Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Um dia chegarei a Sagres
Um dia chegarei a Sagres
Um dia chegarei a Sagres
E-book380 páginas9 horas

Um dia chegarei a Sagres

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Nélida Piñon não publicava um romance inédito desde o premiado Vozes do deserto, de 2004. Um dia chegarei a Sagres é, portanto, per se, um acontecimento literário. A autora nos oferece um épico poderoso, passado no século XIX, em um Portugal profundo, produto da fé na tradição oral e na cultura da memória.
Nélida move-nos – tendo Mateus, o narrador, como corpo; e Camões, o norte, como alma – pela terra, pelo chão que é também rio, até que a estrada seja o mar. A viagem – o lançar-se – é destino daquele povo.
A represa – um mar inteiro a atravessar – é Vicente. O avô. Aquele que criou Mateus, filho da meretriz e neto de pai desconhecido. Um neto que encarna o campo português. Na trama íntima, plena de pujança, essas relações, em que a secura de gestos e palavras se impõe, Nélida Piñon faz desaguar alguns dos elementos que compõem o imaginário de sua ficção: não apenas a aldeia, mas o universo da aldeia; não apenas os animais, mas a sacralidade dos animais; não apenas Deus, mas a presença de Deus; não apenas o sexo, mas o sexo que rege o instinto indomável.
Vicente, o cético, morre; é a represa levantada. Mateus vai, um Vasco da Gama inteiro em seus desejos. A aldeia fica. Mateus, desde o alto da colina de São Jorge, uma nesga de Tejo a ver, narra. Narra Amélia, a mulher do Oriente; quem sabe a esperança? Ainda Vicente, memória do passado, o legado do Infante D. Henrique. Sempre sob a fantasia eterna, obsessão de um dia chegar a Sagres.
Narra a história de Portugal – de uma civilização – na saga do indivíduo, um camponês talvez intrépido. Impossível não encontrar no caráter deste fascinante épico de Nélida Piñon – deste livro de século – um novo A república dos sonhos, romance que é marco da literatura em língua portuguesa.
IdiomaPortuguês
EditoraRecord
Data de lançamento5 de out. de 2020
ISBN9786555871463
Um dia chegarei a Sagres

Relacionado a Um dia chegarei a Sagres

Ebooks relacionados

Ficção Literária para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de Um dia chegarei a Sagres

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Um dia chegarei a Sagres - Nélida Piñon

    CapaFolha de rosto

    CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

    SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    Piñon, Nélida

    P725d

    Um dia chegarei a Sagres [recurso eletrônico] / Nélida Piñon. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Record, 2020.

    recurso digital

    Formato: epub

    Requisitos do sistema: adobe digital editions

    Modo de acesso: world wide web

    ISBN 978-65-5587-146-3 (recurso eletrônico)

    1. Romance brasileiro. 2. Livros eletrônicos. I. Título.

    20-66131

    CDD: 869.3

    CDU: 82-31(81)

    Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439

    Copyright © Nélida Piñon, 2020

    Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito.

    Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

    Direitos exclusivos desta edição reservados pela

    EDITORA RECORD LTDA.

    Rua Argentina, 171 – Rio de Janeiro, RJ – 20921-380 – Tel.: (21) 2585-2000.

    Produzido no Brasil

    ISBN 978-65-5587-146-3

    Seja um leitor preferencial Record.

    Cadastre-se em www.record.com.br

    e receba informações sobre nossos

    lançamentos e nossas promoções.

    Atendimento e venda direta ao leitor:

    sac@record.com.br.

    AMIGOS E CÚMPLICES DE LISBOA

    Amada Suzy Piñon

    Karla Vasconcelos

    Eduardo Lourenço

    Guilhermina Gomes

    Leonor Xavier

    Pilar Del Rio

    José Carlos Vasconcelos e

    Maria José Lobo Fernandes

    Kristie Vasconcelos e

    Márcio Medeiros

    Sumário

    1

    2

    3

    4

    5

    6

    7

    8

    9

    10

    11

    12

    13

    14

    15

    16

    17

    18

    19

    20

    21

    22

    23

    24

    25

    26

    27

    28

    29

    30

    31

    32

    33

    34

    35

    36

    37

    38

    39

    40

    41

    42

    43

    44

    45

    46

    47

    48

    49

    50

    51

    52

    53

    54

    55

    56

    57

    58

    59

    60

    61

    62

    63

    64

    65

    66

    67

    68

    69

    70

    71

    72

    73

    74

    75

    76

    77

    78

    79

    80

    81

    82

    83

    84

    85

    86

    87

    88

    89

    90

    91

    92

    93

    94

    95

    96

    97

    98

    99

    100

    101

    102

    103

    104

    105

    106

    107

    108

    109

    110

    111

    112

    113

    114

    115

    116

    117

    118

    119

    120

    121

    122

    123

    124

    125

    126

    127

    128

    1

    Nasci no século XIX, no norte de Portugal, e não sei o que significa ser parte desta nação. Que benefícios os reis, assentados no trono, de diversas linhagens, nos concederam além de agrilhoar o povo aos seus caprichos. Esta turba de sangue real ainda não decretou a verdadeira abolição da escravatura, aquela ocorrida em 1869. Eu, porém, decidi contar minha história, a falar para o ar, no dia primeiro de novembro, mês que coincide com o terremoto de Lisboa.

    Era madrugada, fazia frio, e eu cobria o corpo com um cobertor gasto, o único que havia na casa. À luz da vela, enxergava os objetos sobre o aparador como fantasmas que ia afugentando com gestos esparsos. Eles, mais persistentes que a minha vontade, me dão combate, formam na parede silhuetas que não identifico com nitidez. A vida, que é precária, pulsa no meu peito, oferta-me certo frescor que a minha memória, afundada no inferno, recusa. Graças a essas lembranças visito a aldeia em que nasci e revivo à força.

    A despeito da minha triste rebeldia, atribuo formas disformes às migalhas de pão que se espalham sobre a mesa. Enquanto acato os produtos da terra, que são poucos na casa, como que vivo de farelos. Sem eles, contudo, não estaria aqui, nesta colina de Lisboa, uma das sete existentes, pela qual perambulo amparando-me nas paredes das casas para não tombar. Após deixar as terras do avô e instalar-me em Lisboa, em Sagres, e depois no mundo, aqui retornei. Quem sou sem as ruínas das urbes humanas e sem os pedaços da minha existência? Quem sou sem estas histórias, meus escombros?

    Vivo com rigorosa parcimônia. As moedas, que tenho na algibeira, sequer alimentam meus sonhos. São sobras do trabalho quase escravo, das viagens onde outrora nós, os lusos, imperamos. Elas, porém, não me asseguram o futuro. O medo da miséria ronda o cotidiano. O que farei quando consumir o último pataco?

    As noites são sinistras, induzem-me à cautela. A morada, encimada nesta colina de São Jorge, não distante do castelo cenário de tantas batalhas travadas, e ali vivo, é modesta, sem água, que busco e guardo nas tinas, e as paredes descascadas, o conjunto revela meu fracasso. Da janela, no entanto, o prêmio é a paisagem soberba, esfumada nas horas de neblina, e uma nesga do Tejo, cujas águas suntuosas resistem aos meus devaneios. Tardei em singrar sobre sua superfície prateada. E quando me distanciei de sua visão, padeci. Agora, antes do último suspiro, reconcilio-me com o rio sagrado. Urge que eu morra apaziguado, passe em revista os contendores, a existência, sem qualquer melindre. Neste crepúsculo, tudo e nada clamam por arrependimento, por falsa solidariedade pelo que perdi e não ganhei.

    Comi sardinhas fritas embebidas no azeite, um exagero. Limpei os restos com pão, como gosto. Tenho pouco, mas prossigo. Sou filho das adversidades infligidas ao meu povo, assim um camponês sem alcunha e título. E agora, na pobreza, atuo como se ela fora o único troféu que mereço.

    As figuras do passado são abutres que devoraram aos poucos a minha carne. Não fui feliz, sei bem. A própria mãe amaldiçoou-me no catre após expulsar-me do ventre. A desafiar o pai, Vicente, ali presente, a recolher o neto, o pecado da filha de que se envergonhava. Fui salvo por ele. Um avô que foi o único a me amar. A partir desta cena protagonizada por seres do mesmo sangue, tocou-me aceitar esta herança. Não fazia falta afugentar os amores malfadados, eles me batiam naturalmente à porta.

    Falo para que Lisboa me ouça, ao menos o vizinho que ignoro quem seja. Hoje me sobra um corpo alquebrado que se liquefaz aos poucos nesta cidade que, segundo sei, acolheu muçulmanos, cristãos, disputada por espanhóis e finalmente portugueses. Um enlace desesperado que me fez melancólico. Um homem cujas virtudes não atraem a mim mesmo. Ainda que no passado despertei desejo, até em um macho.

    Os anos são ingratos, decretam a falência humana e seus efeitos nos igualam. Dessa forma sei que sou semelhante ao rei na sua majestade fedida, que pouco se banha e impregna seu perfume nos rincões do palácio da Ajuda.

    No meu recanto, raspo a gengiva com os dedos, apalpo as crateras que os dentes deixaram ao cair e pretendo que me restaure. Que tristeza, meu Deus, já não abocanhar a carne alheia como antes, com fúria, sem comiseração, empurrado pela obsessão do membro intumescido. No ápice do desejo sempre me faltou piedade. O outro servia-me para eu purgar o mal da paixão. O que fazer, lamentar a ausência da ternura que só o avô Vicente e Leocádia me inspiraram?

    A vida de fato nunca me pertenceu. Não fiz jus a ela. Esta certeza talvez sinalizando ser este o momento de rever porções da minha história. Não posso nem sei se o que ocorre hoje, nas horas tardias, antecipa meu fim. E falta-me, nesta velhice que nunca pensei viver, o consolo de não ter sentado à mesa dos poderosos, e provado de suas iguarias. Minha despedida, portanto indigna, acabrunha-me.

    O que mais prezo na pobreza são os três relógios pendurados na parede, próximos entre si, quase sem espaço para respirarem. O tempo que eles assinalam com os ponteiros gastos anuncia a minha finitude, a passagem de cada dia. Ao acordar, a leveza dos minutos traz esperança em seu bojo, enquanto, por ironia, simboliza a presteza do cutelo do carrasco.

    O relógio do meio é o Cristo cercado pelos dois ladrões. Formam modesta coleção que me recorda o poderoso rei de Espanha e do Sacro Império, Carlos V, que, fatigado com as pompas do mundo, abandonou as rédeas dos bens após reparti-los entre os herdeiros. Recluído no Mosteiro de São Jerónimo de Yuste, na província de Cáceres, ali viria a morrer de gota, examinava sua coleção, cioso do avanço dos ponteiros que iam consumindo o prazo que lhe fora reservado viver. E de nada lhe servindo o poder para acrescentar-lhe os dias que já começavam a lhe faltar. Haveria melhor modo de aguardar a morte do que seguir, enfeitiçado, o andamento daquelas implacáveis agulhas?

    Ao contemplá-los pela manhã, sorvo o ar do dia com alento. Aguardo que cheguem mais tarde a brisa noturna e o frio. Consinto, então, que os relógios agonizem enquanto durmo.

    2

    As memórias me invadem, não têm sequência, não têm ordem, não têm juízo. A memória é alvissareira para os felizes. Para mim é ingrata. Não vale guardá-la entre os meus pertences.

    Recordo a vida a esmo, a minha e a dos demais. Elas se enlaçam contra a nossa vontade, e ignoro que parte é exclusivamente minha. Neste horizonte infinito da história, como dizia o alfarrabista Ambrósio, não herdei uma porção do cérebro de Camões. Sou desvalido na mente e forte na carne, quase selvagem.

    Sinto-me aturdido, sempre, aliás. Em meio a uma encruzilhada cujas linhas minha miséria não interpreta. Onde ancora a vida do pobre para se sentir protegido? O corpo que leva meu nome só é meu em pedaços. Basta o rei ordenar, e sigo para o cadafalso ou para a masmorra.

    Estou em Lisboa, e vim para ficar. Lembro-me de ter jurado no passado não regressar à minha aldeia, lá no norte, após o enterro do avô Vicente. Éramos poucos à beira da cova rasa, sua sepultura. Ele era magro e o caixão estreito, não havia que aprofundar o buraco.

    A mãe, Joana, vestiu-se com roupa domingueira. Talvez a que lhe ficava melhor. Seu ofício exigia acirrar o desejo alheio com evocações festivas. Silenciamo-nos enquanto o depositávamos na terra, a que ele servira com devoção. Bastava examinar suas mãos de lavrador, calosas e maltratadas, com marcas de feridas antigas, para recordar o vigor com que empunhava o machado sem hesitar um instante ao rachar o veio central do tronco. Tudo ele fazia. Limpava o curral, plantava, colhia o que a natureza nos dava. Ensinou-me a agradecer aos deuses a safra nascida do sacrifício humano. Matava-se com o intuito de dar pão à família.

    Gostava de ver quando, em gesto rápido, expulsava-me de perto do alguidar, quando me tocava pelar as batatas. Fazia-o com graça, como se fosse um dia de festa. Parecia, então, desanuviado, como se a despeito de sua modéstia fantasiasse o mundo, fabricasse quimeras.

    Penso agora, tantos anos depois, se não pretendia ser naquele momento um poeta, daqueles andarilhos que surgiam na aldeia, com ar de profeta, uns demiurgos montados em um jumento, com vara na mão e um manuscrito na outra, convocando o povo a ouvir o que tinham a declamar. Homens que vinham da Galícia até o norte de Portugal, quem sabe havendo cruzado o Minho a nado, com o original a salvo, que era seu tesouro, imitando o gesto de Camões que nos ensinavam na escola. Terá sido assim que o avô sentia no esforço de ser feliz, ao menos nos domingos? Ou invento agora um ser que de fato não existiu, a que eu adiciono uma complexidade que faz jus não a ele, mas a mim próprio, ora um velho combalido, que observa o mundo com um saber dolorido? E ainda, sob o impulso da invenção, atribuo aos miseráveis que perambulavam por Portugal como jograis egressos do medievo, cuja poesia derramava bênçãos naquelas terras carentes?

    Sob o beneplácito do professor Vasco da Gama, mestre de aldeia, filho de camponeses, pai de grande prole, que vivia mais das batatas, dos legumes, da carne oferecida pelos aldeões, que das moedas dadas pelo alcaide. O professor que me ensinou haver outros mundos atrás do que eu via. De modo que ao ouvir aqueles homens agitando as folhas que liam, assegurando-nos haver parido poemas frutos de um germe secreto, de uma genuína natureza poética, eu acreditasse firmemente em cada palavra pronunciada. Assim foi que passei a aceitar que se intitulassem eles artistas, para quem o verbo inflamava a garganta e o coração. Afinal, ser criador como Camões era visitar o céu.

    Uma vez ou outra o avô dava-lhes a comida em cima de fatia de pão, que servia de prato. E pedaço da broa de milho para a viagem. O apetite dos pobres era voraz, devoravam a comida enquanto iam relatando os fatos de suas jornadas. Aprendi com eles que a aventura clandestina que incluía o alimento superava o lirismo da poesia. Tanto que tão logo abastecidos seguiam adiante, esquecidos do papel de oráculo, de enunciar junto aos camponeses, sempre pendente da safra, a força da palavra.

    Os lavradores provaram-se resistentes ao sofrimento e insensíveis à arte, que se destinava aos nobres. Como chorariam eles ouvindo um vate a cantar suas penúrias, querendo implantar desassossego nas suas almas com emissões enfadonhas e presumidas, quando tinham eles suas próprias dores? Aplaudiam, sim, os saltimbancos, os acrobatas, os palhaços, os ambulantes que chegavam em bando e faziam rir.

    3

    Nasci perto da fronteira espanhola, nesta zona de litígio, para dar início ao meu drama. Uma aldeia relativamente vizinha ao rio Minho que desemboca no Atlântico e que dividia semelhante glória com a Galícia, dona da outra margem.

    Marcou-me o destino haver bebido ao mesmo tempo as águas do mar e as do rio que se enlaçavam na foz. Uma água que seria do Jordão caso eu tivesse nascido na Galileia.

    Aliás, certa vez o avô Vicente, com jeito imprudente e indiferente à minha reação, mergulhou-me no rio à guisa de batismo. Soubera que no passado certo rei imergiu o filho em uma tina com água sagrada, cujo efeito era proteger o nascente e retardar sua morte.

    — Quem pisa terra e mar ao mesmo tempo, ganha asas, sobrevive.

    Não frequentávamos as maravilhas do rio. Seus méritos resguardavam-se para os que o exploravam, uma chusma de bandoleiros e marginais que dominavam o comércio e o contrabando.

    Distante do Minho, a aldeia povoava-se de camponeses com suas terras, e de burgueses que arrendavam suas propriedades. Entre eles um fidalgo de alta estirpe, com escudo na porta.

    Portugal tinha o território ocupado por sobrados, casas senhoriais, castelos, muitos ainda habitados. E antigas fortificações outrora a serviço do rei, prontas para combater inimigos. A constituir um sistema de defesa cujo poder bélico exibia esplendor e ostensivo contraste com a pobreza reinante.

    Eu pouco conhecia das veredas que costeavam o rio. E menos as almas vis, os assassinos, os ricos, as donzelas presas às casas. Uma gente temerosa de ofender o monarca, as autoridades, os clérigos, senhores do poder que puniam e amorteciam ambições desmedidas ou insurreição popular.

    — A arrogância, Mateus, só vale se reforça a dignidade do pobre. Só que provoca a ira dos poderosos.

    Sentenciou a frase ao meu regresso do monte, trazendo os animais, e ansioso por ouvi-lo, para tomarmos juntos o café que ele coava com gosto, em homenagem ao neto condenado, como os demais lavradores, ao esquecimento.

    Às vezes caía em um mutismo inquietante, para logo entreter-se com uma fala assinalada pela influência dos velhos da aldeia cujas marcas iam se apagando. A morte não lhes dera tempo, quem sabe, de fincar bandeiras, de pregar ideais, de semear convicções. A morte, é contumaz, não respeita as leis dos homens.

    O avô orgulhava-se de ser um camponês que sob sol inclemente, ou na calada da noite, convertia o excremento animal em um fertilizante que produzia riquezas. Ao realçar o significado do sublime gozo que advinha da mulher quando o acolhia nas profundezas de seu corpo, compungia-se de repente, esvanecia-se o dom de alegrar-se.

    — E por que somos desse jeito, avô?

    Quis lhe dizer que não confiasse em mim. Eu era um homem ao despertar, e outro ao adormecer.

    — É assim mesmo, Mateus.

    E nunca mais se ocupou do assunto.

    4

    Na velhice agora, nada me prende, nada tenho a proteger. A vida me sangrou. Retomo vagamente as pegadas do passado, que são um calvário. Sem me descuidar do avô Vicente, que respondia pelos meus atos. Fui filho e neto seu ao mesmo tempo. Da mãe não falo, não acredito em perdão. Recordo às vezes o início da jornada que encetei em direção a Lisboa. Parece ter sido ontem, quando questionei minha coragem, se me atreveria partir sem olhar para trás. Abandonar os animais, filhos do avô, a renunciar ao pão da nossa mesa. Pensava despedir-me das árvores, sob cujas copas eu sonhara, e ainda dos telhados, os últimos da encosta. Eram as silhuetas de um universo familiar forjado pelo avô.

    Na primavera, a aldeia festejava a colheita, as frutas, as carnes havidas, ardia em fervoroso sentimento de júbilo. Os contornos da natureza que rodeavam a casa ensejavam que erguêssemos a taça de vinho.

    Sedento de vida, eu cotejava as formas que via, verdes e esplêndidas, com as curvas sinuosas da mulher, de um corpo que tardei em conhecer. Nenhuma desta espécie longínqua para mim dera-me o gozo que as minhas mãos calosas me forneciam. Uma fêmea que rondava as aldeias, as cidades, e encarnava a paixão que enlouquecia o homem. Dona de um poder assentado em um físico responsável por um prazer tão agônico que estremecia o equilíbrio do mundo. E por que não estaria eu, um esquecido minhoto, à mercê de uma atração concentrada entre suas pernas, e tanto que os demais frutos da terra deixavam de existir? Só estando a salvo porque não fora tocado por nenhuma delas.

    Em um dezembro chuvoso, aflito por dar novo sentido à vida do neto, o avô decidiu suprir suas necessidades, fazer com que sua seiva de homem jorrasse no ventre da fêmea, arrastou-me à vila. Ele sabia o caminho. Teria frequentado a casa onde as damas se vendiam a quem fosse. Entrei assustado, querendo fugir, o avô empurrava-me corredor adentro, destinando-me à rapariga que escolhera previamente. As pernas trêmulas não me obedeciam, sentia-me petrificado. Já na cama, sob a orientação da criatura, agia desastrado. O que senti naquele momento não tinha nome, haveria de me perturbar para sempre, jamais me livraria de uma ânsia escrava do gozo. Incapaz de privar-me daquela substância com mil volúpias, estendido ali na cama a subjugar-me. Um sexo inventado por um deus diabólico que de tanto desprezar o espírito humano submetia o macho incauto à humilhação suprema de não prescindir da fêmea. E que ardil aquele que nenhum outro o superava?

    Ah, eu gozei, e queria mais, sempre mais. Não sei se acertei ou errei. Sofri de um tumulto no peito que motivou mudança, a certeza de nunca mais ser o mesmo. Como se o corpo que havia sido até então desgraçado, súbito beneficiava-me com a virilidade equivalente ao poder da terra. A partir do milagre de penetrar nas entranhas da mulher, que parecia gotejar como eu, meu ser ganhava majestade.

    Abandonei o quarto mofado com o estranho sentimento da morte. Como se, após conhecer as benesses do paraíso, mal respirasse, a naufragar em meio aos sargaços das emoções. Ciente de seguir cego, a despeito da experiência vivida, mal definindo o que excedia aos meus limites.

    Perto do avô, a olhar além do topo das montanhas, o céu não me apaziguava. Nem as nuvens que me arrastavam ao se deslocarem. Um convite para um dia abandonar o berço onde nasci, após esgotar as agruras do campo. Quando já não contasse com o avô Vicente, que respondera sempre pela minha conduta à margem do meu mistério. E viveria a façanha de enfrentar homens e feras. Uma andança que me levaria a dormir ao relento, na penumbra, como filho de uma solidão que talvez me roubasse a esperança de um dia chegar a Sagres.

    5

    Sei bem quem me falou pela primeira vez no Infante D. Henrique. Foi o esquálido professor Vasco da Gama, que fazia filhos como se sentisse obrigado a povoar a beira do Minho, desfalcado de quem herdasse no futuro sua crença no passado de Portugal. Mencionou o nome do Infante com cerimônia, quase pedindo licença. Enquanto os alunos não lhe deram atenção, eu acolhia com devoção os feitos de um herói de sangue real. E instigado pelo professor, ia aos poucos dilatando a imaginação com o propósito do Infante caber dentro. A descobrir que nenhum outro português, antes dele, pusera os olhos no mar como se o quisesse possuir. Talvez tendo ele, desde o berço real, um corpo coberto de escamas, com guelras rubras, a cauda de peixe, e a mirada arguta que auscultava todas as direções.

    Quem seria este príncipe que se apossara dos mares e os regalara ao país pequeno? Desde a casa trouxera a distinção monárquica, acaso preocupou-se com quem arava a terra, fazia sulcos para lançar sementes e que brotassem?

    O professor Vasco, arrependido talvez de ter gerado cinco filhos aos quais mal alimentava, enfatizou que o Infante, conquanto senhor da terra, morrera sem conhecer o peso da paternidade. Nunca esclareceu o celibato, não ter deixado seu sêmen em uma mulher. Sem haver, no entanto, renunciado ao próprio mito guerreiro. Em cujo brasão de armas imprimira suas convicções e seus enredos. Tudo seu que se multiplicaria milagrosamente. E de certo, ao se referir ele aos istmos, às ilhas, a uma inominada geografia, englobava o mundo aos seus haveres.

    Bem diversos dos sonhos do Infante, a plebe portuguesa, sua vizinhança em Lagos, ambicionava a safra farta, algumas moedas nos baús, o que os nutrisse com miríades ilusões. De forma que já de volta da escola, sentado ao pé do fogo junto ao avô, ambos aquecíamos as juntas enquanto eu memorizava a vida do Infante a partir das narrativas do professor Vasco, cujo entusiasmo elaborava cenas jamais descritas pelos cronistas. Movia-se o mestre com o intento de conquistar adeptos em prol do Infante, de confundir o cotidiano daqueles meninos do campo.

    Enquanto forcejava o intelecto daqueles alunos a crer na soberania da história, eu acatava seus preceitos sem resistência. Como sabendo que falava da vida que alguém no passado vivera por mim e que eu agora prosseguia em seu nome.

    No quadro negro, onde ia ele rabiscando nomes e datas, eu divisava o desenho da escola de navegação que o Infante teria erigido em Lagos para converter os pupilos dos arredores em navegantes destemidos, dispostos a enfrentarem a fúria do mar em naus que pareciam uma noz, com cascos frágeis e velas enfunadas. Confiantes eles de que os instrumentos navais de então resistiriam às ondas fatídicas, aos monstros, aos arrecifes, às crateras. A seguirem rotas imprecisas e o que mais?

    Na cozinha, à noite, perdia-me em conjecturas, de como chegar um dia a Sagres, a pé ou de barco. Ao encontro do Avis, mesmo ignorando que tratamento lhe dispensar, soubesse que aquele pobre camponês rendia-se a ele sem hesitação. Para quem aquele príncipe era rei, papa, bispo.

    6

    Sou parco de alegria. Em Lisboa, pouco sei do meu entorno, que vai até o Tejo, ou além dele. Diviso o que está ao meu alcance, sinto-me expulso de Portugal. Do alto da colina perscruto o horizonte além-mar, a partir do rio, e quase chego de novo ao Brasil. Confundo-me com os exageros da imaginação, contudo ela sempre rendeu-me frutos. Mesmo assim excedo-me. Facilmente penso nos navegantes que ganharam realce aos olhos do Infante, como o heroico Gil Eanes que, sob o fulgor de insana audácia, desde o convés de uma embarcação, com as velas prestes a se rasgarem, enfrentando intempéries, ventos diabólicos, os monstros e as sereias ali havidos, finalmente ultrapassou o Cabo Bojador. Uma ação que agigantou o mundo para os portugueses.

    O episódio do navegante Gil Eanes, escudeiro do Infante D. Henrique, levava-me a cogitar quem fomos no passado e em quem nos convertemos. O Infante, embora já não nos persuada a segui-lo nas aventuras marítimas, impulsionou-me a enveredar por sendas desconhecidas. O próprio Vasco percebeu o quanto as peripécias do Infante me lesaram, eu já não era o aluno de antes. Vivia cativo das histórias narradas, exibindo tal carência educacional que para corresponder à minha curiosidade o mestre recorria às vezes à invenção. O que para ele, de amplos recursos, alentava as aulas. Aquele príncipe, como se o professor o visse em pessoa, ajudava-o, passados tantos séculos, a ganhar ânimo e alguns patacos indispensáveis ao seu sustento.

    Ele agradecia ao pai, um montanhês com rebanho de ovelhas, o nome Vasco da Gama, referendado diante da pia batismal. Uma cerimônia em que, contando com a aquiescência do sacerdote, enalteceram todos os feitos do comandante responsável pela mais longa viagem oceânica empreendida até então, da Europa à Índia, equivalente a uma volta completa ao mundo pelo Equador. Um nome que merecia

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1