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O cativo
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E-book569 páginas8 horas

O cativo

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Sobre este e-book

Na nobre cidade de Jerez de los Caballeros, na Extremadura espanhola, nasce no século xvi Luis María Monroy Villalobos, segundo filho de uma família ilustre. Os seus primeiros anos são marcados pela ausência do avô, prisioneiro d' o Turco, e do pai, que combate como capitão num terço da armada imperial. Quando o progenitor falece, em cumprimento da sua última vontade, Luis María iniciará a sua formação como cavaleiro ao serviço do imperador em Belvís, Oropesa e Jarandilla de la Vera. Será pajem do mesmíssimo imperador D. Carlos V, descobrirá o seu grande talento e paixão pelo canto e pela viola de mão e, apadrinhado por um familiar, o conde de Oropesa, entrará ao serviço do novo rei D. Felipe II no famoso terço de dom Álvaro de Sande, em Milão.
A vida apaixonante do cavaleiro Monroy é o fiel reflexo de uma época tão fascinante quanto complexa, a do esplendor do imperio hispânico dos Áustrias, a mesma de Lope de Vega e Cervantes. Mas o protagonista do romance em breve descobrirá que os ideais cavaleirescos e religiosos, a música e a poesia, a pátria e a honra, devem conviver inevitavelmente com a crueldade da guerra, com a fome que assola o povo e, por vezes, com a iniquidade dos seus governantes.
Com um estilo narrativo descritivo e convincente, Sánchez Adalid gera uma tensão constante, forjando uma obra que se sente próxima e compreensível.
"Sánchez Adalid possui uma obra de alto valor literário na qual todos os recursos – tanto estilísticos como documentais – estão ao serviço da reconstrução minuciosa da época."
Alex del Rosal, La Razón
"Os seus romances aliam sempre a força literária e o dado histórico, mas também a ternura do ser que ama a sua terra."
Santiago Castelo, ABC
"Os seus livros são bem-sucedidos entre os críticos e o resto dos comuns mortais."
El Periódico de Cataluña
"É um dos referentes principais do romance histórico de qualidade em Espanha."
Qué Leer
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de set. de 2019
ISBN9788491394143
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    O cativo - Jesús Sánchez Adalid

    Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.

    Núñez de Balboa, 56

    28001 Madrid

    O Cautivo

    Título original: El cautivo

    © Jesús Sánchez Adalid, 2019

    © 2019, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.

    Tradutor: Ana Filipa Velosa

    Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.

    Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.

    Desenho da capa: CalderónStudio

    1ª edição: Setembro 2019

    ISBN: 978-84-9139-414-3

    Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

    Sumário

    Créditos

    Vida, aventuras e desventuras…

    Livro I

    1

    2

    3

    4

    5

    6

    7

    8

    9

    10

    Livro II

    11

    12

    13

    14

    15

    16

    17

    18

    19

    20

    21

    22

    23

    24

    Livro III

    25

    26

    27

    28

    29

    30

    31

    32

    33

    Livro IV

    34

    35

    36

    37

    38

    39

    40

    41

    42

    Livro V

    43

    44

    45

    46

    47

    48

    49

    50

    51

    52

    53

    Livro VI

    54

    55

    56

    57

    58

    59

    Livro VII

    60

    61

    62

    Triste final desta história

    Nota histórica

    Justificação do romance

    Nota do autor

    Agradecimentos

    Mapa do Península Ibérica

    Mapa do os Cristãos e Impéro Turco

    Dedicado a tanta gente de Azuaga, naqueles felizes anos.

    Ai, que longa é esta vida!

    Que duros estes desterros,

    esta cárcere e estes ferros

    em que a alma está metida!

    Santa Teresa de Jesus, século XVI.

    Vida, aventuras e desventuras…[1]

    Vida, aventuras e desventuras do nobre cavaleiro dom Luis María Monroy de Villalobos, tambor-mor que era dos terços de sua majestade, tendo ficado cativo dos mouros na triste Batalha de Djerba, na Tunísia.


    [1] Regimento da infantaria espanhola dos séculos XVI e XVII. (N.T.)

    Livro I

    Onde dom Luis María Monroy de Villalobos narra a sua origem, linhagem e infância na nobilíssima cidade de Jerez de los Caballeros, em casa do seu avô materno, dom Álvaro de Villalobos, que se encontrava cativo em terras dos mouros.

    1

    Apreciei muito o tempo da minha infância. Afigurava-se-me a mais feliz das existências, embora o meu curto juízo de menino chegasse a conjeturar certo mistério entre as gentes que habitavam a casa onde a minha vida teve início. Ora foi isto na nobilíssima cidade de Jerez de los Caballeros, na qual fui confiado às mãos de mulheres até aos sete anos, idade que o senhor meu pai considerou suficiente para me iniciar nos segredos da caça, da esgrima e da equitação. Ainda sou capaz de recordar a alegria que os primeiros contactos com as armas, as aves de rapina, os cães e os cavalos me causaram. Era para mim evidente que tinha nascido para ser cavaleiro e para servir a causa do senhor nosso rei. Mas os petizes veem as coisas do mundo com os olhos da inocência, banhadas por uma luz e uma candidez que mais não são do que a imagem mais doce da sua verdadeira natureza. A vida acaba por se encarregar de pôr cada um no seu lugar e de apaziguar os ânimos com males e desencantos, desenganando-os e levando-os a enobrecer-se e a endurecer-se como o aço mais puro.

    Mas, como digo, aqueles primeiros anos foram para mim os mais doces e hoje julgo que já então Deus me concedia muitas mercês e me obsequiava com muitas graças para que não me esquecesse nunca de que Ele é o Criador e Pai de todos, que cuida com amor e bondade das suas criaturas.

    A minha mãe, dona Isabel de Villalobos, era uma mulher muito virtuosa e de muita caridade. Parecia-me a mais formosa, sadia e alegre das damas. Sendo eu o terceiro e o mais novo dos seus filhos, era como se só vivesse para mim, para me encher de beijos e não ter tempo salvo para me aconchegar no seu regaço meigo. Nutria grande piedade pelos criados e pelos pobres e nunca se mostrava mal-humorada ou vencida pela melancolia; muito pelo contrário, estava sempre alegre, cantadoira, como se houvesse festa ou motivo de grande contentamento. A mim e aos meus irmãos lia-nos contos de que gostávamos muito e que nos ajudavam a dormir felizes, deliciados com os desenlaces que ela relatava com entusiasmo, de histórias em que à última hora se resolviam os males e toda a gente, amparada e contente, participava em banquetes e danças.

    A casa onde vivíamos era grande e fresca, soalheira por ser na parte alta da cidade e construída ao gosto dos alarifes mouriscos, com tijolos, pois por ali não abundava a boa pedra. Mas a fachada exibia nobres escudos de armas cristãos, bem cinzelados em granito, dos tempos do mestre Pelay Pérez Correa, segundo dizia o meu avô. Para o interior estendiam-se dois pátios espaçosos em torno dos quais se alinhavam os aposentos e mais ao fundo uma horta e pomar com palmeiras e árvores que davam ricos abrunhos e alperces na estação própria. No fim, ficavam os estábulos, os casebres dos criados e um portão que se abria para o adarve da muralha.

    Enfim, tudo estava disposto da melhor maneira naquela casa, seguindo as retas indicações de dom Álvaro de Villalobos Zúñiga, meu avô materno, que não conhecia, mas cuja presença permanecia tão viva em Jerez, e especialmente na minha família, que parecia que nada se fazia sem mencioná-lo antes. De maneira que costumava dizer-se: «D. Álvaro faria isto». Ou: «O senhor disporia esta e aquela coisa». E constantemente se ouviam queixumes tais como «Ai, se dom Álvaro cá estivesse!» ou «Ó, senhor dom Álvaro, o que fazer agora?», cada vez que surgia um conflito de difícil solução.

    E, à medida que fui tendo uso de razão e me deu para perguntar pelas coisas, dei por mim a cogitar se o senhor meu avô teria morrido ou, em caso contrário, qual seria a causa da sua eterna ausência. Eis então que a minha bondosa mãe achou por bem dizer-me que o seu pai estava cativo em terra dos mouros por ter servido nobre e valentemente a causa da cristandade, que é a de el-rei, nosso senhor.

    — Minha mãe, esses mouros são gente má? — perguntei eu no meu desajeitado palrar de infante.

    — Muito, meu filho — respondeu ela de olhos tristes. — Mas não sofrais pelo vosso avô, já que Deus há de livrá-lo em breve do cativeiro e então faremos grandes festas e bailes.

    — Como nas histórias? — acrescentei, ingénuo.

    — Pois claro, filho, como nas histórias.

    Nos meus verdes anos também não conhecia o senhor meu pai, dom Luis Monroy de Zúñiga, pois era capitão e andava com os terços de sua majestade a fazer a guerra aos protestantes alemães da Liga de Esmalcalda.

    A minha mãe dizia-me sempre que era o mais formoso e valente cavaleiro das tropas do imperador, que envergava uma armadura brilhante e montava um cavalo chamado Raio. Ela assegurava que o seu esposo apareceria um desses dias, vitorioso e premiado pelo imperador, e então faríamos muitos banquetes e festas em casa.

    — Claro, mãe, como nas histórias! — exclamava eu. Adivinhava um certo fundo triste nos seus olhos, mas nunca perdia o sorriso. De vez em quando via-a assomada à janela mais elevada da casa, de onde se contemplavam os campos, abstraída, fitando o horizonte, como se esperasse que o saudoso marido fosse chegar de uma hora para a outra.

    Por ter tido uns pais tão virtuosos e tementes a Deus, embora não o merecesse, eu, Luis María Monroy de Villalobos, agradeço eternamente ao Criador e manifesto-me orgulhoso dos apelidos que honram o meu nome e que permitiriam ser de nobre linhagem, não fosse eu tão ruim.

    E o que dizer da cidade onde nasci? Jerez de los Caballeros ergue-se sobre duas altaneiras e galhardas colinas viradas a sul, para os montes pejados de azinheiras e para as agrestes paragens onde se refugiavam os mouros ao abrigo dos cerros, até que Deus quis que viessem os freires da Ordem dos Templários combatê-los de forma impetuosa e feroz e expulsá-los definitivamente para que essas terras passassem para mãos cristãs. A posteriori, o papa de Roma dissolveu a referida ordem e os Cavaleiros de Santiago vieram governar, dando tanta fama à vila e aos seus habitantes que nosso senhor, o imperador dom Carlos, lhe outorgou o título de cidade mui nobre nos idos de 1525, tornando-a sede da circunscrição da Ordem, título que ainda hoje ostenta. E, por essa importância, há inúmeras igrejas, conventos, ermidas, fontes, palácios e bonitas casas de nobres, bem como uma bela quantidade de moradores que temem e louvam ao Senhor e a Maria Santíssima como bons cristãos. Há também mouriscos na parte baixa da povoação, mas andam nas suas labutas, muito ocupados no trabalho das hortas ou a criar cabras pelos penhascos, de maneira que não fazem mal a ninguém nem causam outros incómodos para lá de embicarem nos erros da sua seita maomética.

    Fui batizado na paróquia de Santa Maria da Encarnação e deram-me o nome do senhor meu pai que já andava na guerra, Luis de María Santísima y de Santiago, Miguel, Bartolomé y Antonio. Santos que são testemunhas de que pelas minhas veias só corre o sangue dos velhos cristãos que souberam na sua maioria dar a vida pelos reis e pela causa da cristandade, sem pedir outra recompensa para além daquela que Deus reserva aos que lhe são fieis.

    Ora assim comecei a minha vida, como já referi, felizmente alvo de sumos cuidados e afeição por parte da senhora minha mãe, no casarão do meu avô dom Álvaro de Villalobos Zúñiga, estando este cativo em terra dos mouros. E, aguardando o seu regresso tal como o do senhor meu pai, atingi o uso da razão, e pareceu-me que nem um nem o outro deviam demorar muito a voltar, pois os seus nomes eram tão pronunciados naquela bendita casa que, de tanto os mencionarem em orações e suspiros, deviam sentir-se chamados onde quer que se encontrassem.

    2

    Apesar de tantos reveses que, pela vontade de Deus, padeci nesta vida, aqueles primeiros anos em Jerez de los Caballeros estão muito vivos na minha memória. Lembro-me especialmente dos verões, tão cheios de luz, pois no inverno parecia que a vida se detinha e passava os dias quase confinado nos interiores em penumbra, próximo do calor de lareiras e braseiros. Mas, chegada a primavera, sentia-me livre como o ar. Nas horas em que toda a gente dormia quando o sol estava alto, saía para os meus primeiros passeios, longe dos desvelos prestáveis das mulheres, e entretinha-me com outros meninos da minha idade. Tudo me parecia dourado. Íamos rebuscar nos galinheiros, vasculhar as mansardas e remexer entre os antigos utensílios que se amontoavam por todo o lado.

    Havia nas traseiras da minha casa, no adarve, um velho casebre geminado com a muralha onde vivia um homenzarrão meio paralítico do lado direito, com uns peculiares olhos pretos, a quem chamavam o Granadino, por ter sido escravo trazido de Granada, depois da última guerra com os mouros. Mortos os seus amos de velhice, o homem ficou só, com uns cãezinhos sarnentos por única companhia. Íamos até lá com essa crueldade tão própria das crianças. «Granadino, mouro!», gritávamos-lhe e atirávamos pedras ao seu telhado. O pobre infeliz saía a arrastar meio corpo e não podia fazer outra coisa salvo jurar e maldizer numa algaraviada, e atiçar-nos os cãezinhos que corriam atrás de nós. Essa má ação causava-nos um grande divertimento e gabávamo-nos de fazer sofrer o coitado do mouro, a quem já bastava ter sido escravo na sua malfadada vida.

    Tinha eu dois irmãos mais velhos, bem como um bom número de primos e amiguinhos com os quais formávamos bandos ao jeito de exércitos e travávamos batalhas violentas e à pedrada, de modo que havia sempre algum aleijado. Assim são as coisas das crianças.

    Nessas felizes andanças, sem preocupações e sem ter outra obrigação exceto alimentar-se e crescer, desejando chegar um dia a ser cavaleiro, aconteceu algo em casa que mudou por completo a nossa vida e foi o primeiro espinho que encontrei no meu caminho, para me aperceber de que viver não era coisa tão fácil como folgar e crescer entre paninhos quentes.

    O acontecimento teve lugar em hora de calmaria, durante a sesta, quando só se ouvia o cacarejar de alguma galinha após pôr um ovo. Como de costume, eu e os meus irmãos estávamos dedicados a assuntos infantis, embrenhados nas nossas brincadeiras, jogos e fantasias, quando se ouviu uma gritaria de mulheres em grande alvoroço.

    — Nossa Senhora! Deus Bendito! Mãe de Deus!…

    Depois fez-se um grande silêncio, ao qual se seguiu um sapatear de gente a correr em todas as direções com novos gritos e exclamações.

    — Louvado seja Deus! Santa Maria! Almas do purgatório!…

    Entreolhámo-nos sem nada compreender e, levados pela nossa curiosidade infantil, corremos em direção ao lugar de onde provinham as vozes e a algazarra, que era da parte principal da casa, ou seja, o primeiro pátio.

    Lá chegados, encontrámos grande quantidade de gente reunida: a minha avó, a minha mãe, as minhas tias, os criados e criadas, os vizinhos… Alguma coisa de muito importante estava a acontecer. As mulheres gemiam e os homens batiam no peito. Todos bendiziam a Deus e agradeciam a Nossa Senhora e aos santos como se um grande milagre tivesse acontecido. Da maneira que pudemos, abrimos caminho entre os corpos, pois a nossa estatura impedia-nos de ver o que estava a acontecer mais à frente, no átrio da casa, onde se amontoava o maior número de pessoas.

    Nunca esquecerei aquele momento. Os meus familiares rodeavam um homenzinho idoso de cabelo branco e liso que vestia roupas puídas e que se encontrava muito hirto, com uns delirantes olhos raiados de sangue, no meio de dois frades mercedários que o seguravam cada um por um braço.

    A minha mãe correu para o idoso e lançou-se aos seus pés, a soluçar.

    — Pai! Meu pai! Louvado seja Deus!…

    O meu irmão mais velho, perto de mim, disse-me então ao ouvido:

    — Deve ser o senhor nosso avô, dom Álvaro de Villalobos.

    Uma sensação estranha apoderou-se de mim. Nessa altura andava eu pelos seis anos de idade e ouvia falar repetidamente do meu avô desde que tinha noção do sentido das palavras. Havia um retrato seu na sala de jantar, debaixo de um grande quadro que representava a Nossa Senhora das Mercedes, onde ardia sempre uma candeia a óleo. Dom Álvaro estava pintado com aspeto de homem jovem; no peito robusto coberto com o escuro hábito de Santiago luzia a cruz vermelha da Ordem e a um lado ressaltavam o brasão familiar, adornado por um cordão dourado; Villalobos mais acima, Zúñiga debaixo. A sua espessa barba preta e o seu olhar penetrante em nada se assemelhavam com o semblante daquele homenzinho esquálido e de aspeto tão franzino que acabava de chegar.

    Passada a algazarra inicial, ouvi os conselhos que um dos frades dava gravemente à minha avó:

    — O cavaleiro deve descansar agora. Foram muitos os sofrimentos padecidos e está ligeiramente alienado. Mas… vossas mercês, não vos preocupeis; o Senhor devolver-lhe-á a saúde, tal como lhe concedeu a liberdade.

    A minha avó assentiu com a cabeça, muda de emoção, e depois fez um gesto para o seu administrador, que se apressou a trazer uma bolsa cheia de moedas de ouro e as esteve a contar em cima de uma mesa antes de as entregar aos frades.

    — É muito, senhora — disse o mercedário com uma expressão surpreendida.

    — Para a Nossa Senhora, é tudo para a Nossa Senhora… Não é nada à vista de tão grande mercê que nos concedeu! Ai, Santa Maria bendita! — exclamou a olhar para o quadro.

    Os frades abalaram prodigando bênçãos e o meu avô ficou ali, muito hirto, tal como tinha chegado, perscrutando tudo com aqueles olhos estranhos. Estávamos expectantes, a aguardar que dissesse alguma palavra ou fizesse algum gesto.

    — Esposo! Esposo meu! — gritou a minha avó, se é que se pode dizer que grita quem fala quase sem emitir sons.

    Dom Álvaro olhou para um lado e para o outro e ergueu o queixo alvo e pontiagudo. Respondeu com um gesto altaneiro:

    — Desviai-vos, senhora, que não vos conheço, e não comprometais a minha honra.

    — Mas… marido, vossa mercê o que dizeis? — replicou a minha pobre avó, confusa.

    — Dom Álvaro, por Santiago! — disse-lhe o administrador da casa, dirigindo-se a ele de braços abertos. — Bem-vinda seja vossa mercê a esta vossa casa!

    — O que dizeis, vilão? — replicou o meu avô fora de si. — Não reconheço outro rei que não seja a minha senhora D. Juana! Viva a rainha!

    Poderá compreender-se a perplexidade dos presentes perante essa atitude tão esquisita e em tão pouca sintonia com o momento.

    — Pai, pai, meu pai…! — gritavam a minha mãe e o resto dos seus irmãos.

    — Volte a vós, vossa mercê! — suplicava o administrador desconcertado.

    Então, o meu avô jogou a mão a um candelabro e, lançou-se ameaçador sobre um grupo de bondosos vizinhos que tão só tinham ido cumprimentá-lo e dar-lhe as boas-vindas:

    — Traidores! — gritava. — Maus cavaleiros! Traístes estes reinos e suas majestades católicas!

    Alarmados, os vizinhos deram um passo atrás, enquanto todos os presentes continuavam paralisados, estupefactos perante aquele comportamento peculiar de dom Álvaro.

    — Parai, senhor! — gritou o administrador, temendo que pudesse fazer um desacato com o candelabro de prata que pesava pelo menos meia arroba.

    Mas o meu avô não parou, virou-se para ele e desferiu-lhe uma forte pancada no alto da cabeça, deixando-o sem sentidos, ferido e estendido no chão.

    Ao ver o sangue que jorrava abundantemente da cabeça do administrador e que dom Álvaro desferia golpes a torto e direito com a arma improvisada, todos começaram aos gritos de espanto e a correr em todas as direções.

    — Valha-nos Deus! Está louco! — gritavam. — Fujamos!

    A maioria fugiu espavorida para não ser a seguinte a receber a ira do avô; a minha mãe e as minhas tias gritavam fora de si e a minha avó desmaiou e ficou deitada perto do administrador. Ainda bem que ali estava o meu tio dom Silvio, um cavaleiro rijo e cheio de cordura, que soube fazer o que mais convinha naquele momento difícil.

    — A ele! — ordenou aos criados, que estavam como pasmados. — Apanhemo-lo ou acontecerá uma desgraça!

    Atiraram-se sobre dom Álvaro e conseguiram arrebatar-lhe o candelabro e imobilizá-lo entre todos. Depois trouxeram umas cordas e amarraram-no, já que não havia maneira de dominá-lo, pois, mesmo sendo franzino e tendo a força esmorecida, a loucura deixava-o fora de si e dava coices e mordidelas qual mula desbocada.

    Levaram o meu avô para os seus aposentos e os criados tiraram-nos dali, a nós crianças, muito depressa, obedecendo às ordens das mulheres da casa, para que não fôssemos por mais tempo testemunhas de tais desagradáveis episódios. Estávamos tão atemorizados e confusos que nem nos atrevíamos a levantar a voz. Durante os dias seguintes houve idas e vindas na casa, sussurros, meias palavras e muito secretismo. Todos os médicos de Jerez passaram por ali e também alguns de fora. Palpava-se a presença da desgraça. Mais do que uma boa nova, a liberdade de dom Álvaro parecia o anúncio de um luto. A minha avó, a minha mãe e as minhas tias não paravam de chorar. As portas fecharam-se a sete chaves para qualquer visitante que não fosse médico e impôs-se um rigoroso silêncio sobre o assunto. Nós, as crianças, éramos mantidas por completo à margem do que estava a acontecer. De maneira que chegámos a pensar que, verdadeiramente, o meu avô continuava cativo em terra de mouros.

    E o mais triste era que as festas, banquetes e danças com os quais a senhora minha mãe sonhava e que tanto entusiamo nos despertava continuavam a ser algo que só pertencia à fantasia.

    3

    Passou o verão da chegada de dom Álvaro sem que este desse sinais de vida, recluído como estava nos seus aposentos. Embora nós, as crianças, dormíssemos em divisões muito afastadas dos avós, no silêncio das noites calorosas, às vezes ouvíamos gritos que nos causavam grande temor. Geralmente não se entendia o que aquelas vozes rasgadas diziam, mas numa ou noutra ocasião ouviram-se, com certa nitidez, lamentos como estes ou parecidos:

    — Soltai-me! Abri estas prisões! Pelo amor de Deus!…

    Eu tremia e suava no leito, e imaginava que a qualquer minuto haviam de vir mouros cruéis para me arrancarem dali e me levarem cativo para terras longínquas e estranhas. Passei muito medo nessa altura, mas calava-me, pois já me parecia feio que alguém que ia ser armado cavaleiro se mostrasse medroso.

    Quando caíram as primeiras chuvas, veio a casa um novo médico de Córdova. Moisés Peres, julgo que se chamava assim. Era um homem circunspecto, muito calvo, cujos olhos escuros e vivos tudo perscrutavam. Esfregava as mãos de tantos nervos e repetia com demasiada frequência: «Vejamos, vejamos». Guardo fiel memória disso porque foi então quando adoeci com grandes febres e tive de ficar muitos dias de cama, na sequência do qual cresci desmedidamente, de maneira que, quando pude suster-me em pé, as tonturas eram tais que me parecia que estava num sítio alto.

    O doutor Peres passava-me a sua pequena e ágil mão pela testa e dizia:

    — Vejamos, vejamos… a coisa não parece estar a correr mal. É o sirimpio ou sarampo. Vamos esperar que as manchas surjam e depois Deus dirá.

    E pouco demoraram a surgir. Tinha comichão na cabeça e nas orelhas, no pescoço, nos ombros e na barriga. Mas em breve a febre me abandonou. Então o médico fazia-me suar com vapores de alecrim e esfregava-me a pele com mel e limão. Todos os dias me observava com minúcia e referia:

    — Vejamos, vejamos… a coisa não parece estar a correr mal.

    Logo a seguir, os meus irmãos adoeceram do mesmo mal. O senhor Peres usou com eles idêntico tratamento e curou-os igualmente. Enquanto se ocupava dos catraios, sabíamos, por meio das conversas dos crescidos, que também estava a tratar do nosso avô. Recordo ter ouvido que trazia umas ervas com as quais fazia decocções, e que uma e outra vez repetia:

    — Vejamos, vejamos… o senhor não se curará se não for tomar as águas.

    E, por fim, obedecendo às suas prescrições que tão bons resultados pareciam dar, a minha avó determinou que dom Álvaro fosse levado a tomar as referidas águas.

    Aquela foi a segunda vez que vi o meu avô. Quatro criados levavam-no, embrulhado em mantas, mais para o imobilizar do que propriamente para o agasalhar, pois corria o mês de outubro e não estava demasiado frio. Nesse estado o subiram a uma carroça onde a minha avó e uma das minhas tias já estavam acomodadas. Também iam nas suas mulas o senhor Peres, meia dúzia de lacaios e duas criadas. Toda a comitiva rumou a norte. Fomos com a minha mãe atrás dela um bom troço, até aos arredores da muralha. Depois vimo-la perder-se entre os azinhais pardos, deixando um rasto de pó.

    — Ai, Deus queira que essas águas o curem! — suspirou a minha mãe com lágrimas nos olhos.

    — Para onde levam o senhor nosso avô, mãe? — perguntou-lhe Maximino, o meu irmão mais velho.

    — Para umas fontes chamadas Alange — respondeu ela —, de onde emanam umas águas que o senhor Peres diz que acalmam as almas sem paz. Lá irá a banhos e, se Deus quiser, o coitadinho há de vir curado.

    Por ser a mais velha dos seus irmãos, a minha mãe ficava como dona da casa, enquanto durasse o tratamento que dom Álvaro havia de receber nas tais fontes de Alange, que eram perto da cidade de Mérida, a mais de vinte léguas de distância. Assim sendo, a ausência dos meus avós prometia ser longa.

    Passou todo o mês de novembro e dezembro chegou com as suas névoas. Eu continuava nessa idade em que parece que o tempo estica, e num só dia, do amanhecer à noite, acontecem muitas coisas. Quanto mais em três meses!

    Eis senão quando chegaram boas notícias trazidas por um cavaleiro jovem que ia a caminho de Sevilha com os seus escudeiros e criados. Dizia ser um companheiro de armas do senhor meu pai e que era portador de uma feliz mensagem: que tinha acabado a guerra contra os protestantes alemães com a vitória na Batalha de Mühlberg, e que o imperador, nosso senhor, dava licença aos soldados para que regressassem às suas terras. A minha mãe deu um grito e ajoelhou-se ao pé do quadro da Nossa Senhora que estava no átrio.

    — Filhos, meus filhos! — exclamou logo abraçando os seus três pequenos. — Ides por fim conhecer o senhor vosso pai!

    E dizia-o porque nos tinha parido, a mim e aos meus dois irmãos, tão seguidos que nem sequer o mais velho se lembrava do pai, que partiu para a guerra fazia então já mais de seis anos.

    Aquele cavaleiro que veio trazer o feliz anúncio pernoitou durante três noites em nossa casa com toda a sua criadagem. A minha mãe cobriu-o de atenções e ele, agradecido, não parava de mencionar as façanhas e obras meritórias do senhor nosso pai.

    — O cavaleiro dom Luis Monroy — contava — é o mais valente e nobre cavaleiro que há nas hostes do imperador, nosso senhor. Tínheis de vê-lo, meninos, montado no seu cavalo, como um raio, lançado com estrondo de arneses, ferros e armas a dar batalha a esses protestantes endemoniados. Ele sozinho deu cabo de seis dos mais aguerridos e ferozes soldados da Liga. Ah, que bom cavaleiro é o vosso pai! E como amigo não há outro; bondoso, fiel, bom cristão…

    E assim prosseguia enunciando as suas virtudes e narrando as suas aventuras guerreiras. A minha mãe chorava emocionada e nós imaginávamo-lo como uma dessas personagens das histórias que ela nos contava. De modo que o dia do seu regresso se nos afigurava longínquo e irreal, por muito que aquele cavaleiro assegurasse que seria iminente.

    Tive numa daquelas noites um pesadelo assaz desagradável. Sonhei que por fim chegara o senhor meu pai e toda a família ia recebê-lo. Entusiasmado, eu corria ao seu encontro cheio de curiosidade. Ora resultou que o meu pai era tão rasteiro que não me chegava nem à cintura. Era trazido por dois frades de grande tamanho, um dos quais era o Granadino, o mouro do adarve da muralha. Traziam também o seu cavalo Raio, tão nomeado, que no sonho não era um cavalo mas sim um dos cãezinhos do famigerado Granadino. O meu pai montou-se no cão e cavalgou pelos pátios da casa empunhando um candelabro em jeito de espada. Como consequência, todos gritavam e fugiam espavoridos. Depois chegavam uns mouros, pegavam na minúscula personagem, que no sonho fazia as vezes de meu pai, e alçavam-no para o levarem pelo ar até ao poço, para onde o atiravam e ali se afogava e se dissolvia nas águas.

    Acordei na escuridão da noite, empapado em suor, tiritando e cheio de angústia. E então, triste de mim, o mau desejo de que o senhor meu pai nunca mais regressasse começou a mortificar-me, que estávamos bem assim. Que enrevesadas são as almas das crianças!

    4

    Depois de ter passado as febres do sirimpio de cama, como já disse, dei um pulo grande. As pernas cresceram e, de tão escanzeladas, achava-me muito estranho refletido no espelho do átrio. Eis senão quando, ao sair pela primeira vez à rua curado da maleita, um vizinho ficou a olhar para mim e afirmou:

    — Ora, mas vós sois o filho mais novo de dom Luis Monroy, o neto de dom Álvaro de Villalobos. Parece impossível, como vos pareceis ao vosso pai!

    Então, dei por mim a pensar que o meu pai havia de ser magricela e raquítico, tal como me sentia naquele momento. Mas, por outro lado, estavam todas essas histórias que a minha contava mãe acerca dele e o que aquele cavaleiro que estava de passagem nos disse. Daí que umas vezes imaginasse que devia ser escanzelado, como dom Álvaro, outras que seria magricela, como eu, e outras que o seu aspeto era como uma robusta armadura de aço reluzente. Mas, por muito que tentasse imaginá-lo, não era capaz de lhe encontrar uma fisionomia. Em todo o caso, idealizava-o como um homem já de certa idade, de cabelo esbranquiçado e algumas rugas na testa.

    Faltava pouco para o Natal e, nesse ano, havia poucos preparativos de festa e não muita vontade, já que o desânimo imperava por causa dos males do senhor meu avô. A minha mãe e a aia Vicenta teciam-nos gibões de lã espessa no salão que dava para poente e de vez em quando suspiravam:

    — Ai, Senhor, como hão de estar as coisas nessas benditas fontes!

    — Confiemos em Deus. Santa Maria, ajudai-nos!

    De modo que as duas velas que estavam debaixo do quadro da Nossa Senhora permaneciam acesas noite e dia; uma para que o meu avô se curasse depressa da sua demência e a outra para que o meu pai regressasse são e salvo da guerra.

    Naquele tempo, o meu irmão mais velho, que já tinha dez anos, começou a viver à solta. Como não havia um homem em casa para o meter na ordem, juntara-se a um bando de crianças pobres dos arrabaldes que lhe ensinaram a blasfemar e muitas mais coisas nada boas. Era uma ralé de catraios exímios a saltar muros e pilhar fruta. Os guardas e os donos dos pomares vinham fazer queixa, e mais de uma vez a guarda o escoltou até casa, como se fosse um vulgar rufia, o que causou um enorme desgosto à senhora nossa mãe.

    — Como se não bastasse tudo o resto, ainda mais isto… — lamuriava-se amargamente. — Ai, Mãe Santíssima! Marido meu, vinde depressa! — suplicava.

    O meu pai demorava a volta, não se sabia o porquê. Mas, graças a Deus, por fim houve um acontecimento feliz na nossa casa. Os meus avós regressaram e parecia que dom Álvaro vinha muito melhor dos seus achaques. A chegada foi da maneira que passo a contar.

    Uma tarde do princípio de dezembro, muito soalheira, andava eu enredado nas minhas coisas de menino, a vaguear pelas cavalariças, quando se ouviram umas fortes pancadas no grande portão traseiro da casa. Para lá se dirigiu um dos criados, pressuroso, a quem alguém a partir dos pátios avisara. Correram-se as aldrabas, rangeram as dobradiças e apareceu a carroça com toldo da minha avó, com os cortinados corridos. O moço da cavalariça puxou os cavalos e logo o veículo estava a atravessar as hortas, rumo a casa.

    — Os senhores! Os senhores! Os senhores…! — gritavam os criados, erguendo as mãos com alegria.

    Mas, muito irritada, a minha avó espreitou e comunicou com energia:

    — Silêncio, seus mentecaptos, que ides avisar toda a vizinhança!

    A senhora minha avó dizia aquilo porque no fundo receava que acontecesse algo semelhante ao que acontecera no dia em que os frades mercedários trouxeram dom Álvaro, que deu muito que falar aos vizinhos. Assim, dessa vez, tudo se fez com um sigilo premeditado.

    O meu avô desceu da carroça pelo seu próprio pé. Vinha muito tenso e solene, vestido a preceito, como correspondia ao grande cavaleiro que era: o chapéu de feltro preto, o colarinho muito branco e engomado, o gibão escuro com a cruz de Santiago… Tinha a pera composta e aparada e o bigode cofiado, como no quadro do salão, embora mais esbranquiçado. Olhou para toda a família, que ali estava especada, sob a palmeira, e pareceu-me vê-lo esboçar um leve sorriso.

    — Ai, está tão bem…! — suspirou a minha mãe fazendo tenção de se dirigir a ele.

    — Esperemos, Isabel! — A minha tia Adriana segurou-a. — Esperemos que a mãe diga o que havemos de fazer.

    A minha avó estava muito séria, mas não parecia preocupada. Desceu da carroça e pôs-se a dar ordens à criadagem.

    — Vá, levai a bagagem para os aposentos! E toda a gente para casa. Toca a andar!

    Obedecemos. Caminhávamos em fila, atrás dos meus avós, muito nervosos, entre as amendoeiras e as ameixeiras despidas. Atravessámos o pátio e fomos congregar-nos no átrio. A curiosidade e a emoção embargavam-nos. De vez em quando ouvia-se os queixumes de alguma das criadas.

    A minha avó avançou solenemente até ao quadro da Nossa Senhora, ajoelhou-se e murmurou umas orações, com grande decoro, entrelaçando os dedos e inclinando a testa. A seguir, levantou-se e disse-nos com uma voz trémula:

    — Graças a Deus e à intercessão da Virgem Maria, dom Álvaro está bem.

    Um murmúrio de alegria percorreu a divisão. Depois, todos os olhos se pousaram no meu avô, que estava muito sério, acariciando a pera com uma mão, com gesto interessante. Mas os seus olhos tinham qualquer coisa de delirante que assustava um pouco. Muito atentos, esperávamos que dissesse algumas palavras.

    Dom Álvaro percorreu a divisão com o olhar, circunspecto. Assentia com a cabeça, em graves movimentos, como se estivesse muito satisfeito por se encontrar em casa. De repente pousou os olhos na lareira, onde um tronco grosso de azinho fumegava entre as brasas. O meu avô esfregou as mãos, aparentemente nervoso, e depois, num movimento rápido, pegou num comprido atiçador de ferro que estava apoiado a um lado. Toda a gente deu um passo atrás e um grande grito de espanto coletivo ecoou pela abóbada.

    Houve um momento de tenso silêncio, no qual acho que todos receámos que alguém ficasse ferido, como da outra vez com o administrador. Mas logo se dissipou o pânico, quando vimos dom Álvaro precipitar-se para remexer as brasas, como se nada fosse, enquanto pronunciava:

    — Que frio está nesta casa.

    5

    A senhora minha avó tinha-nos prendido por causa de alguma travessura que tínhamos feito. Encontrávamo-nos num velho lagar frio e húmido que se situava por trás das cozinhas. Lembro-me de que o Natal já estava próximo, pois o castigo consistia em descascar amêndoas para a grande quantidade de doces que se elaboravam nessa quadra. Um tanto contrariados, eu e os meus irmãos esmagávamos as cascas duras e extraíamos o fruto, enquanto éramos vigiados pela nossa aia. De vez em quando refilávamos ou, como era próprio da miudagem, andávamos à bulha.

    — Meninos, meninos, já chega! — ralhava Vicenta, a nossa aia. — Maximino, deixai os vossos irmãos em paz!

    Maximino, o mais velho dos três, era o mais maroto. Todos coincidiam na opinião de que se parecia muito com dom Álvaro. Como o nosso avô, o meu irmão era franzino de estatura e seco de carnes. Mas eram os seus olhos pretos, vivos e inquietantes, a herança mais visível de dom Álvaro. Já Lorenzo, o do meio, era mais parecido comigo: costumavam dizer que saíamos ao senhor nosso pai.

    Estando nós a cumprir o castigo de descascar amêndoas, eis que de repente apareceu dom Álvaro. Vinha muito composto, com o seu hábito de Santiago de andar por casa e com a espada à cinta. Andava solene e repousadamente, com um ar manso; as mãos atrás, as pernas esguias muito tesas dentro das meias-calças e a barriguinha avultada a apontar para a frente.

    Quando chegou perto de nós, olhou-nos erguendo o queixo esbranquiçado e franzindo o sobrolho sobre os olhos vivos e delirantes. Era a primeira vez que o tínhamos tão perto, cara a cara, e impunha um grande respeito.

    — Ide, meninos, fazei uma reverência ao senhor vosso avô — ordenou-nos Vicenta.

    Sem hesitar, inclinámo-nos os três respeitosamente. E quando alçámos a testa, vimos dom Álvaro muito satisfeito, com um sorriso altaneiro.

    — De quem sois filhos, moçoilos? — perguntou-nos retomando a sua seriedade.

    — Somos filhos de dom Luis Monroy de Zúñiga, senhor, capitão dos terços do rei — respondeu com orgulho o meu irmão mais velho.

    — Bem, bem — observou o nosso avô com gravidade —, deduzo que o cavaleiro vosso pai seja um valente.

    — Senhor, mas é genro de vossa mercê! — explicou-lhe Vicenta um pouco exasperada. — É o esposo da senhora sua filha, dona Isabel de Villalobos, não se lembra?

    — Ah, claro, claro…! — murmurou um dom Álvaro meditabundo.

    Nesse momento, o meu irmão Maximino deixou escapar um risinho que rapidamente conteve levando a mão aos lábios. Muito sério, o nosso avô pousou os olhos nele e receámos que lhe pespegasse um sopapo. Mas, bem pelo contrário, dom Álvaro pareceu sorrir divertido, estendeu a mão e afagou-lhe carinhosamente os cabelos.

    — Quereis que vos mostre uma coisa, moçoilos? — perguntou-nos então com a voz rouca.

    Entreolhámo-nos com estranheza.

    — Sim, senhor — respondeu Maximino em nome dos três —, o que vossa mercê mandar.

    — Toca a andar — disse o nosso avô com autoridade, dando meia-volta e dirigindo-se para a porta.

    — Senhor… — Com respeito, Vicenta pôs-se diante dele. — Não é que queira intrometer-me, mas é meu dever advertir vossa mercê de que a senhora castigou as crianças e…

    — Castigou? — replicou o meu avô franzindo o sobrolho. — Disparates! Segui-me, moçoilos!

    Ele caminhava altaneiro, à frente, como erguido sobre a sua estatura franzina. Nós íamos atrás, os três netos, muito contentes, a saltitar e a imitar as poses do senhor nosso avô.

    Dom Álvaro levou-nos até às escadas cujos degraus de madeira carcomida rangiam a cada passo, e depois conduziu-nos pelos corredores do piso de cima do casarão, que conhecíamos bem, precisamente porque nunca nos deixavam lá subir e os frequentávamos às escondidas. No final dos corredores havia uma porta muito escura de madeira sólida, que recordávamos sempre fechada a sete chaves, e que conduzia a um quarto para nós proibido ao qual em casa chamavam «os artefactos de dom Álvaro». De entre as suas fraldiqueiras, o nosso avô tirou um molho de chaves e começou a introduzi-las uma a uma nos diversos buracos das fechaduras, fazendo-as ranger. Depois abriu dois cadeados e empurrou a porta, cujas dobradiças guincharam.

    — Ora entrai, bons moços! — ordenou.

    O aposento estava mergulhado na penumbra, o que acentuava o mistério do espetáculo que apareceu perante os nossos olhos. Deliciados, vimos que as paredes estavam completamente atapetadas por armas penduradas: espadas, punhais, alabardas, lanças, corsescas, azagaias, arcabuzes, bestas e dardos. Nos cantos havia armaduras antigas, muito arranjadas sobre os seus fardos de palha. Havia também numas prateleiras diversas coifas, semigrevas, braçais, antebraçais, corseletes e manoplas. Afinal, os artefactos de dom Álvaro eram um arsenal com o qual se podia armar meia companhia dos terços do rei.

    Ficámos de boca aberta. Para três crianças de dez, oito e seis anos, aquilo era uma descoberta sensacional. O nosso avô dirigiu-se para os reposteiros poeirentos que cobriam as janelas e correu-os. A luz entrou em abundância e pudemos contemplar a ordem com que tudo estava disposto, como se fosse ser usado no dia seguinte, embora a maioria das peças fosse muito antiga.

    — E esta, moçoilos! — exclamou dom Álvaro orgulhoso. — É de ficar de boca aberta, eh?

    Entusiasmado, andava de um lado para o outro, assinalando as armas mais valiosas, desempoeirando-as e explicando-nos como se usavam. Brandia as espadas, pegava nas adargas, empunhava as adagas, erguia as lanças, cortava o ar com as alabardas, punha ora uma coifa ora um bacinete, depois um elmo com penacho ou uma couraça. Sorria ufano, corria fazendo demonstrações de ataque ou defesa e parapeitava-se atrás dos arneses para cavalos ou das montarias guerreiras que estavam dispostas no centro da divisão.

    Deu-nos muitas e esmeradas lições nessa manhã, durante mais de duas horas, sobre as artes das armas. Contou-nos também as batalhas nas quais tinha guerreado e disse-nos coisas assaz interessantes sobre os exércitos e seus costumes. Estávamos assombrados ao ouvirmos a sabedoria militar do nosso avô.

    Quando explicou tudo o que considerou oportuno sobre as armas brancas, passou a discorrer sobre o uso dos arcabuzes, animando-se cada vez mais ao ver que estávamos muito atentos, de olhinhos arregalados.

    — Bem sabia eu que tudo isto vos ia agradar, moçoilos — afirmava muito satisfeito, dando-nos de vez em quando uma palmada carinhosa.

    Rebuscou num baú e encontrou pólvora, alguma munição e uns pavios. Com tudo isso, preparou um velho arcabuz para ser usado, mostrando-nos com todo o pormenor o processo. Depois propôs com entusiasmo:

    — Vamos pois às hortas, que vos ensinarei como funcionam estas endiabradas armas de fogo!

    Saímos os quatro; nós, as crianças, loucos de contentamento. Descemos aos pátios, atravessámos as hortas e fomos parar aos chiqueiros que ficavam no fim da casa. Dom Álvaro ia eufórico, fora de si e com o ardor guerreiro estampado no rosto. Reparou num grande porco que fuçava calmamente no esterco e adivinhei nos seus olhos um brilho malicioso. Preparou o pavio, encarou

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