shirt azul colada ao peito. O pequeno motor que se esforça muito e quase não consegue.

    — Só mais oitocentos metros — digo eu num tom que esperava que fosse de cadência encorajadora, mas que suspeitava ter saído de uma forma condescendentemente desaprovadora.

    Ouve-se um grunhido nas minhas costas.

    Derrapamos até à gravilha do parque de estacionamento e o Cal dobra-se a agarrar os joelhos para ganhar fôlego. Dali tem-se boa visibilidade do céu, que está de um turquesa imaculado à exceção de uma nuvem com o rasto de um jato.

    — Boa corrida. — Sopra e sorri. Di-lo com sinceridade, embora vá precisar de mais vinte minutos até a sua respiração estabilizar e esta noite vá estar a coxear por causa da tensão num ou nos dois gémeos. Di-lo com sinceridade porque sabe que eu adoro correr e porque me ama.

    Cinco coisas sobre o Cal:

    Primeira, Calloway Parker Reinberg é o nome que consta na certidão de nascimento, um reflexo do amor dos seus pais pelo jazz, em particular pelo scat e bebop.

    Segunda, o Cal nasceu circuncidado, uma ocorrência rara que, na religião judaica, indica que o bebé vai ser abençoado com um potencial sem limites. Os seus pais suspiraram de felicidade quando foram apresentados ao seu bebé sem prepúcio. Na altura, como possuíam ambos otimismo e criatividade, tiveram a certeza de que aquele filho, bafejado por um futuro brilhante e a ostentar as iniciais CPR, iria de algum modo reavivar o seu casamento em ruínas. Não aconteceu.

    Terceira, o Cal sonhava vir a ser psicólogo e tinha acabado de iniciar o seu mestrado na UCLA quando me encontrou por acaso há cinco anos na Prova do Labirinto, uma prova de vinho e cerveja que teve lugar no meio de sete acres de milho. Provavelmente ainda há participantes embriagados a vaguear dentro do labirinto à procura da saída.

    Quarta, o Cal é mais generoso, amável e compreensivo do que eu alguma vez consigo fingir que sou.

    — Embora, Oz. Aquelas cartas não se vão ler sozinhas, sabias? — diz ele agora a sorrir e a empurrar-me em direção ao carro.

    É uma alcunha — Oz, às vezes Ozzie — que ele me deu depois de termos chocado um contra o outro no evento do labirinto de bêbados. Isso foi durante as férias de outono no meu segundo ano na Universidade da Califórnia, Berkeley. Viajei para norte para visitar uma amiga que se recusou terminantemente a entrar comigo no labirinto. — Eu até me perco em centros comerciais — queixou-se ela.

    Eu tinha dobrado uma esquina que tinha a certeza ser a mesma pela qual já tinha passado três vezes e na minha direção vinha um vulto que só se registou para mim no escuro como «homem, alto e largo». Colidimos um contra o outro e enquanto desemaranhávamos os membros e trocávamos um Estás bem?, ele extraiu uma lanterna do tamanho de um brinquedo do bolso — facto sobre o Cal: anda sempre preparado — e apontou-a para a minha cara. Apresentou-se e declarou que os meus olhos eram tão incrivelmente verdes que o faziam lembrar a Cidade de Esmeralda em Oz. Depois pegou-me na mão, a iluminar as esquinas à nossa frente e conduziu-nos até à liberdade em três minutos.

    A quinta coisa sobre o Cal é que sabe que eu consigo ler folhas de chá, mas só se o saco estiver claramente marcado como sendo da Lipton; Que o baralho de tarot não tem qualquer significado para mim, para além de ter imagens bonitas. E que quaisquer visões psíquicas que eu tenha são provavelmente resultado de uma ressaca terrível.

    Só o Cal sabe que a Claire Hathaway é uma fraude absoluta.

    2

    RENA

    — Sim, eles querem mantê-la mais algum tempo no hospital — conto à minha irmã. A apertar o telefone entre o ombro e a orelha, conto a roupa interior. — E ainda tenho de acabar de fazer esta estúpida desta mala.

    — Como é que isso está a correr? — pergunta Janet.

    — Uma chatice.

    — Estão a implicar muito contigo?

    — Nem imaginas. Ouve, tenho de desligar, está bem?

    — Claro. Adeus.

    A «implicar» — é de rir. Quando o Gary e eu casámos, o nosso gato ficou preso dentro de uma casinha de pássaros. Uma daquelas em cima de um poste. Eu estou a lavar a louça nessa tarde e vejo uma cauda preta a abanar de um lado para o outro fora do buraco. O Gary passou imenso tempo a tirar o parvo do gato para fora. E ainda tem as cicatrizes para prová-lo.

    Tentar que a Stephanie, a minha pequenina, tivesse alta do hospital tem sido assim.

    Mudá-la de Nova Jersey para um novo médico no Arizona foi ideia minha. Claro, o Gary está furioso. Ele vende escadas em espiral e o seu território fica para sudoeste. — Não posso simplesmente pegar na tralha e ir-me embora, sabias? — disse.

    Não, pois não, mas eu tenho de fazer tudo de tudo para ajudar a minha bebé.

    Não sei mesmo quanto mais é que o seu pequenino corpo vai aguentar. Começou quando ela tinha seis semanas. Vomitava e gritava o tempo todo. Levei a Steph ao Dr. Grant, o seu primeiro pediatra. Ele fez análises para ver se ela tinha anemia. Verificou-lhe o coração e os pulmões e após mais um milhão de exames, disse-me que ela é uma bebé com «deficit de crescimento». Eu desatei a chorar quando ele disse aquilo. Senti que o que ele estava realmente a dizer-me era que eu era um falhanço enquanto mãe. Disse-me que isso não era verdade e que algumas crianças precisavam apenas de mais comida.

    Não me diga! Mas tudo o que eu lhe dava vinha imediatamente para cima ou saía por baixo. O médico disse-me: — Continue com a ingestão de calorias de todas as maneiras possíveis.

    Foi quando eu troquei para uma dieta cem por cento orgânica, mas que não pareceu ajudar muito. O estômago dela ainda estava uma desgraça. Eu estava uma desgraça. Não conseguia dormir. Ficava a pé a noite inteira à escuta para ver se ela estava com dores ou se precisava de alguma coisa.

    Pensava mesmo que o Dr. Grant era ótimo, ao início. Sempre foi simpático. Uma vez até me elogiou acerca da forma como eu segurava na Steph, porque a acalmava logo. Mas quando só me disse para a alimentar mais, pareceu-me que me estava a despachar. Quer dizer, não era eu que estava em casa com ela o tempo todo? Eu e o Gary podíamos ver como ela estava doente. O médico vai e diz: — Rena, no conjunto, ela é uma menina saudável. É apenas um pouco pequena para a sua idade. — Disse-me para tentar mudar de leite em pó. Oh, claro, como se encontrar outra fórmula orgânica fosse muito fácil. E disse para a alimentar muito mais vezes em pequenas quantidades durante o dia.

    Segui o seu conselho. Segui mesmo. Ela continuava na mesma a gritar durante horas e isto era só após uma ou duas estúpidas colheres de puré de batata. Mas que raio? O que há de mais fácil de digerir do que puré de batata? Às vezes, quando as coisas ficavam muito más, eu tinha de levá-la às urgências no hospital. Juro que estivemos em todas as urgências dos cinco hospitais das redondezas onde vivíamos na parte norte de Nova Jersey. Foi examinada por médicos assistentes, internos, residentes e enfermeiras. E fez mais exames TAC e PET do que eu consigo contar com todos os meus dedos das mãos e pés. Insistiam em procurar coisas como enzimas estomacais em falta, fibrose quística, doença celíaca, alergias e defeitos congénitos de coração.

    Nunca se encontrou nada. Eu tenho andado a chatear o Gary para ir ao médico porque ele tem uma dor de estômago terrível desde que ele e eu estamos juntos. Talvez seja uma coisa genética? Quem sabe? Precisamos de ver todas as possibilidades. Temos de descobrir isto.

    Quando eu e a Steph vamos a um médico novo, rezo sempre uma pequena oração antes da consulta. — Por favor, Deus, deixa que este médico descubra o que se passa para que a minha bebé consiga a ajuda de que precisa. — E fico sempre tão triste e desiludida quando isso não acontece.

    Onde é que anda o Gary esse tempo todo? Na estrada a vender degraus curvos. Tenho sido eu a fazer o que é preciso quando é preciso. Os médicos aqui não parecem saber nada sobre o que se está a passar com a minha bebé, por isso passei horas sem fim ao computador a encontrar a melhor pediatra gastroenterologista da nação. O Gary está chateado, mas tenho culpa de o consultório da Dr. Riley Norton ser em Phoenix?

    Eu e o Gary separámo-nos quando a Stephanie ainda tinha só um ano. No acordo do divórcio temos guarda partilhada. No papel, isto quer dizer que ele vive na cidade vizinha e que é suposto ficar com a Steph em fins de semanas intercalados. Mas uma vez que ele anda na estrada pelo menos três semanas por mês, eu trato de quase tudo, incluindo todas as coisas médicas. Na verdade, ele só a vê nos feriados, normalmente em minha casa. Diz que vai tentar ir ao Arizona às vezes durante os seis meses que eu acho que precisamos de lá ficar. Não me importa quanto tempo demora. Seis meses ou seis anos. Não me venho embora até que alguém me possa finalmente dizer o que se passa com ela. O Gary tem razão em assegurar-se de que mantém o emprego. Não pode decididamente fazer nada que dê cabo do nosso seguro de saúde, que fica a cargo dele. Isto também faz parte do acordo do divórcio.

    Tal como provavelmente eu poderia adivinhar, o especialista de momento da Stephanie, o Dr. Rondolski, tem sido um cabrão absoluto sobre dar este passo, mas se não consegue curá-la, o que raio é que espera que faça? Que me sente ao lado da cama, lhe segure na mão e a veja a morrer lentamente?

    Tenho mais sorte do que outras mães com filhos doentes. Fiz três anos na escola de enfermagem e ainda me espanto com o quanto me lembro. Durante o meu terceiro ano fiquei grávida da Stephanie, mas antes disso, estudava muito e estava a preparar-me para começar o meu primeiro estágio clínico no hospital público. Choque total e um casamento rápido. Claro que desisti da escola no mês antes de ela nascer.

    Mas conheço imensos termos médicos e consigo perceber o que as análises e os resultados significam. Para a maioria das pessoas é como se fosse uma língua estrangeira. É por isso que, quando a Steph está no hospital, vou de quarto em quarto falar com outros pais. Às vezes ficam confusos sobre o que está a acontecer aos filhos e posso traduzir as palavras médicas assustadoras para o velho inglês corrente. Juro que os médicos antigos fizeram isto de propósito. Quer dizer, que melhor maneira haveria de levar os pacientes a fazer o que lhes mandavam? Basta tornar a língua completamente impossível de perceber.

    Eu depositava mesmo muita esperança no Dr. Rondolski. Foi altamente recomendado pelo quarto pediatra da minha filha, que disse depois de tratá-la durante quase dois anos: — Não sei que mais possa fazer. — Ao início, o Dr. Rondolski era maravilhoso. Estava mesmo em cima dos acontecimentos. Claro, fez todos os tipos de exames, incluindo alguns novos, mas repetições, na sua maioria. Pelo menos cinquenta análises ao sangue, imensas tomografias computorizadas e ressonâncias magnéticas, uma avaliação ao hidrogénio na respiração para verificar intolerância à lactose e também uma endoscopia e uma colonoscopia para tentar descobrir porque é que a Stephanie teve quase sempre diarreia. E ouvia-me mesmo com atenção quando eu lhe contava os sintomas dela. No começo, até disse que a minha formação como enfermeira era um bónus enorme, uma vez que eu conseguia perceber o que ele me estava a dizer. Eu pensei, ótimo, somos parceiros, e juntos vamos descobrir isto.

    Mas não foi o que aconteceu. Começou a demorar imenso tempo até me retribuir as chamadas. Ou, às vezes, não retribuía de todo e eu tinha de ligar-lhe de novo. Claro que eu sabia que ele estava ocupado. Levou meses a conseguir aquela primeira consulta. Mas comecei a pensar se o imbecil que estava na receção estaria a monitorizar as minhas chamadas e a dizer-lhe se eu precisava de facto de falar ou não com ele. Era muito frustrante.

    A última gota foi nas urgências há seis semanas. A Stephanie andou muito bem durante alguns dias. Sem vomitar, sem diarreia. E estava mesmo a comer. Não muito, mas algumas dentadas aqui e ali. Pensei que talvez, finalmente, estivesse a melhorar. Mas depois, nessa noite, estávamos sentadas no sofá a ver Frosty, o Boneco de Neve. Gravei-o para ela no Natal anterior. Do nada, a Steph começa a fazer-me uma série de perguntas sem nexo. Como qual era o nome do boneco de neve e porque é que aquela menina estava a ir com ele de comboio para o Polo Norte. A Stephanie tinha praticamente memorizado o Frosty quando tinha três anos e conseguia cantar a canção inteira sem se enganar em qualquer palavra, mas nessa noite estava toda confusa e não conseguia acertar.

    Pediu-me um copo de água e outro logo de seguida. Engoliu-os tão rapidamente que não me surpreendeu quando se agarrou ao estômago e vomitou em todo o lado do sofá. Corri para ir buscar um pano e quando regressei ela estava no chão. Tinha as costas arqueadas e os braços e pernas com espasmos. Reconhecia uma convulsão quando a via, por isso enfiei-a dentro do carro e conduzi como uma doida até às urgências.

    Chamaram o Dr. Rondolski e ele veio ao nosso encontro. Perguntou-se se a Stephanie tinha caído nesse dia, talvez pensando que ela tivesse um traumatismo craniano. Perguntou-me se ela tinha tido febre. Estava à procura de qualquer coisa que explicasse porque é que ela estava a ter convulsões.

    Passadas oito horas horríveis no serviço de urgências, disse-me por fim o que se estava a passar. Disse que a Stephanie teve hipernatremia, o que queria dizer demasiado sódio no organismo. Disse que os níveis normais de sódio estariam nos 135, ou talvez 145. Os dela estavam quase a 170. Deram-lhe soro para baixar o nível do sódio e as convulsões acabaram por parar. O Dr. Rondolski queria mantê-la no hospital durante algum tempo para ver se conseguia descobrir porque é que o seu nível de sódio estava tão alto.

    Mas passaram seis semanas e ele ainda não sabe o que raio se passa. Fez todos os exames outra vez e parece que não estamos mais perto de uma resposta. Ainda não sabemos o que se passa com o estômago dela e porque é que os níveis de sódio endoideceram. Sinto-me como se estivesse só em espera e a vê-la esmorecer a cada dia. Estou aterrorizada de morte. Decidi que, mesmo que isso significasse mudar-me para outro Estado, tinha de encontrar alguém que finalmente conseguisse descobrir o que se passava com a minha filha. Agora só tenho de conseguir que lhe deem alta para que possamos partir.

    Preparar-me para a viagem está a dar comigo em doida. Só vou levar duas malas. Enrolo pijamas para enfiar ao lado das nossas sandálias. Estou a pensar que provavelmente também precisamos de ténis. Quando me ajoelho para levantar o acolchoado, sinto a dor no meu joelho. Tive uma má queda de bicicleta quando era miúda. O é que me tinha passado pela cabeça, de qualquer modo, a tentar fazer um cavalinho como as miúdas cool? Os cerca de nove quilos que engordei nos últimos cinco anos também não ajudam. Mesmo tendo só trinta e dois anos, sei que preciso de uma artroplastia do joelho, mas isso vai ter de esperar. A Stephanie vem primeiro. A Stephanie está sempre em primeiro lugar.

    Não há ténis debaixo da cama. Seguro-me à lateral do colchão e puxo-me para cima. Os lençóis cheiram ao que parece queijo e há uma caneca com

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