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O cavaleiro de Alcántara
O cavaleiro de Alcántara
O cavaleiro de Alcántara
E-book439 páginas6 horas

O cavaleiro de Alcántara

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Sobre este e-book

O ano de 1568 é pernicioso para o rei Felipe II: o seu filho Carlos e a sua esposa Isabel de Valois falecem; os conflitos na Flandres e nas Alpujarras multiplicam-se; as heresias protestante e calvinista avançam na Europa e o Mediterrâneo é assolado pela pirataria berberesca e pelo ressurgir otomano. Para fazer frente a esta última ameaça, o rei dispõe da maior rede de espionagem jamais conhecida na cristandade, embora abundem os agentes duplos e, por sua vez, o grande turco disponha de hábeis informadores. Luis María Monroy de Villalobos, que acaba de entrar para a conceituada orden militar dos cavaleiros de Alcántara, é já um experiente guerreiro, viajante e espião. Em Segóvia receberá a incumbência de Felipe II em pessoa para uma nova missão secreta: viajar de novo a Istambul fazendo-se passar por um abastado comerciante de tecidos. Faltam menos de três anos para a vitória cristã em Lepanto...
A vida apaixonante do cavaleiro Monroy, protagonista da bem-sucedida trilogia de O cavaleiro de Alcántara (O cativo, A sublime porta e O cavaleiro de Alcántara), é o fiel reflexo de uma época tão fascinante quanto complexa, a do esplendor do império hispânico dos Áustrias, a mesma de Lope de Vega e Cervantes.
O protagonista do romance em breve descobrirá que os ideais cavaleirescos e religiosos, a música e a poesia, a pátria e a honra, devem conviver inevitavelmente com a crueldade da guerra, com a fome que assola o povo e, por vezes, com a iniquidade dos seus governantes.
O que dizem os leitores:
"Uma trilogia que prende o leitor desde O cativo, o primeiro livro. Sendo que talvez este último seja mais leve do que os dois anteriores, é certo e sabido que a pena deste escritor é extraordinária. Adorei os três e tenho a certeza de que vou ler mais obras de Sánchez Adalid."
"Um dos primeiros livros de Sánchez Adalid, que sem dúvida cativa e não defrauda as expectativas do leitor. Muito bom."
"Bem escrito, os dados são verídicos, para além do mais, tem um fundo de valores humanos que muito aprecio. Altamente recomendável."
"Outro fantástico relato muito bem documentado deste grande escritor. Muito recomendável para os amantes do romance histórico."
"É um romance plenamente embrenhado na história da época. Possui uma excelente narração dos diferentes estilos de vida, bem como das estruturas sociais, eclesiásticas e militares vigentes. A sua leitura proporciona-nos uma ideia clara de como era a vida nessa altura, bem como dos intereses geopolíticos que primavam. Do mais aconselhável."
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de jun. de 2021
ISBN9788491396574
O cavaleiro de Alcántara

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    O cavaleiro de Alcántara - Jesús Sánchez Adalid

    Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.

    Núñez de Balboa, 56

    28001 Madrid

    O cavaleiro de Alcántara

    Título original: El caballero de Alcántara

    © Jesús Sánchez Adalid, 2008

    © 2021, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.

    Tradutor: Filipa Velosa

    Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.

    Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.

    Desenho da capa: CalderónStudio

    1ª edição: Junho 2021

    ISBN: 978-84-9139-657-4

    Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

    Sumário

    Créditos

    Dedicatória

    Cita

    Prólogo

    Livro I

    1

    2

    3

    4

    5

    6

    7

    Livro II

    8

    9

    10

    11

    12

    13

    Livro III

    14

    15

    16

    17

    18

    19

    Livro IV

    20

    21

    22

    23

    24

    25

    26

    27

    Livro V

    28

    29

    30

    31

    32

    33

    Livro VI

    34

    35

    36

    37

    38

    39

    40

    Livro VII

    41

    42

    43

    44

    45

    Final venturoso desta história

    46

    47

    Epistolário a modo de epílogo

    Nota histórica

    Se gostou deste livro…

    Para Alejandro García Hernández

    Levantou a cabeça o poderoso

    que tanto ódio te tem; na nossa desolação

    reuniu o conselho, e contra nós pensaram

    os que nele se encontraram.

    «Vinde, disseram, e no mar encapelado

    façamos do seu sangue um grande lago;

    livremos estes da gente,

    e do nome do seu Cristo juntamente,

    e dividindo deles os despojos,

    se saciem de morte sua os nossos olhos.»

    Vieram da Ásia e do portentoso Egito

    os árabes e aleivosos africanos,

    e os que a Grécia junta mal com eles,

    com os erguidos pescoços,

    com grande poder e número infinito;

    e prometer ousaram com as suas mãos

    acender os nossos fins e dar morte

    à nossa juventude com ferro forte,

    as nossas crianças prender e as donzelas,

    e a glória mancha e a luz delas…

    Fernando de Herrera

    Canção Pela vitória de Lepanto, ano 1572

    Aventuras de dom Luis

    María Monroy de Villalobos,

    cavaleiro de Alcántara, que

    foi enviado para

    Constantinopla por el-

    rei D. Felipe II, nosso senhor,

    na secreta missão

    de espiar na corte do grande turco,

    três anos antes da gloriosa

    e memorável vitória cristã

    em Lepanto.

    Prólogo

    Eu, Luis María Monroy de Villalobos, estive cativo do turco, e ainda prosseguiria o meu penar naquela Constantinopla, a que chamam eles Istambul, se não tivesse cuidado Nosso Senhor de que não me faltasse a ocasião para escapar a tão desditosa vida para agora vo-la poder contar. Pois quisera eu que, como fosse a minha desventura, primeiro, e a minha fuga, depois, oportunidade para beneficiar a causa do nosso rei católico, não caísse em esquecimento esta história, podendo servir de exemplo e edificação a quem convier sabê-la.

    Mas isto escrevo não por exaltação da minha pessoa ruim, mas antes para louvor e glória d’Aquele que tudo pode, que houve por bem livrar-me de perigos e aflições, trazendo-me para a minha pátria e lar, onde agora recebo muitas graças que não mereço e a encomenda de alguns trabalhos, como o de contar as minhas peripécias para que cheguem ao conhecimento de muitos, conforme a longa licença e mandato que me foram concedidos pelos que têm potestade para tal.

    Sou de Jerez de los Caballeros e recebi as águas do batismo na igreja de Santa Maria da Encarnação. Presenteou-me Deus com a graça de ter pais virtuosos e de muita caridade, sendo eu o terceiro e mais novo dos seus filhos; cresci com todos os cuidados, na casa onde vivíamos, que era a do senhor meu avô, dom Álvaro de Villalobos Zúñiga, que padeceu também cativeiro em terra de mouros por ter servido nobre e valentemente o invicto imperador, até ser libertado pelos bons frades da Ordem de Nossa Senhora das Mercês, acontecimento graças ao qual pôde entregar a alma ao Criador muito santamente no leito do seu lar, aconchegado por aqueles que tanto o amavam: filhos, netos e criados.

    Não tão felizmente acabara os seus dias o meu gentil pai, dom Luis Monroy, que era capitão dos terços e foi morto na galera onde navegava para Bugia com a frota que ia recuperar Argel das mãos do Uluje Ali. Os turcos atacaram com grande número de embarcações e homens, afundando uma boa parte dos nossos barcos, e o meu pobre pai pereceu devido aos seus ferimentos ou afogado, sem que sequer pudessem resgatar o seu corpo das águas.

    Também ia naquela missão o meu irmão mais velho, Maximino Monroy, que, com melhor fortuna, se pôs a salvo a nado, apesar de ter a perna esquerda estraçalhada, até que uma galera cristã o recolheu. Mas não conseguiu salvar o membro dilacerado e, desde então, teve de renunciar ao serviço das armas para vir cuidar da fazenda familiar.

    O meu outro irmão, Lorenzo, ingressou no mosteiro de Guadalupe para se tornar monge da Ordem de São Jerónimo, permanecendo hoje dedicado à oração e aos muitos trabalhos próprios do seu estado: caridade com os pobres e piedade com os doentes e peregrinos que ali se vão consagrar aos pés de Nossa Senhora.

    Coube-me a mim obedecer à última vontade do senhor meu pai, manifesta no codicilo do seu testamento, a qual era que fosse servir o meu tio, o sétimo senhor de Belvís, que, por ter sido grande cavaleiro do imperador e mui insigne homem de armas, lhe pareceu o mais indicado para me dar uma adequada instrução militar. Mas, quando cheguei ao castelo dos Monroy, descobri que este nobre parente morrera, deixando a herança à sua única filha, a minha tia dona Beatriz, esposa que era do conde de Oropesa, ao serviço do qual entrei como pajem no alcácer que é cabeça e bastião de tão poderoso feudo.

    Era eu ainda um moço de pouco mais de quinze anos, quando, estando dedicado a estas misteres, Deus me concedeu a grande graça de conhecer de perto, em presença e carne mortal, e de lhe servir de beber, nada mais nada menos do que o césar Carlos, enquanto descansava o nosso senhor na residência dos meus amos que fica em Jarandilla, à espera de que concluíssem as obras do austero palácio que mandara construir em Yuste para se retirar para uma boa morte, fazendo penitência.

    Quando me chegou a idade oportuna, parti para Cáceres para me pôr sob o comando do terço que armava dom Álvaro de Sande e nele dar início à minha carreira militar. Agora me parece que providenciou o Senhor que eu achasse o melhor general e a mais honrosa bandeira para cumprir serviço de armas, primeiro, em Málaga, naquele a que chamam o Terço Velho, e, depois, em Milão, seguindo o percurso do senhor meu pai, naqueles quartéis de inverno onde se fazia a instrução.

    No final do ano de 1558, soube-se em Asti que morrera em Yuste o imperador nosso senhor e que reinava já o seu augusto filho, D. Felipe II, como rei de todas as Espanhas. Era como se se fechasse um mundo velho e se abrisse outro novo. De maneira que, na primavera do ano seguinte, se assinou em Cateau-Cambrésis a paz com os franceses.

    O alívio que supôs esta trégua para os exércitos da Flandres e da Lombardia concedeu à causa cristã a oportunidade de avançar para libertar Trípoli de Berbéria, que caíra na posse dos mouros em África, auxiliados pelo turco. Para esta missão se ofereceu o mestre de campo dom Álvaro de Sande, que partiu imediatamente de Milão com os soldados que tinha a seu cargo.

    Iniciou-se o aparato de guerra com muita pressa e partiu a armada espanhola de Génova sob o comando do duque de Sessa. Detivemo-nos em Nápoles o tempo suficiente para que se juntassem a nós as sete galeras do mar de Sancho de Leiva e duas de Stefano di Mare, mais dois mil soldados veteranos do Terço Velho. No primeiro dia de setembro, chegámos a Messina, onde vieram ao nosso encontro as frotas venezianas do príncipe Doria e as de Sicília, sob o estandarte de dom Berenguer de Requesens, mais as do Papa, as do duque de Florença e as do marquês de Terranova.

    Tal quantidade de navios e homens experientes nas artes da guerra não foi suficiente para socorrer os cristãos que defendiam a ilha a que chamam Djerba de tão ingente mourama que atacava por todos os lados a partir de África, bem como da grande armada turca que, do mar, veio em auxílio dos régulos maométicos, de maneira que sobreveio o desastre.

    Corria o ano infausto de 1560, recordo-o bem pois tinha feito dezanove anos. Ah, que mocidade para tamanha tristura! Tendo chegado a ser tambor-mor do terço de Milão a tão temporã idade, prometia-se-me um bom destino na milícia, se não fosse porque consentiu Deus que as nossas tropas viessem a sofrer a pior das derrotas.

    Desfeita a frota cristã e rendido o presídio, contemplei, com os meus ainda tenros olhos de soldado inexperiente e carente de maturidade, os maiores generais do nosso exército humilhados perante as potestades infiéis, bem como a imensidão de mortos (perto de cinco mil) que caíram da nossa gente em tão malograda missão e com cujos cadáveres empilhados construíram os diabólicos turcos uma torre que ainda hoje dizem ver do mar os marinheiros que se aventuram por aquela costa.

    Salvei-me eu da morte, mas não da escravatura que reserva a má fortuna para quem conserva a vida depois de vencido em terra alheia. E fiquei na posse de um aguerrido janíçaro chamado Dromux Arráez, que me levou consigo no seu galeão, primeiro, para Susa e, depois, para Constantinopla, a que os infiéis chamam Istambul, que é onde o grande turco tem a sua corte.

    Nessa grande cidade, fui empregado nos ofícios próprios dos cativos, que são: obedecer para conservar a cabeça sobre os ombros, fugir do que se pode, suportar uma ou outra surra e esgueirar-se através de mil meandros para conservar a própria honra, o que não é pouco, pois não há bom cavaleiro cristão que tenha a salvo a virtude e a vergonha entre gentes de tão luxuriosas tendências.

    Embora deva explicar que, em tais sortes, me beneficiou muito saber de música, já que os turcos apreciam sobremaneira o ofício de tanger o alaúde, cantar e recitar poemas. Agradam-lhes tanto estas artes que costumam tratar com consideração trovadores e poetas, chegando a tê-los em elevada estima, como se parentes fossem, nas suas casas e palácios, enchendo-os de atenções e obsequiando-os com vestidos, dinheiros e joias, quando as coplas lhes atingem a alma, despertando-lhes êxtase, nostalgia e recordações.

    Nestes ofícios me empreguei com tanto esmero que não só satisfiz os meus amos, como também cresceu a minha fama entre os mais importantes senhores da corte do sultão. De tal maneira que, passados alguns anos, cheguei a ser muito bem visto entre a criadagem do tal Dromux Arráez, gozando de liberdade para entrar e sair dos seus domínios. Foi assim que vim a estar ao corrente de tudo o que se passava na prodigiosa cidade de Istambul e a ter contacto com outros cristãos que nela viviam, venezianos a maioria, mas também napolitanos, gregos e, inclusive, espanhóis, e assim consegui muitas informações de idas e vindas, negócios e acordos. Desta forma, travei amizade com homens de vida dupla que eram ali considerados negociantes, mas que serviam em segredo o nosso rei católico, enviando avisos e informando as autoridades cristãs de tudo quanto tramava o turco em prejuízo das Espanhas.

    Abundando os meus contactos com tais espiões, pareceu-lhes a eles muito oportuno que eu me fingisse aficionado da religião maomética e me fizesse passar por renegado da fé em que fui batizado. E aceitei, para tirar o melhor proveito do cativeiro a favor de tão justa causa. Mas entenda-se que me tornei mouro só em figura e aparência, mas não no foro interno, onde conservei sempre a devoção a Nosso Senhor Jesus Cristo, à Virgem Maria e a todos os santos.

    Este embuste saiu-me tão bem que o meu dono muito se regozijou ao julgar-me turco e, desde então, considerou-me não já como escravo, mas antes como um filho muito querido. Deixei-me circuncidar e adotei as suas vestes, bem como os seus costumes. Aprendi a língua árabe e aperfeiçoei os meus conhecimentos dos acordes que utilizam para tanger o alaúde a que chamam saz. Em pouco tempo, recitava de cor os credos maométicos, cumpria enganosamente as obrigações dos ismaelitas, sem omitir nenhuma das cinco orações que eles fazem nem as abluções, e deixei que substituíssem o meu nome cristão pela alcunha sarracena Cheremet Ali. Com esta nova identidade, e estando toda a gente muito satisfeita, fiz uma vida cómoda, fácil, num reino onde os cativos passam inúmeras penúrias. E tive a oportunidade de obter muito boas informações que, como contarei, prestaram excelente serviço à causa da cristandade.

    Não transcorrera ainda um lustro do meu cativeiro, quando caiu em desgraça o meu amo Dromux Arráez, que era vizir da corte do grande turco. Alguém de entre a sua gente o traiu e os seus inimigos aproveitaram para expor os seus erros diante do olhar do sultão. Foi levado para a prisão, julgado e condenado à morte. Decepada a sua cabeça e espetada numa lança, os seus bens foram confiscados, e todos os seus servos e fazendas postos à venda.

    Eu fui comprado por um importantíssimo ministro de palácio, que tivera conhecimento das minhas artes por ser muito amigo de cantores e poetas. Era este magnata nada mais nada menos do que que o guardião dos selos do grande turco, o nisanji, como dizem eles, e servia nas coisas do mais alto governo do grande turco na Sublime Porta.

    Mudei de casa, mas não de ofício, pois prossegui a minha condição de trovador, turco por fora e mui cristão por dentro, espiando tudo o que podia.

    E exerci esta segunda arte com a maior das corduras. Acontece que o primeiro secretário do meu novo amo era também espião da mesma confraria do que eu, embora eu não tenha sabido disto enquanto Deus não o quis. Mas, quando a Ele lhe aprouve, chegou aos meus ouvidos a notícia de que o grande turco resolvera atacar Malta com toda a sua frota.

    Os conjurados da secreta irmandade muito insistiram que me despachasse a dar o aviso quanto antes. Embarquei à pressa e com sigilo na galeaça de um tal de Melquíades de Pantoja e naveguei sem sobressaltos até à ilha de Quio.

    Já vislumbrava a costa cristã, feliz pela minha sorte, quando a situação mudou e a minha vida e missão ficaram em grande perigo. Acontece que os gregos em cujo navio ia eu a caminho de Nápoles deram ouvidos ao demónio e entregaram-me às autoridades venezianas que governavam aquelas águas. Estas consideraram-me traidor e renegado, pondo-me nas mãos da justiça espanhola na Sicília, que considerou que eu devia comparecer perante a Santa Inquisição por ter encontrado em minha posse documentos com o selo do grande turco. Notaram também que estava eu circuncidado e já não me outorgaram crédito.

    Tentei uma e outra vez dar-lhes razões para os convencer de que era cristão. Em vão. Estava tudo contra mim. Interrogaram-me e submeteram-me a penosos tormentos. Mas não podia revelar-lhes toda a verdade sobre a minha história, porque jurara pela sacrossanta Cruz do Senhor não revelar a ninguém que era espião, nem mesmo aos cristãos, salvo ao vice-rei de Nápoles em pessoa ou ao próprio rei.

    Os senhores inquisidores perguntavam-me sempre a mesma coisa: se apostatara, que cerimónias praticara da seita maomética, o que sabia sobre Maomé, das suas prédicas, do Corão, se respeitara os jejuns do Ramadão… E tudo isto fazendo-me passar, uma e outra vez, pela tortura do cavalete.

    Em não vendo saída para tão terrível agonia, consagrei-me a Nossa Senhora de Guadalupe com muitas lágrimas e dor de coração. «Senhora», rezava eu, «vede que padecimentos sofro por ter sido fiel ao vosso filho no fundo da minha alma. Compadecei-vos de mim, mísero pecador! Fazei um milagre!».

    Sofria pelos castigos e prisões, mas também me atormentava a ideia de que se perderia a oportunidade de que as minhas informações chegassem aos ouvidos do rei católico para que fosse a tempo de socorrer Malta.

    Nisto, a Mãe de Deus deve ter escutado a minha súplica, porque um confessor do hábito de São Francisco finalmente acreditou em mim e mandou recado ao vice-rei. Veio célere o nobre senhor que ostentava esse importante cargo e, por ser versado em assuntos de espiões, adivinhou imediatamente que a minha boca não mentia e que a minha alma guardava um valiosíssimo segredo.

    O aviso que trazia eu de Constantinopla advertia que, no mês de março, a armada turca partiria à conquista de Malta, sob o comando do kapudan Piale Paxá, levando a bordo seis mil janíçaros, oito mil spais e munições e mantimentos para cercar a ilha durante meio ano, se fosse preciso, juntando-se-lhes o beylerbey de Argel, Sali Paxá, e o Dragut com os seus corsários. Se conquistassem Malta, cairiam, depois, a Sicília, Itália e o que lhes conviesse.

    Por ter o rei católico conhecimento de tão grave ameaça graças a esta notícia, pôde providenciar com tempo o aparato de guerra necessário. Enviou ordens e mantimentos aos cavaleiros de São João de Jerusalém para que se apressassem a fortificar a ilha e montar todas as defesas. Também ordenou que partisse a armada do mar com duzentas embarcações e mais de quinze mil homens do terço, à frente da qual ia dom Álvaro de Sande.

    Participei na vitória que nos concedeu Deus naquela gloriosa jornada, e procurei deixar bem altos os apelidos que ornam a nossa boa e piedosa casa, tanto Monroy como Villalobos, que eram os dos senhores meus pai e avô a quem segui nisto das armas.

    Salvou-se Malta para a cristandade e a bem-aventurada notícia correu veloz. Chegou rapidamente aos ouvidos do Papa de Roma, que chamou à sua presença os importantes generais e cavaleiros vitoriosos, para benzê-los por terem acudido em serviço e amparo da causa da fé cristã.

    Teve a bem o meu general fazer-me a mercê de me levar com ele como prémio pelas informações que trouxe de Constantinopla e que tão valiosas foram para a vitória. Pus-me, pois, a caminho de Roma, capital da cristandade, nos barcos que sua excelência, o vice-rei, enviou para responder ao chamamento de Sua Santidade. Chegámos à mais formosa cidade do mundo e fizemos um vitorioso desfile pelas suas ruas, levando à frente as bandeiras, galhardetes e estandartes dos nossos exércitos.

    Tangia a missa maior na maior catedral, que é a de São Pedro, na qual tem assento a cabeça da cristandade. Com o ruído dos sinos, o rufar dos tambores e a muita gente que estava ali congregada, tinha eu a voz embargada por tanta emoção e tremiam-me as pernas.

    Embora de longe, vi o Papa Pio V sentado na sua cadeira com muita majestade, ostentando sobre a cabeça as três coroas. Proferiu palavras em latim que foram inaudíveis àquela distância e depois deu as suas bênçãos a toda a gente. Entre outros muitos regalos que fez Sua Santidade aos generais vencedores, deu a dom Álvaro de Sande três espinhas da coroa do Senhor.

    Com estas graças e mui folgados, estivemos três dias em Roma, passados os quais, embarcámos rumo a Espanha, a Málaga, onde o rei nosso senhor nos recebeu também e nos deu honras pela vitória.

    Permaneci naquele porto e quartel o tempo necessário para restabelecer forças e me curar de certa debilidade de membros e febre de que padecia, aproveitando também este repouso para solicitar a sua Majestade que desse ordem ao Conselho da Suprema e Geral Inquisição para que se me desse como exonerado, sendo reparada a minha honra e bom nome de cristão nos livros de Genealogias e nos registos de Relaxados, de Reconciliados e de Penitenciados, para que não sofresse prejuízo algum pelas acusações a que fui submetido, por me terem julgado renegado e apóstata.

    Fizeram a respeito os secretários do rei as oportunas diligências e, são de corpo e reparado de alma, pus-me a caminho, a pé, para peregrinar até ao santuário de Nossa Senhora de Guadalupe, como romaria e em agradecimento pela graça de me ter visto livre de tantas adversidades.

    Cumprida a minha promessa, regressei felizmente a Jerez de los Caballeros, à minha casa, onde tem início a história que agora escrevo, obedecendo ao mandato de Vossência, pela sujeição e reverência que lhe devo — mas não para me tornar memorável — e para maior glória de Deus Nosso Senhor, pois a fama e grandeza humanas de nada valem, senão como bom exemplo e guia de outras vidas. Muito consolo me dá saber o bem que assegura Vossência que fará às almas estas linhas que agora escrevo. Que Deus permita que se cumpra tal propósito.

    De Vossa Excelência indigno servo,

    LUIS MARÍA MONROY

    LIVRO I

    ONDE DOM LUIS MARÍA

    MONROY DE VILLALOBOS CONTA

    O REGRESSO A SUA CASA,

    NA MUI NOBRE CIDADE DE

    JEREZ DE LOS CABALLEROS, DEPOIS

    DE SE TER LIBERTADO DO PENOSO

    CATIVEIRO EM CONSTANTINOPLA.

    1

    Amanhecia tenuemente quando consegui ver as torres e campanários da minha amada cidade. Caminhara durante toda a noite para evitar o calor, por caminhos que as sombras esbatiam, e pareceu-me que nascia o sol no horizonte para alumiar a formosura de Jerez de los Caballeros, presenteando-me com a sublime visão das muralhas douradas e dos vermelhos telhados, no meio dos campos montanhosos. Uma grande quietude dominava tudo.

    Atravessei a porta a que chamam de Burgos e subi lentamente pelas ruas inclinadas. Os cães ladravam ao ruído dos meus passos. Cantavam os galos. Os camponeses saíam para os seus labores e os sinos chamavam para a missa matutina. Os afazeres quotidianos, o som de chocalhos, o martelar nas oficinas, os pregoeiros e as vassouras que arranhavam as pedras dos portais quebravam o silêncio.

    Mais de dez anos tinham transcorrido desde a minha partida. Então, quando saí da minha casa, era um jovem moço e, agora, regressava um homem feito, crescidas as barbas desordenadas, sujos o corpo e o rosto pelo pó dos caminhos e maltratadas as roupas, após tão longa viagem. Ninguém me reconheceu, embora alguns ficassem a observar-me.

    Ao percorrer os lugares familiares onde passei a minha infância, brotavam na minha alma as recordações. Senti uma ameaça de angústia, pelo tempo deixado para trás e que já não voltaria. Mas, chegado à porta da minha casa, fui sacudido por uma súbita alegria, como se brotasse dentro de mim uma fonte que me animava. E veio-me à memória o penoso cativeiro como algo consumado, muito longínquo, como se tivesse sido padecido por outra pessoa e não por mim.

    A encantadora visão do lugar onde cresci permanecia inalterada, assombrosamente idêntica ao dia em que parti. Observava a parede soalheira, os vermelhos tijolos dos caixilhos das janelas, as negras grades de ferro forjado, os nobres brasões onde se exibiam, bem cinzeladas em granito, as armas da família.

    Bati na madeira do robusto pórtico com a aldraba e o som ressoou no interior do saguão, regressando até mim como um eco profundamente conhecido. Depois, ouviram-se passos lá dentro. Uma viva emoção carregada de impaciência dominava-me.

    Abriu um rapaz de familiar aparência. Observou-me e, com prudência, perguntou:

    — O que deseja vossa mercê a esta hora? Não se faz caridade nesta casa antes do meio-dia.

    — Não peço caridade — respondi sorridente. — Venho ao que é meu…

    Observou-me circunspecto o rapaz e, arrogante, acrescentou:

    — Se sois peregrino ou soldado de passagem, terei de ir perguntar ao senhor meu pai. Aguardai aqui.

    — Sou ambas as coisas — assenti —, peregrino e soldado. Mas não estou de passagem, regresso à minha casa.

    — Hã? — murmurou sobressaltado.

    — Sou dom Luis María Monroy de Villalobos — acrescentei. — Nesta casa nasci, há vinte e oito anos.

    O rosto do rapaz iluminou-se. Ficou atónito, mudo, e afastou-se para me deixar passar.

    Avançava eu pelo saguão na penumbra, quando ele recuperou a voz e me disse com muito respeito:

    — Passe vossa mercê, pois esperam-no, senhor meu tio. — E começou a anunciar aos gritos, enquanto corria de um lado para o outro: — É dom Luis María! É o cativo!…

    Vislumbrei, ao fundo, a luz do pátio e avancei com passos vacilantes, extasiado, procurando a porta que dava acesso aos aposentos onde a minha família costumava fazer a sua vida. Na austera sala de jantar, umas velas acesas iluminavam o quadro da Nossa Senhora das Mercês, protetora dos cativos, que ali mandou pendurar a minha avó.

    Aos pés da bendita imagem, ajoelhada, uma dama orava. A minha presença e os gritos do rapaz sobressaltaram-na.

    — É o cativo! É o cativo!…

    Ela olhou-me de alto a baixo, com expressão de perplexidade. Os meus olhos cruzaram-se com os seus. Era tal como a recordava, apesar de o seu rosto se ter tornado mais sereno com os anos e de o cabelo já não ser castanho, mas grisalho.

    — Senhora minha mãe! — exclamei, levado por natural impulso.

    — Filho da minha alma! — respondeu ela, esticando os braços para mim.

    Nada há como regressar ao colo de uma mãe depois de ter sofrido tanto. Talvez chegar ao céu…?

    — Irmão! Meu irmão! — exclamou alguém atrás de mim, tirando-me do meu arrebatamento.

    Virei-me. Era o meu irmão Maximino, que reconheci imediatamente, embora tivesse engordado bastante desde a última vez que o vira. Já não era aquele rapaz de cabelos escuros e encaracolados, algo pequeno, mas robusto e ágil. Agora, tinha a barriga avultada, cabelo branco nas têmporas, a barba pontiaguda, como a do nosso avô, a expressão exaltada e aquele coxear tão particular, fazendo avançar a perna de madeira com elegância, tentando disfarçar o defeito, mas sem conseguir controlar os golpes secos do membro inerte nos azulejos do chão.

    — Maximino! — gritei, indo ao seu encontro. — Meu irmão!

    Abraçámo-nos. Estava muito emocionado e parecia não querer que se lhe vissem as lágrimas, pois passava constantemente os dedos pelos olhos.

    — Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! Que alegria! — exclamava. — Julgávamos que estáveis morto! A vossa mãe sofreu muito…. Sofremos todos, diacho! Estais vivo, meu irmão! Que alegria!

    — Graças a Deus, aqui estou! — dizia eu, no auge da felicidade, deleitado com as suas demonstrações de carinho. — Deus vos pague tantas atenções. Obrigado por terdes rezado tanto por mim. A Virgem Maria não me deixou sozinho…

    — Olhai, irmão — disse ele, pondo-me o braço sobre os ombros e conduzindo-me na direção de umas crianças que não nos tiravam os olhos de cima, entre as quais estava o rapaz que me abrira a porta. — Estes são os meus filhos; dois varões e três meninas, cinco ao todo: o Alvarito, que é o mais velho, o que te recebeu, que vai fazer onze anos por altura do Natal; o segundo, o Luis, como o senhor nosso pai, e como tu, tem nove anos; e as meninas, a Encarnación, a Isabel de María e a Casilda, de seis, cinco e três anos a mais nova. E vem o sexto a caminho! — Apontou para uma mulher junto das crianças. — É dona Esperanza de Paredes, a senhora minha esposa.

    — Oh, Maximino, que bênção! — exclamei, enquanto me aproximava para beijar a mão da minha cunhada e abraçar os meus sobrinhos.

    — Não me posso queixar — disse ele. — E, hoje, Deus concedeu às gentes desta casa a maior das graças, trazendo-vos até cá, são e salvo, transformado num herói, capitão dos terços de sua Majestade. Bendito seja Deus!

    Então, a senhora minha mãe avançou e propôs:

    — Rezemos em sinal de agradecimento.

    Todos nos ajoelhámos diante do grande quadro da Nossa Senhora das Mercês que ocupava o lugar de destaque na sala e rezámos devotamente a Salve Rainha.

    Depois do «amém», o Maximino disse:

    — E, agora, vamos celebrar. Bebamos vinho e folguemos! Que hoje não é dia de trabalhar nesta casa.

    Dito isto, dirigiu-se à criadagem e ordenou-lhes que matassem e depenassem uns galos do galinheiro, que abrissem a ânfora do melhor vinho e que fossem comprar uns queijos, pães macios, doces e restantes coisas necessárias para dar um banquete.

    Mais tarde, quando já se dispersara a multidão curiosa dos vizinhos e a casa ficou finalmente em sossego, recolhemo-nos, em família, na parte mais íntima e confortável do lar, diante da lareira. Ali, houve novamente abraços e voltaram as emoções e as lágrimas, mas também houve gracejos e gargalhadas. Depois, comeu-se bem e brindou-se com bom vinho. A conversa prolongou-se durante todo o dia. Estava eu ébrio de felicidade.

    Contei o que me pareceu oportuno da minha peripécia, enquanto eles me ouviam sem pestanejar, especialmente as crianças. Preferi não relatar as penas e adornar a minha história com uma certa fantasia, para a dulcificar.

    A minha mãe explicou-me, depois, como foram os últimos dias da vida da senhora minha avó, que morrera recentemente, com muita serenidade, rodeada dos seus netos e bisnetos e atendida pelos sacerdotes.

    Conversámos durante todo o dia. Ao final da tarde, chegaram alguns parentes e juntaram-se à festa. Jantou-se abundantemente. Especialmente eu, que trazia fome atrasada. As aves em escabeche e a carne seca em azeite trouxeram-me de volta os sabores da infância. O meu irmão abriu uma garrafa de um licor excelente e acendeu a lareira, pois, apesar de ser início de outono, o tempo refrescara. Os criados trouxeram os cadeirões mais confortáveis para a pequena sala interior e sentámo-nos todos em redor do conforto do lume.

    Um delicioso torpor embargava-me e eu desejava permanecer muito quieto, em silêncio, desfrutando do reencontro com o meu lar. Mas uns e outros assaltavam-me constantemente com perguntas. Tinham muita curiosidade a respeito das minhas aventuras e queriam que lhes contasse tudo nessa mesma noite.

    2

    Ao sentir-me na quietude do lar, reparei que o meu corpo arrastava uma fadiga de meses, ou de anos. Também a minha alma precisava de descanso. Chegou um momento em que me parecia que permanecer quieto, sozinho e em silêncio eram as únicas coisas boas e belas. A minha mente estava tão embotada que algumas vezes tive a sensação de viver submerso numa espécie de sonolência, mesmo que estivesse levantado e entretido nalgum mister, fosse ele ler, conversar ou até mesmo ir à igreja ao domingo.

    Em contrapartida, à noite, não conseguia dormir profundamente e, mesmo que conseguisse adormecer, era assaltado por pesadelos. Frequentemente, acordava inquieto e ensopado em suor. Às vezes, também me parecia estar ainda em cativeiro ou na guerra, ao abrir os olhos na total escuridão da alcova, sem saber onde me encontrava, numa confusão enorme.

    Depois, durante o dia, tinha de receber as visitas que chegavam para transmitir as suas felicitações. Era muitíssimo aborrecido repetir as mesmas histórias vezes sem conta, principalmente naquele estado de preguiça permanente que me embargava. Havia parentes e amigos que

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