Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Varredoras e Varridas: condenadas da precisão (trajetória de vida das mulheres da varrição de João Pessoa)
Varredoras e Varridas: condenadas da precisão (trajetória de vida das mulheres da varrição de João Pessoa)
Varredoras e Varridas: condenadas da precisão (trajetória de vida das mulheres da varrição de João Pessoa)
E-book274 páginas3 horas

Varredoras e Varridas: condenadas da precisão (trajetória de vida das mulheres da varrição de João Pessoa)

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Varredoras e Varridas: Condenadas da Precisão (Trajetória de Vidas das Mulheres da Varrição de João Pessoa), resultado de uma pesquisa teórica e trabalho de campo que se materializou na Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais, do Programa de Pós-Graduação em Ciências sociais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), situada na área de concentração "Política e Trabalho no Brasil", foi defendida em outubro de 1991, tendo como Orientadora a Dra. Lourdes Maria Bandeira e como membros da Mesa Examinadora as Professoras Eleonora Menicucci de Oliveira, Doutora em Ciência Política e a Professora Rosa Maria Godoy Silveira, Doutora em História. As mulheres e homens da varrição de João Pessoa, com os quais mantivemos contato 86/91, falavam das suas compreensões de mundo e reconheciam a injustiça quanto aos salários, condições de trabalho e de vida. A alimentação tinha pouca "sustança", entendida como fraca porque a carne era quase inexistente. As moradias eram precárias, os bairros sem condições e distantes, fazendo com que acordassem de madrugada para saírem pata o trabalho. Tiveram suas vidas forjadas no trabalho pesado nas lavouras agrícolas, palha da cana e alguns na construção civil. Tinham a consciência de pertencimento a classe de trabalhadores pobres, moradores da periferia de João Pessoa, onde faltava, esgoto, calçamento e até a varrição das ruas. Esse período de escritura está distante 29 anos. É preciso, portanto, considerar esse tempo. A sociedade teve nesses anos um progresso material fantástico. A produção agrícola multiplicou-se e se transformou com o uso das máquinas, a população cresceu e viveu impactos da modernização dos setores produtivos. O mundo mudou muito e a circulação de pessoas e das coisas passa por um processo de aceleramento fantástico. Nesse compasso, a pergunta que cabe é que mudanças contribuíram para melhorar a vida dessas pessoas? A resposta poderia ser: "não sabemos". Trabalhando no campo das possibilidades poder-se-ia conjecturar que atingiram a aposentadoria. Para comparar a situação de varredoras e varredores daquele tempo e o atual, é necessário recolher indicações e fatos suficientes, o que implicaria numa nova pesquisa teórica e de campo. Recordar: do latim re-cordis, voltar a passar pelo coração, foi o ato de ler os depoimentos e as análises que tiveram apoio na produção do conhecimento daquele período histórico, o que nos motivou a conservar a narrativa original.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento9 de fev. de 2021
ISBN9786558771722
Varredoras e Varridas: condenadas da precisão (trajetória de vida das mulheres da varrição de João Pessoa)

Relacionado a Varredoras e Varridas

Ebooks relacionados

Direito para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de Varredoras e Varridas

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Varredoras e Varridas - Cândida Moreira Magalhães

    1975.

    CAPÍTULO I. UM OLHAR SOBRE A PESQUISA

    1.1 Objeto de estudo

    A presença feminina no mundo do trabalho é um fato histórico, pois se considerarmos trabalho toda e qualquer atividade útil à vida, podemos denominar a mulher, o agente por excelência, que vive o cotidiano do trabalho. Na zona rural a mulher assume as tarefas domésticas, a criação de animais, o cultivo de hortas e ainda desempenha atividades no roçado (no plantio e na colheita). No espaço urbano, além das atividades domésticas, de uma forma ou de outra, as mulheres exercem alguma função remunerada, seja na prestação de serviços de lavagem de roupa, confecção de alimentos, de utensílios domésticos, costuras e/ou são funcionárias, comerciárias, operárias da indústria têxtil, da alimentação e de outros ramos produtivos.

    Hoje é cada vez maior o número de mulheres trabalhadoras que desempenham o papel de chefe de família, isto é, responsáveis pela sobrevivência da família. O trabalho da mulher vem gradativamente deixando de ser considerado subsidiário e de complementação à renda familiar.

    A expressiva participação das mulheres no mercado de trabalho é confirmada pelos dados correspondentes aos anos 1970/1985, quando dados da População Econômica Ativa (PEA), mostram que triplicou o número de mulheres trabalhadoras, passando de 6,18% para 18,48%. Em 1970 eram 18,2%, em 1985 este percentual subiu para 36%. Assim, 33% das pessoas que trabalhavam no Brasil eram mulheres. No entanto, ainda perduram as culturas profissionais sexuadas, pois 69,20% dessas trabalhadoras situam-se em atividades terciárias (LOBO, 1989, p. 42-43).

    Outra situação cada dia mais frequente está ligada às famílias chefiadas por mulheres. Segundo os estudos demográficos de 1980, esse número corresponde a 1,1 milhão de mães sem cônjuge que chefiam seu próprio domicílio. Em 25,3% dos domicílios, 4,5% são chefiados por mulheres. Segundo a situação civil, as viúvas chefiam em 85%, as separadas, desquitadas e divorciadas em 62% e as mães solteiras em 34%. Nesse quadro, 81% são chefes mulheres residentes na área urbana e 19% na zona rural. A idade mostrou-se uma variável de peso na situação das mulheres chefes de família. Para aquelas com 20 (vinte) anos, 9,1%; até 30 (trinta) anos, 50%; de 30 a 39 anos, 75,4%; de 40 a 44 (quarenta e quatro) anos, 82,8% e mais de 45 (quarenta e cinco) anos, 86,2%. Certamente, com mais idade, essas mulheres já contam com filhos maiores que trabalham e elas mesmas já batalham por um ganho e provavelmente já se torna mais difícil serem acolhidas por parentes, considerando que quanto maior a taxa daquelas que chefia, maior é a idade e maior o número de filhos (NEUPERT, 1989, p. 9-12).

    Outro estudo comparativo (São Paulo/Salvador), identifica que as famílias chefiadas por mulheres são as mais pobres entre os pobres. Essa pesquisa mostra que elas têm uma renda média de até três salários mínimos. Ainda que essas famílias dos estados mais pobres, tem mais filhos e contam com a renda só da mulher, enquanto entre os ricos, o número de filhos é menor e a mulher chefe de família conta com renda além da sua. Tal quadro leva a autora a concluir que a inserção da mulher pobre no mercado de trabalho em decorrência do abandono pelo marido, configura uma feminização da pobreza (CASTRO, 1990, p. 20-21).

    A presença da varredora de rua em João Pessoa, data de 1979, época em que um maior número de mulheres substituiu os homens nessa atividade. A função de varrer, uma das tarefas situadas tradicionalmente no âmbito da reprodução da força de trabalho, é executada sobretudo pelo gênero feminino (meninas, adolescentes e mulheres) no espaço doméstico, constituindo-se uma habilidade apreendida e transmitida através das gerações. Tem esse ato, ritmo e ritual próprios, desenvolvido em tempo e horário determinados pelo movimento provado dos moradores da residência e pela dimensão do espaço. A passagem da varrição para o âmbito público, desenvolvida preferencialmente por mulheres, não deixa de ser uma extensão de suas tarefas cotidianas no espaço doméstico.

    Conforme último Censo realizado pelo IBGE (1980), a Paraíba conta com uma população de 2.770 milhões de habitantes e a estimada para 1991 é de 3.613,203 milhões para o Estado e para João Pessoa na ordem de 484.291 mil. Nos anos 60/70, a população rural decresce de 0,57% para 0.44% em 70/80, o que configura o grande êxodo rural. João Pessoa, na década de 70, em crescente processo de industrialização e urbanização teve um crescimento populacional de 4,6% ao ano. Neste período, ocorreram 3 grandes secas, o que tornou o quadro ainda mais sério. É precisamente nessa fase que a cidade começa a inchar, ampliam-se as favelas e as ruas são tomadas pelos desempregados e mendigos.

    Por outro lado, o discurso modernizante e dominante se empenha na tarefa de higienizar e sanear o espaço urbano. Esse projeto se faz não só retirando as sujeiras da cidade, mas ocupando as pessoas mesmo com trabalhos pesados e mal pagos e recolhendo inválidos e crianças aos albergues, orfanatos, escolas profissionalizantes, sem deixar, contudo, de ter um corpo de técnicos da área médica (peritos do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS)) para examinar casos de doenças e apontar os verdadeiramente inválidos e os simuladores.

    Para as elites, os desocupados, as multidões representam perigo, o ócio, a vagabundagem, o vício e o crime. É preciso sanear as cidades, tornar as ruas habitáveis, tranquilas, para tanto, devem ser estabelecidos princípios morais e medidas enérgicas. O trabalho, a disciplina, engrandecem o homem e estabelecem ordem no meio ambiente. Portanto, as cidades transformadas em cartão postal – tudo limpo, tudo bem. A dimensão estética do discurso do poder esconde a submissão de pessoas para que vendam sua força de trabalho e a destruição de estratégias autônomas de sobrevivência.

    Analisando a disciplinarização da cidade e da população em João Pessoa no período 1850-1930 (DINIZ, 1988, p. 100-136) mostra que na época colonial vigoravam os açoites, a punição. O Estado não contava com a igreja, porque ela com suas normas disciplinares, defendia seus próprios interesses ou se aliava às famílias contra a metrópole. O processo de militarização também não surtia muito efeito, porque o adestramento era descontínuo. A partir de 1859 com determinações mais expressas da elite dominante, com a finalidade de reprimirem os costumes, foram estabelecidas multas aos que se banhassem nas fontes existentes na cidade, também a quem andasse sem camisa. A ordem do espaço se deu com o alinhamento das ruas, demarcação de calçadas e regulamentação das construções. Foi proibida a caminhada pelas ruas à noite, principalmente ao negro. Já na metade do século XIX, os proprietários de terra residentes nos sobrados, aliaram-se ao poder público para o combate aos vícios e desmandos.

    Nesse período entram em cena os médicos higienistas que passam a impor normas higiênicas à população e invadem os lares através das visitas sanitárias. Instala-se a fiscalização sistemática e são pensadas reformas de instituições de saúde, orfanatos para onde os corpos classificados cientificamente seriam encaminhados.

    Com a finalidade de combater o ócio, o vício e o crime, foram criadas as casas de caridade onde os pobres receberiam educação moral e trabalho e as mulheres se instruiriam para fins domésticos. As escolas industriais tinham o objetivo de formar os operários úteis. No período republicano, a população pobre foi empurrada para a periferia. Aqui o discurso higienista funcionava com eficácia e crueldade, pois os casebres considerados insalubres, contaminados, eram demolidos sem a devida desapropriação. As pessoas encontradas perambulando pelas ruas eram internadas na Santa Casa da Misericórdia, Asilo de Mendicidade, Instituto de Proteção à Infância e Orfanato Dom Ulrico. Por fim, a criação da Escola de Polícia teria a função de contribuir para a consolidação do projeto das elites dominantes – retirar os pobres das ruas, manter a ordem urbana e impor a submissão, controlando os corpos, cronometrando o tempo e demarcando os espaços.

    A Diretoria de Limpeza Urbana (DILUR), na administração do ano de 1989, recomenda concentrar a atividade de varrição na zona A, seja, Tambaú, Cabo Branco, Av. Epitácio Pessoa, Tamandaré, entre outras, por ser essa área importante centro turístico. As Avenidas Cruz das Armas e 2 de Fevereiro também merecem o mesmo zelo por serem corredores de acesso ao centro urbano (URBAN, 1979). Isso só demonstra que a limpeza urbana não é tratada como um requisito de saúde e bem-estar da população em geral, mas constitui preocupação com o embelezamento, ordem e aparência da cidade.

    A passagem do ato de varrer do espaço privado para o público configura-se por uma organização do tempo que não é mais determinado por quem executa o trabalho. As mulheres passam a varrer em equipe, se articulam em áreas pré-estabelecidas, com responsabilidade de limparem uma determinada quantidade de ruas, tendo intervalos prefixados e sob vigilância. Os instrumentos de trabalho são conferidos e guardados em espaço próprio. O serviço efetua-se em ruas movimentadas e as trabalhadoras confrontaram-se com o perigo do trânsito, o incômodo do calor no período do verão e da chuva abundante durante o inverno. É precisamente essa passagem em que elementos novos se incorporam ao trabalho de varrer que constitui objeto de nosso estudo.

    As relações de gênero, conceito novo, introduzido nas Ciências Sociais, permite como categoria analítica, fazer uma leitura dos fenômenos sociais não só ligados à família, maternidade, mas às questões mais amplas que envolvem as práticas sociais e experiência humanas. Tal possibilidade existe porque nas relações de gênero estão contidas dimensões que extrapolam a questão biológica. O gênero mesmo sendo um vocábulo empregado para designar os sexos masculino e feminino, nele está contido além do fator fisiológico, o fator cultural. Sexo e gênero se inter-relacionam, mas não há dependência redutiva de um ao outro. Homem e mulher se colocam no mundo e passam a assumir determinadas funções nas relações sociais que lhes são atribuídas, como sendo as funções do macho e da fêmea.

    Essas funções foram construídas no contexto sociocultural, ao longo da história, no conjunto das relações sociais e, portanto, não se restringem à dimensão de sexo. Acerca do gênero, Joan Scott (1990) coloca reflexões sobre as posições teóricas de pesquisadoras feministas, que na análise de gênero explicam as origens do patriarcado. Essa primeira teoria discute sobre a subordinação da mulher ao homem e explica essa submissão pelo desejo do homem de transcender sua privação dos meios de reprodução da espécie. Os limites que a autora aponta são de que essas análises apresentam como base a diferença física, não trazendo, portanto, um caráter histórico do gênero e também não explicitando como a desigualdade de gênero desencadeia a desigualdade em outras esferas da vida social.

    De acordo com a segunda corrente teórica, as feministas marxistas orientaram-se historicamente e buscaram explicação material sobre a subordinação das mulheres. No entanto as conclusões desses estudos desembocaram na explicação dos meios de produção e a análise sobre o gênero é colocada como decorrência das relações produtivas. A terceira vertente, a teoria psicanalítica apresenta duas visões: a Escola Anglo-americana com a teoria da relação do objeto que dá ênfase à experiência concreta e defende que o subconsciente é possível de compreensão consciente. Para a Escola Psicanalítica Francesa que se orienta nas leituras estruturalistas e pós-estruturalismo de Freud, a base é a linguagem, a comunicação, a interpretação e representação do gênero. Não somente a linguagem falada e escrita, mas ordens simbólicas e os significados. Para esses estudiosos, o subconsciente é impossível de compreensão consciente. Ele tem fundamental importância na construção do gênero, dele emerge a divisão sexual.

    Os pontos comuns dessas escolas consistem nos processos pelos quais é criada a identidade do sujeito e o interesse pelo desenvolvimento da criança para encontrar a etapa na qual se formou a identidade de gênero.

    Os tropeços apontados por Scott (1990) conduzem aos argumentos de que o conceito de gênero é limitado à esfera familiar sem levar em consideração outros sistemas sociais. Admite que a linguagem permite a construção da identidade sexuada, mas é apenas uma dimensão. A teoria da linguagem fixa a oposição homem X mulher, desconsiderando a história.

    Para a autora, a categoria gênero" emergiu das Ciências Sociais no século XX, num período de grandes debates sobre o método científico, entre posições que afirmavam que os fatos são transparentes e outras que tinham uma leitura da realidade através da interpretação e construção da mesma, e isso implica o caráter dinâmico e histórico dos processos sociais. É nesse sentido que a ação individual deve ser levada em consideração e não só as causas universais e gerais, o que implica na necessidade de:

    [...] substituir a noção de um poder social unificado, coerente e centralizado por qualquer coisa que esteja próxima do conceito foucaultiano de poder, entendido como constelações dispersas de relações desiguais, constituídas pelos discursos nos campos de forças sociais. No interior desses processos e estruturas, há espaço para um conceito de agente humano, como esforço (pelo menos parcialmente racional) de construir uma identidade, uma vida, um conjunto de relações, uma sociedade com certos limites e com a linguagem – linguagem conceitual que por sua vez põe limites e contém a possibilidade de negação, de resistência, de reinterpretação, de jogo, de invenção metafórica e de imaginação. (SCOTT, 1990, p. 14).

    Segundo Scott (1990), os problemas colocados pelas correntes teóricas sobre os gêneros, consistem na fixidez das posições apresentadas como única possibilidade, quando tratam da oposição masculino/feminino o que leva a crer que universalmente homens e mulheres seguem as normas prescritas pelas suas sociedades, sem nenhum ato de contestação e transgressão. Para a autora,

    [...] o desafio da nova pesquisa histórica é fazer explodir essa noção de fixidez, é descobrir a natureza do debate ou da repressão que produzem a aparência de uma permanência eterna na representação binária do gênero. Esse tipo de análise deve incluir uma noção de política, bem como uma referência às instituições e à organização social. (SCOTT, 1990, p. 15).

    Assim como o conhecimento vem se construindo e não é concluído nem acabado, as relações de gênero não são definidas. Se apresenta como um,

    [...] terreno que aparece fixo, mas no qual o sentido é contestado e flutuante. Se tratarmos a oposição entre o masculino e o feminino como soendo problemática, mais do que conhecida, como qualquer coisa é definida e incessantemente construída dentro de um contexto concreto, devemos então perguntar não somente qual é o desafio das proclamações ou dos debates que invocam o gênero para explicar ou justificar suas posições, mas também com as percepções implícitas do gênero são invocadas ou reativadas. (Ibid, p. 19).

    Para Elisabeth Lobo (1988), a construção de gênero como categoria analítica,

    [...] tem a ver com os impasses com os impasses da teoria do patriarcado e das análises marxistas, tanto quanto o desenvolvimento autônomo de abordagens psicanalíticas. O certo é que o eixo de reflexão nas pesquisas feministas passa a ser muito mais o da busca dos significados das representações do feminino e do masculino, as construções culturais e históricas das relações de gênero. (LOBO, 1988, p. 3).

    Embora reconhecendo a contribuição da Escola Psicanalítica na construção do conceito de gênero, Elisabeth Lobo coloca como limite desses estudos, o fato das análises se centrarem sobre experiências individuais sem nenhuma abordagem à vida coletiva, pois que

    [...] os itinerários de homens e mulheres não podem ser reduzidos a simples efeitos mecânicos de uma identidade cristalizada de uma vez para sempre, ou não haveria história. Daí a importância das análises que tem por objeto as práticas sociais e as instituições, onde as relações de gênero se constroem. (Ibid., p. 4).

    Tratando as questões sobre os movimentos sociais, a autora afirma:

    [...] a particularidade dos movimentos como momentos de estruturação de novas relações entre vida pública e vida privada, e de novas configurações das relações de gênero nas relações sociais e políticas. Por suas conquistas às vezes por sua simples presença, as mulheres nos movimentos subvertem a ordem dos gêneros vigente nos espaços da sociedade. Uma ordem que é material e fortemente simbólica, que distribui através da história, lugares para homens e mulheres, que atribui qualidade e aptidões, estabelece hierarquias enraizadas nestas mesmas qualidades, sejam elas considerada naturais ou admitidas como construções sociais sem serem, no entanto, questionadas. (LOBO, 1987, p. 95).

    A sociedade é constituída, ao mesmo tempo, de realidade objetiva e subjetiva, e dentro de um processo dialético os indivíduos internalizam e externalizam as situações sociais. Nesse processo, homens e mulheres, apreendem de pessoas significativas (família, professores, chefes) maneiras, funções e formas de inserção do homem e da mulher na sociedade, tomando essas situações como suas próprias explicações e visão do mundo. Daí, constroem as identidades masculina e feminina e passam a vivenciar as qualidades e atributos que lhe são impostos, como verdade legitimadas, portanto difíceis de serem contestadas.

    Nessa dinâmica de assimilação dos papéis e funções atribuídos culturalmente ao homem e a mulher no conjunto das relações sociais, ao pensar os sujeitos masculino e feminino, o discurso normatizador é carregado de forte envolvimento emocional e dose considerável de compulsividade. Para refletir sobre as relações de gênero, faz-se necessário colocar essa temática no espaço das relações sociais e na inter-relação do mundo doméstico e do público, além do universo simbólico. Homem e mulher não dependem de ser macho ou fêmea, mas estão ligados à necessidade de desenvolverem funções próprias, específicas nas relações sociais. Determinadas condutas hoje assumidas por homens e mulheres, num primeiro momento tidas como transgressoras, passaram a ser assimiladas no conjunto das relações sociais porque resultaram de formas de viver construídas simultaneamente pelos sexos.

    Entre essas atitudes pode-se relacionar desde a postura por homens que hoje frequentam salão de beleza, fazem limpeza de pele, usam brincos, pulseiras e mulheres que andam de moto, praticam esportes tidos como masculinos (futebol, surf), e exercem profissões que foram privilégios dos homens (engenheiro, médico, bancário etc.). Há que se considerar que as relações sociais são dinâmicas e contraditórias, e, portanto, essas variações, recriações e transgressões se dão no interior das classes sociais e tem gradações marcadas por rupturas mais rápidas ou menos rápidas, dependendo dos limites de possibilidades oferecidas às camadas mais pobres e os privilégios desfrutados pela burguesia e classe média.

    Os estudos sobre os ritos de inversão, que consistiam em formas de expressão através da literatura, artes e brincadeiras culturais com os papéis sexuais levados a efeito na Europa pré-industrial, mostram que os disfarces utilizados por homens e mulheres, tiveram papel importante no sentido de questionamento e de enfrentamento da ordem social, extrapolando desse modo, a dimensão festiva.

    Os homens disfarçados de mulheres, em certas ocasiões, tiravam proveito, porque exploravam a ideia de fragilidade feminina, não sofrendo (o homem) os danos esperados ou tinham êxito de desarmarem as suas vítimas, nos casos de conquista de mulheres de difícil acesso e/ou entrada em espaços interditados aos homens. Em outras situações, os benefícios de demarcação de terras, defesa de aquisição de madeiras e pastos, contrariando a determinação do Código Florestal e até mesmo em protestos contra nova organização do trabalho que estava sendo implantada, quando tecelões vestidos de mulheres incendiavam teares.

    Por outro lado, as mulheres disfarçadas de homens, tentavam

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1