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O Doente Crônico Grave, a Pessoa com Deficiência e o Princípio da Igualdade
O Doente Crônico Grave, a Pessoa com Deficiência e o Princípio da Igualdade
O Doente Crônico Grave, a Pessoa com Deficiência e o Princípio da Igualdade
E-book355 páginas4 horas

O Doente Crônico Grave, a Pessoa com Deficiência e o Princípio da Igualdade

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Sobre este e-book

O livro trata dos direitos das pessoas com doenças crônicas graves e faz uma comparação com os direitos das pessoas com deficiência. A equiparação legal da pessoa com doença crônica grave à pessoa com deficiência aumentaria a proteção legal dos doentes crônicos e está em consonância com o que está disposto na Constituição Federal de 1988, com o valor da igualdade, com o princípio da dignidade da pessoa humana e com a garantia do mínimo existencial. Partindo do valor da igualdade, a obra trata das assimetrias de direitos estabelecidos nas diversas normas brasileiras que tratam das pessoas com deficiência e das listas de doenças crônicas que geram algum tipo de proteção
IdiomaPortuguês
Data de lançamento15 de out. de 2020
ISBN9786587401232
O Doente Crônico Grave, a Pessoa com Deficiência e o Princípio da Igualdade

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    O Doente Crônico Grave, a Pessoa com Deficiência e o Princípio da Igualdade - Sybelle Luzia Guimarães Drumond

    colhidos.

    1. - A PESSOA COM DEFICIÊNCIA1 E A PESSOA COM DOENÇA CRÔNICA GRAVE

    1.1 - Uma Visão Geral

    Na sociedade contemporânea, tanto a deficiência² quanto a doença crônica grave são importantes fatores de desigualdade.³ Como objetos de segregação, e cada uma com as suas peculiaridades, ambas as pessoas nessa situação de vida são colocadas, de alguma maneira, à margem das relações sociais.

    A deficiência e a doença crônica fazem parte da condição humana. Quase todas as pessoas terão uma deficiência ou uma doença temporária ou permanente em algum momento de suas vidas, e aqueles que sobreviverem ao envelhecimento enfrentarão dificuldades cada vez maiores com a funcionalidade de seus corpos. Em famílias que possuem um familiar que é uma pessoa com deficiência ou uma pessoa com doença crônica, pessoas não deficientes e saudáveis assumem a responsabilidade de prover suporte e cuidar de parentes e amigos com deficiências ou com doenças crônicas.

    Sabe-se que as necessidades humanas nascem no âmbito da filosofia política como um conceito que descreve a relação das dimensões da vida humana entre si e com o ambiente social em que estão inseridas. O debate sobre as necessidades humanas se consolida no âmbito político a partir da construção social humana e da sua relação com a natureza.

    A análise de tais necessidades vai além de um determinismo biológico para inserir um contexto de relações sociais. Há inúmeras vertentes⁴ e debates sobre as necessidades humanas, desde o ponto de vista biológico, econômico ou psicológico. Contudo, o aprofundamento nesses debates não é o intento desta obra.⁵

    As necessidades humanas remetem a algo compartilhado por todas as pessoas, e várias áreas do conhecimento empreendem investigações teóricas e classificações sobre quais são estas necessidades.

    Com o surgimento do Estado de Bem-Estar Social⁷ e a construção de grandes sistemas de proteção social, o debate sobre as necessidades humanas ganhou um novo fôlego. O bem-estar das pessoas passou a ser provido também de forma coletiva por meio das políticas públicas, e as necessidades humanas tornam-se referências para estas provisões.

    Em um contexto de crescimento do capitalismo, os países passaram a buscar a medida entre o bem-estar necessário e o excesso indesejável, no âmbito das suas provisões.⁸ A utilização de recursos públicos para a proteção social carecia constantemente de revisões e justificações, pois a lógica do financiamento coletivo trazia insatisfações e recebia ataques constantes de vertentes conservadoras.

    Logo, constata-se que as necessidades humanas foram apropriadas pelo debate sobre justiça distributiva e sua determinação no âmbito argumentativo passou a destinar-se à orientação ou justificação desses sistemas distributivos de proteção.

    Nessa linha de análise dos sistemas distributivos de proteção, enquadram-se tanto os doentes crônicos graves quanto as pessoas com deficiência.

    1.2. - Pessoa com Deficiência

    1.2.1. - Uma Visão Geral

    Todos os períodos históricos enfrentaram a questão moral e política de como melhor incluir e apoiar as pessoas com deficiência. Essa questão se torna mais premente conforme a demografia das sociedades mude e cada vez mais pessoas alcancem a idade avançada.

    As pessoas com deficiência, ao longo da história da humanidade, têm recebido diversos tipos de tratamentos. Os registros mais antigos dão conta que alguns povos simplesmente as exterminavam, enquanto outros, as excluíam ou as segregavam do convívio social.¹⁰

    Tanto a integração como a inclusão da pessoa com deficiência, em primeiro lugar, guardam estrita relação com as grandes guerras mundiais,¹¹ que foram responsáveis pela ocorrência em grau elevado, de pessoas com deficiência no século XX e, em segundo lugar, com os acidentes pessoais.

    As guerras e os acidentes tiveram e têm o poder de transformar, em instantes, pessoas consideradas normais em pessoas com sequelas, ou seja, pessoas com deficiências. Tem-se que, em instantes, médicos, administradores, professores, advogados e outros deixam de ser pessoas plenamente aptas para o trabalho e para muitas das atividades da vida diária. Transformam-se de pessoas plenamente aptas a pessoas inaptas para determinadas atividades.

    Assim, a inclusão instantânea de pessoas com um bom nível cultural no rol das pessoas com deficiência, apesar de ser lamentável do ponto de vista humano, acabou por implicar no aumento do poder de atuação, do poder político e do poder de persuasão desse segmento da sociedade. ¹²

    Logo, constata-se que um dos últimos discursos sobre a desigualdade a surgir no cenário das ciências humanas e sociais foi o das pessoas com deficiência que começaram a se mostrar insatisfeitos com sua situação de subalternidade e de segregação e começaram a reivindicar os seus direitos. A partir do sentimento de injustiça gerado pela privação da participação igualitária na sociedade, surgiram tanto os movimentos sociais como a militância acadêmica das pessoas com deficiência.

    O sentimento de igualdade de direitos entre todos nasceu da doutrina cristã e desenvolveu-se no âmbito de sociedade integrativas, dessa maneira, com as reinvindicações dessas pessoas sendo baseadas no direito de igualdade, a pessoa com deficiência passou a ser, também, responsabilidade do Estado. Assim, os Estados passaram a ter que lidar com o problema da inclusão social dessas pessoas, ao invés de, simplesmente, evitarem tratar do tema.¹³

    1.2.2. - O Conceito de Deficiência

    Percebe-se que as necessidades das pessoas com deficiência foram, por muito tempo, ignoradas nas várias esferas da vida social.¹⁴ Os espaços físicos, os meios de comunicação, as leis e as estruturas de trabalho são construídos sem considerar a diversidade dessas pessoas. Estas alegam que o padrão de referência para os valores culturais e políticos são as pessoas sem impedimentos.¹⁵

    Na perspectiva das pessoas com deficiência, o mundo funciona guiado por uma expectativa de normalidade que, quando frustrada, relega os corpos desviantes ao espaço da exclusão¹⁶. A possibilidade disponível pela sociedade às pessoas com deficiência é a reabilitação e normalização dos seus corpos, para que possam funcionar próximo da normalidade e participar dos vários espaços com as demais pessoas. Há a verdadeira imposição do padrão da maioria.

    Esse entendimento da deficiência como um desvio corporal é chamado de modelo biomédico da deficiência,¹⁷ sendo os corpos considerados normais a referência de saúde e funcionamento genuinamente humanos.

    Nesse entendimento, os impedimentos são resultados de defeitos de formação, habilidade ou estrutura, e trazem desvantagens naturais para essas pessoas. Para o modelo biomédico, os corpos com impedimento desviam-se do que deveriam ser ou como deveriam funcionar. Em épocas passadas e dentre os vários discursos sobre a deficiência, o discurso biomédico se tornou hegemônico e, em várias situações, foi o Discurso oficial para as ações de proteção social e de políticas públicas.

    Há uma cultura da normalidade no pensamento social e na construção dos espaços de convivência. A produção social dos valores coloca no aspecto supostamente natural das diferenças as desvantagens sofridas pelos sujeitos que não se enquadram no padrão corporal dominante.

    Em contraposição a este modelo, os estudos sobre deficiência propuseram o chamado modelo social da deficiência.¹⁸ Esse modelo argumenta que os impedimentos são parte da diversidade humana. Os impedimentos correspondem a estilos de vida como quaisquer outros e devem ser assim considerados. Nesse entendimento, as diferenças corporais são afirmadas mas não justificam uma hierarquia estabelecida em relação ao padrão considerado normal.

    Tal modelo não recusa os cuidados médicos e as tecnologias assistivas, mas denunciam o caráter opressor do discurso biomédico, que coloca as pessoas com deficiência como pessoas naturalmente inferiores, tendo como causa uma infelicidade natural ou adquirida, se comparadas às demais pessoas.¹⁹

    Diferente do que é proposto pelo modelo biomédico da deficiência, os teóricos do modelo social propõem que a desvantagem sofrida por pessoas com impedimentos é decorrente da pouca sensibilidade das demais pessoas e ambientes à diversidade corporal. Ao considerar a diversidade como um desvio, as várias esferas da vida social são construídas em torno de apenas um padrão de estrutura e funcionamento, produzindo continuamente barreiras para a participação das pessoas com deficiência em condição de igualdade com as demais.²⁰

    A organização socioespacial contemporânea ainda é um fator promotor da deficiência, bem como um fator material persistente na constituição da deficiência como uma forma específica de opressão.

    De maneira equivalente pode-se dizer das formas hegemônicas de comunicação e educação. As pessoas com deficiência não se reconhecem na forma como o espaço e o tempo estão organizados, e isso ocorre, porque essas pessoas tiveram pouca ou nenhuma participação na sua construção.

    O modelo social de deficiência argumenta que o corpo com impedimentos é inseparável dos saberes e poderes investidos sobre ele. Como um discurso construído com base na inclusão social, traz que os impedimentos são culturalmente complexos, constituindo-se produtos das intensas práticas disciplinares que os produziram, não podendo ser rotulados ou estereotipados.

    As pessoas com deficiência também foram excluídas do contrato que conforma a ordem social moderna e contemporânea. Nussbaum argumenta que a exigência do benefício mútuo e reciprocidade na cooperação social, que fundamentam o contrato social²¹, exclui boa parte das pessoas com deficiência, em especial pelo fato de que o mundo social não é construído considerando-se a diversidade corporal.

    O benefício mútuo pressupõe que as pessoas concordam e se submetem às regras do ccontrato porque obtém vantagens na cooperação social que de outra forma não teriam. Mas se por um lado, as pessoas com deficiência são impedidas de participar como iguais devido às barreiras impostas, por outro, há pessoas com impedimentos específicos que nunca poderão ser plenamente cooperativas e com as quais é difícil imaginar benefícios ou reciprocidade mútua possíveis. Há a pressuposição de um sujeito racional e cooperativo ideal que não corresponde a todas as possibilidades e necessidades humanas.

    Para Nussbaum,²² a ideia do contrato social fundamentado no benefício mútuo é opressora para as pessoas com deficiência cognitiva e não expressa as reais razões pelas quais os seres humanos convivem coletivamente em sociedade. Argumenta, ainda que a coletividade humana se fundamenta também em outros princípios importantes, como a solidariedade ou a benevolência.²³

    Grande parte da exclusão das pessoas com deficiência das teorias do contrato é feita com base no requisito da racionalidade e da cooperação. As teorias ignoram possibilidades de funcionamento e estrutura corporal distintas daquelas correspondentes ao padrão dominante. Algumas vezes, no entanto, há o reconhecimento explícito dessa limitação teórica no que concerne à inclusão das pessoas com deficiência no momento do contrato e na definição dos seus princípios. ²⁴

    Há uma tensão entre as exigências de características corporais do contrato social e a deficiência que pode ser explicitada.

    Nessa linha de pensamento, a situação de subalternidade das pessoas com deficiência decorre não necessariamente das diferenças que apresentam em relação ao grupo dominante, mas de estruturas sociais opressivas fundamentadas na naturalização dessas diferenças como inferiores e desviantes. Ao estabelecer um corpo único como o padrão para a coletividade e para as necessidades humanas, o grupo dominante produz e reproduz estruturas excludentes, que marginalizam e oprimem as demais pessoas.

    Assim, nos seus primórdios, os estudos sobre deficiência negam qualquer responsabilidade dos impedimentos corporais nas desvantagens sociais sofridas pelas pessoas com deficiência. Os impedimentos seriam apenas características corporais como quaisquer outras, e a opressão sofrida decorriam unicamente das estruturas sociais opressivas e pouco sensíveis à diversidade.

    Nas teorias modernas,²⁵ é iniciada uma nova geração de estudos, que devolve os impedimentos para o centro das discussões, uma vez que há pessoas que, não importa quantos ajustes sejam feitos, nunca poderão efetivamente cooperar igualmente com as demais. Há algumas pessoas cujos impedimentos físicos ou cognitivos limitam permanentemente suas possibilidades de funcionamento, para as quais a sensibilidade do ambiente tem pouco a oferecer.

    A adoção do modelo biomédico ou do modelo social da deficiência possui implicações profundas aos direitos da população. A deficiência como limitação corporal implica investimentos prioritariamente em medidas sanitárias, de medicalização e reabilitação, e não de proteção social e reparação da desigualdade.

    Com a emergência do modelo social, a deficiência passa a ser um tema emergente para as políticas públicas. O desafio para as negociações políticas será a partir do novo conceito de deficiência como instrumento de promoção da justiça, e não como uma questão individual.

    Nesse sentido, o conjunto de pessoas consideradas com deficiência pode ser concebido como uma categoria de análise. Ao contrário do senso comum, o que as faz pertencerem a um grupo, não é propriamente o fato de possuírem uma característica física, uma diferença em relação às pessoas ditas normais, o que se denomina deficiência. O que faz das pessoas com deficiência uma categoria de análise é a experiência comum. Caso, realmente a deficiência fosse tratada como algo normal, não haveria a necessidade de qualquer classificação.

    Logo, é fato que quando é realizada a análise do grau de desenvolvimento educacional e social alcançado pelos vários grupos de pessoas com deficiência, constata-se que os índices obtidos por aquelas pessoas que nasceram com deficiência, ou que a adquiriram durante a primeira infância são muito baixos. As dificuldades enfrentadas por esse grupo de deficientes no processo de ensino e aprendizagem, são muito maiores do que as enfrentadas pelo grupo que se tornou deficiente na idade adulta.

    Essas características assinaladas mostram que o conceito de deficiência é amplo e complexo, possui diversas nuânces e variáveis, e, por conseguinte deve receber também um tratamento complexo e multifacetado por parte dos Estados.

    1.2.3. - Pessoa com Deficiência no Brasil

    As pessoas com deficiência, ao longo da história, têm recebido diversos tipos de tratamentos.

    No Brasil o cenário não foi diferente. Apenas recentemente²⁶ as pessoas com deficiência passaram a ser aceitos de fato como sujeitos de direitos, e a sociedade começou a empregar o termo integração, para indicar que as pessoas com deficiência podiam participar dos atos da vida civil.

    Nos termos do art. 2º da Lei nº 13.146/2015, o Estatuto das Pessoas com Deficiência:

    Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

    Como visto, as guerras e os acidentes tiveram o poder de transformar, em instantes, pessoas consideradas normais em pessoas com seqüelas, pessoas com deficiências. Incluir pessoas com bom nível cultural no rol das com deficiência implica aumentar o poder de atuação, o poder político e o poder de persuasão desse segmento. No Brasil, essa realidade também não difere, principalmente em relação aos acidentes pessoais e automobilísticos.

    Nesse viés observa-se que a própria evolução da terminologia utilizada para nominar o deficiente no Brasil, diz muito sobre a realidade dessa categoria de pessoas.

    De início, sabe-se que a nomenclatura usada para definir o deficiente no Brasil foi bastante influenciada pela nomenclatura internacional.²⁷

    Como nunca houve uma padronização normativa, a expressão terminológica do grupo de pessoas com deficiência deve sempre ser interpretado no sentido mais usual.

    A definição da palavra deficiência, segundo Ferreira corresponde a algo: falto, carente, incompleto, imperfeito.²⁸

    Entretanto, ao tratar de pessoas com deficiência urge ir muito além da definição exposta em dicionários de língua portuguesa.

    Usar ou não usar termos técnicos corretamente não é uma mera questão semântica ou sem importância, se há desejo de falar ou escrever construtivamente, numa perspectiva inclusiva, sobre qualquer assunto de cunho humano.

    A terminologia correta é especialmente importante quando aborda-se assuntos tradicionalmente eivados de preconceitos, estigmas e estereótipos, como é o caso das pessoas com deficiência.

    Os termos são considerados corretos em função de certos valores e conceitos vigentes em cada sociedade e em cada época. Assim, eles passam a ser incorretos quando esses valores e conceitos são substituídos por outros, o que exige o uso de outras palavras. Estas outras palavras podem já existir na língua falada e escrita, mas, neste caso, passam a ter novos significados. Ou, então, são construídas especificamente para designar conceitos novos. O maior problema decorrente do uso de termos incorretos reside no fato de os conceitos obsoletos, as idéias equivocadas e as informações inexatas serem inadvertidamente reforçados e perpetuados.²⁹

    Este fato pode ser a causa da dificuldade ou excessiva demora com que o público leigo e os profissionais mudam seus comportamentos, raciocínios e conhecimentos em relação, por exemplo, à situação das pessoas com deficiência. O mesmo fato também pode ser responsável pela resistência contra a mudança de paradigmas como o que está acontecendo, por exemplo, na mudança que vai da integração para a inclusão em todos os sistemas sociais comuns.

    Trata-se, pois, de uma questão da maior importância em todos os países. Existe uma literatura consideravelmente grande em várias línguas. No Brasil, há tentativas de levar ao público a terminologia correta para o uso na abordagem de assuntos de deficiência a fim de que se desencoraje práticas discriminatórias e construa-se uma verdadeira sociedade inclusiva.

    Nessa linha de pensamento, Gonçalves³⁰ tratou da nomenclatura da pessoa com deficiência e constatou que a nomenclatura não legal encontrada para retratar as pessoas com deficiência foi: indivíduos de capacidade limitada, minorados, impedidos descapacitados, excepcionais, special person, inválidos, além de deficiente, o termo mais usado. Logo, percebe-se que desde a nomenclatura há uma tendência a reduzir a autoestima da pessoa com deficiência e, de alguma maneira a segregá-lo.

    Importante ressaltar que o rol dessas nomenclaturas leva a uma interpretação variada. Algumas expressões realçam a incapacidade, ao passo que outras trazem a noção de debilidade ou deficiência.

    No âmbito jurídico, a realidade não foi e nem é muito diferente.

    Desde o emprego de palavras como surdo-mudo, expressão adotada desde o Código Civil de 1916, totalmente inadequada, pois são raríssimas as pessoas que, além de surdas, não têm capacidade para emitir os sons da fala. Ocorre que, não ouvindo tais sons e não sendo treinadas adequadamente para tanto, elas não aprendem a emiti-los, acabando espontaneamente por usar a linguagem gestual-visual.³¹

    Também eram empregadas nos textos legais algumas outras palavras ou expressões ainda menos precisas. Exemplifica-se: na Lei nº 4.613/65, emprega-se a expressão pessoa com defeitos físicos para delimitar as pessoas beneficiárias da isenção de impostos de importação de veículos especiais.

    Na Lei nº 5.869/73, art. 151, III, que institui o Código de Processo Civil, emprega-se o termo incapaz para referir-se, entre outros, aos ...surdos-mudos, que não puderem transmitir a sua vontade por escrito; ou seja, um termo inadequado a retratar, determinado grupo de pessoas com deficiência, que são os surdos. A mesma lei emprega também o termo pródigo, no art. 1.185, que carece de qualquer precisão terminológica ou jurídica.³²

    Já o termo pessoa excepcional foi utilizado na Emenda Constitucional de 1969. Essa terminologia é muito empregada nos casos da deficiência mental, o passo que o termo deficiente, geralmente, relaciona-se à deficiência do individuo.

    A lei nº 7.210/84, que instituiu a Lei de Execução Penal, trouxe as expressões deficientes físicos³³ e mental³⁴.

    Outro termo bastante usado na doutrina e nas normas jurídicas é incapacidade. Entretanto, constata-se que a incapacidade pode advir como conseqüência ou não de uma deficiência. A título de exemplos, o paraplégico tem incapacidade para andar. O surdo tem incapacidade para ouvir sons da fala. O cego tem incapacidade para ver objetos. Contudo, o indivíduo que está numa cama de hospital também é incapaz enquanto perdurar tal situação. É incapaz de andar, de se locomover, de praticar os atos da vida diária com autonomia. Assim, o termo incapacidade exige maior especificação, inclusive em matéria de transitoriedade ou de definitividade.

    Nas entidades organizadas por e voltadas às pessoas com deficiência, o erro de terminologia também ocorre. O uso da palavra excepcional é uma delas. A palavra começou a ser empregada na década de cinqüenta (50), de modo eufemístico, para se referir àquelas crianças cujo desenvolvimento se desviava do padrão tido como normal para o seu grupo.³⁵

    Gonçalves, ao tratar do termo excepcional, afirma que o termo tenta tratar a deficiência como sendo o desvio acentuado dos padrões médios e a sua relação com o desenvolvimento físico, mental, sensorial ou emocional.³⁶

    Já Pontes de Miranda ao se referir ao termo excepcional, o relaciona à pessoas com defeitos físicos ou psíquicos, com procedência anormal, nascido em meio social perigoso e que precisam de assistência³⁷.

    Nos dicionários de língua portuguesa,³⁸ o adjetivo excepcional é empregado para qualificar aquilo que é ou que envolve exceção. Nessa linha de raciocínio, dizer que uma criança é excepcional, necessariamente, deve vir seguido de um complemento, explicitando no que ela seria excepcional.

    Já a expressão pessoa portadora de deficiência, começou a ser usada na legislação a partir de 1985, com a publicação da Lei nº 7.405/85, que tornou obrigatória a colocação do Símbolo Internacional de Acesso nas ações referentes às pessoas com deficiência.

    Posteriormente, há a Lei 7.853/89, que inaugurou, de fato, a tutela jurisdicional de interesse coletivo ou difuso desse segmento da sociedade, adota de vez a expressão pessoa portadora de deficiência e disciplina a atuação do Ministério Público na matéria.³⁹ Contudo, ao introduzir a expressão pessoa portadora de deficiência, pretendeu o legislador mudar o foco de atenção da palavra deficiência para a palavra pessoa, intento esse que não se efetivou, já que o foco acabou recaindo no termo portador, como se a pessoa pudesse portar ou não uma deficiência, como ocorre no campo da medicina, com determinadas patologias, quando é comum se dizer que o indivíduo porta determinado vírus, por exemplo.

    Finalmente e atualmente, a partir da publicação do Estatudo da Pessoa com Deficiência, ao utilizar a expressão pessoa com deficiência, tem-se a intenção de desviar o foco de atenção para o indivíduo. A ênfase recai, com acerto, sobre a pessoa, que tem uma deficiência, mas que também tem suas potencialidades, que são passíveis de serem evidenciadas, ou, no mínimo, que merecem ser admitidas.

    Entretanto, mesmo esta expressão ainda encontra resistência na sociedade e até mesmo entre as próprias pessoas com deficiência.

    Ainda na linha da terminologia, o termo integração surgiu no texto da Lei nº 7.853/89. Posteriormente, substituindo-o e vindo para marcar a diferença, assume o lugar a expressão inclusão social, chamando para si a missão de assentar plenamente a igualdade da pessoa com deficiência no seio da sociedade. Atualmente, essa expressão ainda perdura nas normas e nas mensagens afetas ao tema, sem, contudo, estabelecer uma padronização terminológica para a matéria.

    A proteção da pessoa com deficiência se dá de forma diferenciada em cada ordenamento jurídico. Há países que dispõem de proteção mais efetiva, enquanto outros, como o Brasil, ainda que haja a garantia constitucional, constata-se que o aporte legislativo infraconstitucional ainda se mostra ineficiente.⁴⁰

    No Brasil, o inicio da tentativa de proteção ao deficiente se deu com a Emenda Constitucional n° 1, de 1969, que trouxe, pela primeira vez, a proteção específica à pessoa com deficiência.⁴¹ Com o advento da Emenda n° 12, de 1978, houve a ampliação desses direitos.⁴² Já com a

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